COR LITÚRGICA: BRANCO OU
DOURADO
(Que o Círio Pascal seja o
grande sinal deste Tempo Pascal)
O Senhor
ressuscitou! Aleluia! Nesta páscoa semanal a liturgia nos mostra a missão
evangelizadora da Igreja, que através do aparecimento do Ressuscitado, torna
possível a existência da comunidade e de sua missão: missão que nos ensina a
servir, e servindo manifestamos e reconhecemos a presença de Cristo entre nós,
e garantimos o milagre da unidade. Como Pedro, aceitamos o convite de Jesus:
Segue-me!
1. Situando-nos
Neste terceiro domingo da Páscoa, o Senhor Ressuscitado caminha
conosco e nos revela a Palavra viva, senta à mesa e reparte conosco sua vida.
Nesta reunião, partilhamos com Ele as incertezas, as dúvidas e
as dificuldades em compreender o caminho pascal. Somos iluminados pela Palavra
da Escritura que faz arder nosso coração e nos prepara para o banquete da
aliança, onde Ele mesmo se dá como alimento.
Ele vem ao nosso encontro, caminha conosco, abre nossos olhos e
ouvidos para compreendermos o sentido da cruz. Deixemo-nos guiar por sua
Palavra que nos tira do medo e da timidez e nos faz anunciadores da Boa
Notícia.
2. Recordando a Palavra
A leitura do evangelho de Lucas narra o encontro do Ressuscitado
com os discípulos de Emaús. Esse texto, exclusivo de Lucas, convida a percorrer
o caminho do discipulado para encontrar Jesus ressuscitado, que parte o pão
conosco e revela seu amor que inflama nosso coração.
Os dois discípulos representam os cristãos de todos os tempos, sempre
a caminho com o Senhor, na década de 80 do primeiro reavivar a fé em Cristo
ressuscitado, presente na comunidade solidária que se reúne para partir o pão.
Os dois discípulos, após a morte de seu Mestre na cruz, partem
de Jerusalém em direção ao povoado de Emaús. Jesus de Nazaré, que “foi um
profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e diante de todo o povo”
(24,19), havia suscitado a esperança messiânica de libertação. Os discípulos
estão tristes e desiludidos, pois tinham colocado a expectativa num messianismo
político nacionalista: “Esperávamos que fosse ele quem libertaria Israel”
(24,21).
Apesar de não terem acolhido o anúncio pascal das mulheres que
diziam: “o Crucificado está vivo”, eles lembram, conversam e discutem a
respeito de Jesus, mas seus olhos são incapazes de reconhecer a presença viva
de Jesus que estava próximo e caminhava com eles.
O Ressuscitado se faz presente no caminho dos que procuram
descobrir o significado de suas palavras e obras, dos que fazem memória de sua
vida doada totalmente. À luz das Escrituras, os discípulos e discípulas
encontram o verdadeiro sentido da paixão e ressurreição de Cristo: “Não era
necessário que o Cristo sofresse tudo isso para entrar na glória?” (24,26).
Compreendem que Jesus é o verdadeiro Messias, que realizou o
projeto salvífico, passando pelo sofrimento da cruz. “Começando por Moisés e
passando por todos os profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, as
passagens que se referiam a ele” (24,27). A presença do Ressuscitado ilumina os
discípulos, fazendo-os compreender a palavra: “Não ardia o nosso coração quando
ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (24,32).
A adesão à palavra de Jesus manifesta-se na hospitalidade: “Fica
conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” (24,29). O gesto de partir e
compartilhar o pão suscita a fé no Ressuscitado. Os olhos dos discípulos se
abrem e reconhecem a presença de Jesus, quando ele sentou-se à mesa, “tomou o
pão, pronunciou a bênção, partiu-o e deu a eles” (24,30).
Na última ceia, Jesus repartiu o pão como dom de sua própria
vida (cf. 22,19). Os discípulos de Emaús celebram o memorial de Jesus como
gesto de solidariedade, acolhendo o “peregrino” para que pudesse restaurar as
forças. Ao repartir o pão de Jesus na comunhão fraterna da vida, eles fazem a
experiência de sua presença viva e atuante.
O gesto de Jesus, que recorda sua vida compartilhada, doada por
amor, reconduz os discípulos ao caminho. Reavivados na fé e na esperança, os
discípulos levantam-se e voltam para Jerusalém, para testemunhar a experiência
do encontro com Cristo ressuscitado: “Realmente, o Senhor ressuscitou!”
(24,34). Jerusalém, lugar onde Jesus concluiu sua obra de salvação, torna-se o
marco inicial da missão dos discípulos, que deve se estender até os confins da
terra (cf. At 1,8).
