O profeta  Jeremias, num momento de crise pessoal, confessa ter sido seduzido por Deus:  “Seduziste-me, Senhor, e deixei-me seduzir...”. Sua opção pela justiça de Deus  custou-lhe muito sofrimento. Teve que suportar zombarias por todo lado. Sentiu  que a Palavra do Senhor tornara-se para ele “fonte de vergonha e de chacota o  dia inteiro”. “Mas a voz de Deus era como um fogo ardente no seu peito. Não  conseguia reprimi-la... Tal é a sorte do profeta. Paulo, ressalta o  comportamento no dia a dia do cristão. A vida cristã se caracteriza por uma  contínua busca da vontade de Deus, uma cotidiana adesão ao seu projeto, como uma  resposta total e fiel ao chamado, à vocação, às orientações de sua Palavra e da  Boa-Nova de Jesus. Jesus explica aos seus discípulos qual é o rumo de seu  messianismo. Pensa no Servo Sofredor de Deus, que liberta o mundo por sua  dedicação até a morte... Mas ninguém é obrigado a segui-lo. “Se alguém quiser me  seguir”, diz Jesus. Portanto, trata-se de uma escolha pessoal. Optar por  segui-lo significa a mesma sorte e o mesmo destino que ele: renunciar a si mesmo  e tomar a cruz... O resultado final de tal opção é: ‘encontrar a vida’. O  destino do cristão, discípulo de Jesus, não pode ser diferente do destino do  mestre. O evangelho de hoje é claro. “Para estar com ele são exigidas duas  condições: Renunciar a si mesmo é deixar de lado toda ambição pessoal. Carregar  a própria cruz é enfrentar, com as mesmas disposições de Jesus, o sofrimento,  perseguição e morte por causa da justiça que provoca o surgimento do Reino...  Tomando consciência disso, vamos rever nossa escala de valores e critérios de  decisão. A mania do sucesso, o prazer de dominar, de aparecer, de mandar... já  não valem. Vale agora o amor fiel, que assume a cruz, até o  fim”.
A liturgia do  22º domingo do tempo comum convida-nos a descobrir a “loucura da cruz”: o acesso  a essa vida verdadeira e plena que Deus nos quer oferecer passa pelo caminho do  amor e do dom da vida (cruz).
Na primeira  leitura, um profeta de Israel (Jeremias) descreve a sua experiência de “cruz”.  Seduzido por Jahwéh, Jeremias colocou toda a sua vida ao serviço de Deus e dos  seus projetos. Nesse “caminho”, ele teve que enfrentar os poderosos e pôr em  causa a lógica do mundo; por isso, conheceu o sofrimento, a solidão, a  perseguição… É essa a experiência de todos aqueles que acolhem a Palavra de  Jahwéh no seu coração e vivem em coerência com os valores de  Deus.
A segunda  leitura convida os cristãos a oferecerem toda a sua existência de cada dia a  Deus. Paulo garante que é esse o sacrifício que Deus prefere. O que é que  significa oferecer a Deus toda a existência? Significa, de acordo com Paulo, não  nos conformarmos com a lógica do mundo, aprendermos a discernir os planos de  Deus e a viver em consequência.
No Evangelho,  Jesus avisa os discípulos de que o caminho da vida verdadeira não passa pelos  triunfos e êxitos humanos, mas passa pelo amor e pelo dom da vida (até a morte,  se for necessário). Jesus vai percorrer esse caminho; e quem quiser ser seu  discípulo tem de aceitar percorrer um caminho  semelhante.
1ª leitura:  Jer. 20,7-9 - Ambiente
Jeremias nasceu  em Anatot (a norte de Jerusalém), por volta de 650 a.C. Ainda novo (por  volta de 627/626 a.C.), sentiu que Deus o chamava a ser profeta. A atividade  profética de Jeremias prolongou-se até depois da destruição de Jerusalém pelos  babilônios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta foi, em geral, o reino  de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém). Jeremias viveu numa época  histórica bastante conturbada. Foi um período de grande instabilidade, de  injustiças sociais gritantes, de infidelidade religiosa. Quer Joaquim (609-597  a.C.) quer Sedecias (597-586 a.C.) foram reis fracos, incapazes de responder com  êxito às exigências da conjuntura internacional e de manter uma política de  neutralidade em relação às grandes potências da época (sobretudo o Egito e a  Babilônia). Jeremias – convencido de que Judá estava a ser infiel a Deus ao  deixar de confiar em Jahwéh e ao colocar a sua segurança e a sua esperança nas  mãos dos povos estrangeiros – criticou duramente os líderes do Povo e anunciou  uma invasão estrangeira, destinada a castigar os pecados de  Judá.
A pregação de  Jeremias não foi, no entanto, apreciada pelo Povo e pelos líderes. Considerado  um “profeta da desgraça”, Jeremias apenas conseguiu criar o vazio à sua volta e  viu os amigos, os familiares, os conhecidos voltarem-lhe as costas. Conheceu a  solidão, o abandono, a maledicência… Acusado de traição e encarcerado (cf. Jer.  37,11-16), o profeta chegou a correr perigo de vida (cf. Jer.  38,11-13).