Na primeira leitura dos Atos dos Apóstolos, Pedro, porta-voz dos
demais discípulos, apresenta o querigma cristão. Jesus de Nazaré, o Enviado do
Pai, realizou “milagres, prodígios e sinais” em favor do povo (2,22). Ele foi
acolhido por muitos e rejeitados por outros até a morte na cruz. “Mas Deus o
ressuscitou, libertando-o das angústias da morte” (2,24), revelando a eficácia
de sua doação a serviço do projeto divino de salvação.
Em Cristo realiza-se plenamente o sentido do salmo de hoje (cf.
At 2,25-28; Sl 15, 8-11 (16)). O Pai não abandonou o Filho na morada dos
mortos, mas o ressuscitou para a vida plena em sua glória.
A vitória da vida sobre a morte, manifestada em Cristo,
plenifica a promessa messiânica de estabelecimento de um reino eterno de
salvação (cf. 2Sm 7,12-16). Na obra de Jesus, o Messias (=ungido), a qual
culminou com sua exaltação à direita do Pai, cumprem-se as Escrituras. Jesus
venceu a morte através da ressurreição, instaurando o reinado eterno da justiça
e da paz. Os cristãos tornam-se testemunhas da vida nova, revelada em Cristo:
“Deus ressuscitou este mesmo Jesus, e disso todos nós somos testemunhas”
(2,32).
O salmo 15 (16) é uma prece de confiança em Deus: “não vais
abandonar minha vida no sepulcro”. A experiência da salvação em Deus leva a
seguir o caminho da vida, abandonando as falsas seguranças. Assim, o salmista
encontra a verdadeira felicidade, que faz exultar de alegria. Cristo
ressuscitado, exaltado na glória do Pai, realiza plenamente a esperança de
salvação anunciada no salmo.
A segunda leitura da primeira carta de Pedro convida a
testemunhar a fé e a esperança, durante “o tempo de permanência como migrantes”
(1,17). Os cristãos, que estavam sofrendo discriminação, opressão, como no
tempo do Egito e da Babilônia, são fortalecidos pela presença de Deus, o Pai
que ama e acolhe a todos como filhos. O amor do Pai, revelado ao povo ao longo
da história da salvação, culminou na vida, morte salvífica e ressurreição de
Cristo.
“Fomos resgatados (...) pelo precioso sangue de Cristo, cordeiro
sem defeito e sem mancha” (1,19). Jesus, como cordeiro pascal (cf. Ex 12,5),
realiza o êxodo que liberta plenamente, conduzindo à comunhão filial com o Pai.
O seguimento a Cristo, a fidelidade ao seu projeto testemunham a
verdadeira fé e esperança em Deus (cf. 1,21). A esperança em Deus, que
ressuscitou Jesus dos mortos, assegura o compromisso em defesa da vida e da
dignidade dos que são discriminados, marginalizados.
3. Atualizando a Palavra
O Ressuscitado caminha conosco. Sua presença viva torna-se
perceptível aos nossos olhos, quando acolhemos os irmãos e nos reunimos para
“partir o pão”. Ele alimenta nossa vida, nossa fé, fortalece nosso caminho e
nossa missão. A força de sua ressurreição faz renascer nossa esperança, que
deve ser testemunhada através de gestos de hospitalidade, de partilha.
“A ressurreição de Cristo produz por toda a parte rebentos deste
mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a ressurreição
do Senhor já penetrou a trama oculta desta histórica; porque Jesus não
ressuscitou em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança viva!”
(Evangelii Gaudium, n.278).
A Palavra transforma nosso coração e revela sua eficácia na
Eucaristia, lugar privilegiado do encontro e do reconhecimento do Ressuscitado.
“A Eucaristia é o lugar privilegiado do encontro do discípulo com Jesus Cristo.
Com este sacramento, Jesus nos atrai para si e nos faz entrar em seu dinamismo
em relação a Deus e ao próximo. Existe estreito vínculo entre as três dimensões
da vocação cristã: crer, celebrar e viver o mistério de Jesus Cristo, de tal
modo que a existência cristã adquira verdadeiramente forma eucarística. Em cada
eucaristia, os cristãos celebram e assumem o mistério pascal, participando
nele. Portanto, os fiéis devem viver sua fé na centralidade do mistério pascal
de Cristo através da eucaristia. A Eucaristia, fonte inesgotável da vocação
cristã é, ao mesmo tempo, fonte inextinguível do impulso missionário. Aí, o
Espírito Santo fortalece a identidade do discípulo e desperta nele a decidida
vontade de anunciar com audácia aos demais o que tem escutado e vivido”
(Documento de Aparecida, n.251).
O Papa Francisco mostra que a palavra alcança a máxima eficácia
no sacramento: “Não é só a homilia que se deve alimentar da palavra de Deus.
Toda a evangelização está fundada sobre esta palavra escutada, meditada, vivida,
celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é a fonte da evangelização. Por
isso, é preciso formar-se continuamente na escuta da palavra. A Igreja não
evangeliza se não se deixa continuamente evangelizar. É indispensável que a
palavra de Deus ‘se torne cada vez mais o coração de toda a atividade
eclesial’. A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na eucaristia,
alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico
testemunho evangélico na vida diária. Superamos já a velha contraposição entre
palavra e sacramento e, no sacramento, essa palavra alcança a sua máxima
eficácia” (Evangelii Gaudium, n.174).
O gesto de partir e compartilhar o pão, que levou os discípulos
de Emaús a reconhecer a presença viva do Ressuscitado, revela a prática das
comunidades primitivas de celebrar a Eucaristia. Os cristãos costumavam se
reunir para escutar a Palavra, esta reunião culminava na fração do pão, na ceia
eucarística (cf. At 2, 42.46).
Justino, mártir, ao falar sobre a Eucaristia ressalta que “no
chamado dia do Sol, reúnem-se em um mesmo lugar todos os que moram nas cidades
ou nos campos. Lêem-se as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas,
na medida em que o tempo o permite. Terminada a leitura, aquele que preside
toma a palavra para aconselhar e exortar os presentes à imitação de tão
sublimes ensinamentos. Reunimo-nos todos no dia do Sol, não só porque foi o
primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, criou o mundo,
mas também porque neste mesmo dia Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos
mortos” (Cf. São Justino, mártir. Apologia a favor dos cristãos, século II.
Ofício das Leituras, 3º domingo da Páscoa).
4. Ligando a Palavra com ação litúrgica
É o primeiro dia da semana, dia do Senhor. Ele está no meio de
nós. Somos uma comunidade reunida em nome d’Ele. Ele nos revigora, abre nossos
olhos e nossos ouvidos para lermos os acontecimentos à luz do seu mistério
pascal.
Não há do que duvidar: Ele é aquele de quem falava as
Escrituras, como testemunham as leituras de hoje.
Na celebração, a proclamação da Palavra ganha pleno significado,
como relata a introdução do lecionário: “a economia da salvação, que a palavra
de Deus não cessa de recordar e prolongar, alcança seu mais pleno significado
na ação litúrgica, de modo que a celebração litúrgica se converta numa
contínua, plena e eficaz apresentação desta palavra de Deus. Assim, a palavra
de Deus, proposta continuamente na liturgia, é sempre viva e eficaz pelo poder
do Espírito Santo, e manifesta o amor ativo do Pai, que nunca deixa de ser
eficaz entre as pessoas” (Ordo Lectionum Missae – OLM, n.4).
Ele é também aquele que entra em nossa casa, senta à mesa
conosco e partilha conosco seu Corpo entregue e seu Sangue derramado.
Vale lembrar o que afirma o Elenco das Leituras da Missa:
“Espiritualmente alimentada nestas duas mesas, a Igreja, em uma, instrui-se
mais, e na outra se santifica mais plenamente; pois na Palavra de Deus se
anuncia a aliança divina, e na Eucaristia se renova esta mesma aliança nova e
eterna. Numa, recorda-se a história da salvação com palavras; na outra, a mesma
história se expressa por meio de sinais sacramentais da Liturgia. Portanto,
convém recordar sempre que a palavra divina que a Igreja lê e anuncia na
Liturgia conduz, como a seu próprio fim, ao sacrifício da aliança e ao banquete
da graça, isto é, a Eucaristia. Assim, a celebração da missa, na qual se
oferece a Deus o sacrifício de louvor e se realiza plenamente a redenção do
homem” (OLM, n.10).
Alimentados nestas mesas, recebemos do Senhor força e coragem
para a entrega de nossa própria vida do mundo.
*********
2ª Reflexão
A liturgia do segundo domingo pascal
apresentou a comunidade apostólica e sua fé em Jesus Cristo ressuscitado.
Agora, o terceiro domingo apresenta a mensagem que essa comunidade anunciou ao
mundo, a pregação dos apóstolos nos primórdios da Igreja: o “querigma”. A
perspectiva do anúncio universal é criada pela antífona da entrada, com o Salmo
66[65],1-2: “Aclamai a Deus, toda a terra”, enquanto a oração do dia evoca a
renovação espiritual dos que creem e recebem a condição de filhos de Deus.
1ª
leitura (At. 2,14.22-33)
A primeira leitura apresenta o
“querigma” apostólico, o anúncio – no discurso de Pedro em Pentecostes – da
ressurreição de Jesus e de sua vitória sobre a morte. É o protótipo da pregação
apostólica. Suprimida a introdução do discurso, por ser a leitura de
Pentecostes (At. 2,15-21), a leitura de hoje se inicia com o v. 22, anunciando
que o profeta rejeitado ressuscitou, cumprindo as Escrituras (Sl. 16[15],8-10).
Não se trata de ver aí uma realização “ao pé da letra”, mas de reconhecer nas
Escrituras antigas a maneira de agir de Deus desde sempre, a qual se realiza
num sentido “pleno” em Jesus Cristo. Ou melhor: naquilo que se vê em Jesus,
aparece o sentido profundo e escondido das antigas Escrituras. O importante
nesse querigma é o anúncio da ressurreição como sinal de que Deus “homologou” a
obra de Jesus e lhe deu razão contra tudo e todos. Isso é atestado não só por
testemunhas humanas, mas também pelo testemunho de Deus mesmo, na Escritura. O
Salmo 16[15], por exemplo, originalmente a prece de quem sabe que Deus não o
entregará à morte, encontra em Cristo sua realização plena e inesperada. Esse
salmo é também o salmo responsorial de hoje e terá de ser devidamente
valorizado.
2ª
leitura (1Pd. 1,17-21)
Na segunda leitura, continua a leitura
da 1Pd iniciada no domingo passado. Jesus Cristo é visto como aquele que nos
conduz a Deus. Sua morte nos remiu de um obsoleto modo de viver. Por meio de
Cristo, ou seja, quando reconhecemos e assumimos a validade do seu modo de
viver e de morrer, chegamos a crer verdadeiramente em Deus e conhecemos Deus
como aquele que ressuscita Jesus, aquele que dá razão a Jesus e “endossa” a sua
obra. Isso modifica nossa vida. Desde o nosso batismo, chamamos a Deus de Pai;
mas ele é também o Santo que nos chama à santidade (1Pd. 1,16; cf. Lv. 19,2). O
sacrifício de Cristo, Cordeiro pascal, obriga-nos à santidade. Os últimos
versículos desta leitura (v. 19-21) constituem uma profissão de fé no Cristo,
que desde sempre está com Deus: ele nos fez ver como Deus verdadeiramente é, e
por isso podemos acreditar que Deus nos ama.
Evangelho
(Lc. 24,13-35)
O evangelho é preparado pela aclamação,
que evoca o ardor dos discípulos ao escutar a palavra de Deus (cf. Lc. 24,32).
Trata-se da narrativa dos discípulos de Emaús (lida também na missa da tarde no
domingo da Páscoa). A homilia pode sublinhar diversos aspectos.
1) “Não era necessário que o Cristo
padecesse tudo isso para entrar na glória?” (Lc. 24,26). Cabe parar um momento
junto ao termo “o Cristo”. Não é apenas de Jesus como pessoa que se trata, mas
de Jesus enquanto Cristo, Messias, libertador e salvador enviado e autorizado
por Deus. Não se trata apenas de reconhecer a vontade divina a respeito de um
homem piedoso, mas do modo de proceder de Deus no envio de seu representante, o
“Filho do homem” revestido de sua autoridade (cf. Dn 7,13-14), que deve levar a
termo o caminho do sofrimento e da doação da vida (cf. Lc. 9,22.31).
2) Jesus “lhes explicou, em todas as
Escrituras, o que estava escrito a seu respeito” (Lc. 24,27). Em continuidade
com a primeira leitura, podemos explicitar o tema do cumprimento das
Escrituras. As Escrituras fazem compreender o teor divino do agir de Jesus.
Enquanto os discípulos de Emaús estavam decepcionados a respeito de Jesus, fica
claro agora que, apesar da aparência contrária, Jesus agiu certo e realizou o
projeto de Deus. As Escrituras testemunham isso. Jesus assumiu e levou a termo
a maneira de ver e de sentir de Deus que, embora de modo escondido, está
representada nas antigas Escrituras. Ele assumiu a linha fundamental da
experiência religiosa de Israel e a levou à perfeição, por assim dizer. Mas só
foi possível entender isso depois de ele ter concluído a sua missão. Só à luz
da Páscoa foi possível que as Escrituras se abrissem para os discípulos (cf.
também Jo 20,9; 12,16).
3) Reconheceram-no ao partir o pão (cf.
Lc. 24,31 e 35). A experiência de Emaús nos faz reconhecer Cristo na celebração
do pão repartido. Na “última ceia”, o repartir o pão fora reinterpretado,
“ressignificado”, pelo próprio Jesus como dom de sua vida pelos seus e pela
multidão (Lc 22,19); e à comunhão do cálice que acompanhava esse gesto, Jesus
lhe dera o sentido de celebração da nova e eterna aliança (Lc 22,20). Assim
puderam reconhecê-lo ao partir do pão. Mas o gesto de Jesus na casa dos
discípulos significava também a rememoração do gesto fundador que fora a Última
Ceia, a primeira ceia da nova aliança. Desde então, esse gesto se renova constantemente
e recebe de cada momento histórico significações novas e atuais. Que significa
“partir o pão” hoje? Não é apenas o gesto eucarístico; é também o repartir o
pão no dia a dia, o pão do fruto do trabalho, da cultura, da educação, da
saúde... Os discípulos de Emaús, decerto, não pensavam num mero rito
“religioso”, mas em solidariedade humana. Ao convidarem Jesus, não pensaram
numa celebração ritual, mas num gesto de solidariedade humana: que o
“peregrino” pudesse restaurar as forças e descansar, sem ter de enfrentar o
perigo de uma caminhada noturna. O repartir o pão de Jesus é situado na
comunhão fraterna da vida cotidiana. Esse é o “aporte” humano que Jesus
ressignifica, chamando à memória o dom de sua vida.
ENTENDER
AS ESCRITURAS E PARTIR O PÃO
A liturgia de hoje nos conscientiza de
que Jesus, apesar – e por meio – de seu sofrimento e morte, é aquele que
realiza plenamente o que a experiência de Deus no Antigo Testamento já deixou
entrever, aquilo que se reconhece nas antigas Escrituras quando se olha para
trás à luz do que aconteceu a Jesus. Ao tomarmos consciência disso, brota-nos,
como nos discípulos de Emaús, um sentimento de íntima gratidão e alegria (“Não
ardia o nosso coração...?”, Lc. 24,32) que invade a celebração toda,
especialmente quando, ao partir o pão, a comunidade experimenta o Senhor
ressuscitado presente no seu meio.
A saudade é a benfazeja presença do
ausente. Quando alguém da família ou uma pessoa querida está longe, a gente
procura se lembrar dessa pessoa. É o que aconteceu com os discípulos de Emaús.
Jesus fora embora... mas, sem que o reconhecessem, estava caminhando com eles.
Explicava-lhes as Escrituras. Mostrava-lhes o veio escondido do Antigo
Testamento que, à luz daquilo que Jesus fez, nos faz compreender ser ele o
Messias: os textos que falam do Servo Sofredor, que salva o povo por seu
sofrimento (Is. 52-53); ou do Messias humilde e rejeitado (Zc. 9-12); ou do
povo dos pobres de Javé (Sf. 2-3) etc. Jesus ressuscitado mostrou aos
discípulos de Emaús esse veio, textos que eles já tinham ouvido, mas nunca
relacionado com aquilo que Jesus andou fazendo... e sofrendo.
Isso é uma lição para nós. Devemos ler
a Sagrada Escritura por intermédio da visão de Jesus morto e ressuscitado,
dentro da comunidade daqueles que nele creem. É o que fazem os apóstolos na sua
primeira pregação, quando anunciam ao povo reunido em Jerusalém a ressurreição
de Cristo, explicando os textos que, no Antigo Testamento, falam dele, como
mostra a primeira leitura de hoje. Para a compreensão cristã da Bíblia, é
preciso ler a Bíblia na Igreja, reunidos em torno de Cristo ressuscitado.
O que aconteceu em Emaús, quando Jesus
abriu as Escrituras aos discípulos, é parecido com a primeira parte de nossa
celebração dominical, a liturgia da palavra. E muito mais parecido ainda com a
segunda parte, o rito eucarístico: Jesus abençoa e parte o pão, e nisso os
discípulos o reconhecem presente. Desde então, a Igreja repete esse gesto da
fração do pão e acredita que, neste, Cristo mesmo se torna presente.
Emaús nos ensina as duas maneiras
funda-- mentais de ter Cristo presente em sua ausência: ler as Escrituras à luz
de sua memória e celebrar a fração do pão, o gesto pelo qual ele realiza sua
presença real, na comunhão de sua vida, morte e ressurreição. É a presença do
Cristo pascal, glorioso – já não ligado ao tempo e ao espaço, mas acessível a
todos os que o buscam na fé e se reúnem em seu nome.
padre Johan Konings, sj
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