Jeremias é o  paradigma dos profetas que sofreram por causa da sua missão. De natureza  sensível e cordial, homem de paz, Jeremias não foi feito para o confronto, para  a violência das palavras ou dos gestos; mas Jahwéh chamou-o para “arrancar e  destruir, para exterminar e demolir” (Jer. 1,10), para predizer desgraças e  anunciar destruição e morte (cf. Jer. 20,8). Como consequência, foi  continuamente objeto de desprezo e de irrisão e todos o maldiziam e se afastavam  mal ele abria a boca. E esse homem bom, sensível e delicado sofria terrivelmente  pelo abandono e pela solidão a que a missão profética o condenava.
Jeremias estava, verdadeiramente, apaixonado pela Palavra de Jahwéh e sabia que não teria descanso se não a proclamasse com fidelidade. Mas, nos momentos mais negros de solidão e de frustração, o profeta deixou, algumas vezes, que a amargura que lhe ia no coração lhe subisse à boca e se transformasse em palavras. Então, dirigia-se a Deus e censurava-O asperamente por causa dos problemas que a missão lhe trazia.
Jeremias estava, verdadeiramente, apaixonado pela Palavra de Jahwéh e sabia que não teria descanso se não a proclamasse com fidelidade. Mas, nos momentos mais negros de solidão e de frustração, o profeta deixou, algumas vezes, que a amargura que lhe ia no coração lhe subisse à boca e se transformasse em palavras. Então, dirigia-se a Deus e censurava-O asperamente por causa dos problemas que a missão lhe trazia.
No Livro de  Jeremias aparecem, a par e passo, queixas e lamentos do profeta, condenado a  essa vida de aparente fracasso. Alguns desses textos são conhecidos como  “confissões de Jeremias” e são verdadeiros desabafos em que o profeta expõe a  Jahwéh, com sinceridade e rebeldia, a sua desilusão, a sua amargura e a sua  frustração (cf. Jr. 11, 18-23; 12,1-6; 15,10.15-20; 17,14-18; 18,18-23;  20,7-18). O texto que hoje nos é proposto faz parte de uma dessas  “confissões”.
Mensagem
O texto  apresenta-nos uma desconcertante oração de Jeremias num momento dramático de  desilusão e de desânimo (quando, preso pelos ministros de Sedecias e atirado  para uma cisterna, se afundava no lodo? – cf. Jr.  38,4-6).
Esta estranha  oração adota a forma de denúncia ou de acusação do profeta ao seu Deus. Essa  acusação é formulada através da imagem da “sedução”: é como se Jahwéh tivesse  namorado o profeta até ao ponto de o seduzir (o verbo “pth”, aqui utilizado,  aparece em Ex 22,15 para falar da sedução de uma jovem solteira). Deus  insinuou-Se na vida do profeta, pressionou-o, subjugou-o, dominou-o e o profeta  não soube como resistir às investidas de Deus (o verbo “ykl”, utilizado no vers.  7 para definir a forma como Deus atuou em relação ao profeta, significa “exercer  o poder”, “prevalecer sobre alguém”, “dominar”). O profeta, embalado pelas  promessas desse Deus sedutor, incapaz de resistir ao seu “charme” e aos seus  jogos de sedução, pressionado, dominado, violentado, entregou-se completamente  nas suas mãos e dedicou toda a vida ao seu serviço.
O que é que o  profeta ganhou com essa entrega? Nada. Esse Deus que o seduziu, que o forçou a  dedicar a vida ao serviço profético, abandonou-o miseravelmente e deixou-o  entregue aos insultos e às zombarias dos seus adversários. O profeta está  desiludido e decepcionado… Essa desilusão irrompe em resolução firme de resistir  à voz do sedutor: “não voltarei a falar nele, não falarei mais em seu nome” (v.  9). Conseguirá o profeta levar até ao fim o seu  propósito?
Não. O amor por  Deus e pela sua Palavra está tão vivo no coração do profeta que é inútil  resistir: “procurava contê-lo, mas não podia” (v. 9). A Palavra de Deus é um  fogo devorador, que consome o coração do profeta e que não o deixa demitir-se da  missão e esconder-se numa vida cômoda e instalada. Ao profeta resta, portanto,  continuar ao serviço da Palavra, enfrentando o seu destino de solidão e de  sofrimento, na esperança de, ao longo da caminhada, reencontrar esse amor de  Deus que um dia o seduziu e ao qual o profeta nunca saberá  renunciar.
Atualização
A história de  Jeremias é, em termos gerais, a história de todos aqueles que Deus chama a ser  profetas. Ser sinal de Deus e dos seus valores significa enfrentar a injustiça,  a opressão, o pecado e, portanto, pôr em causa os interesses egoístas e os  esquemas sobre os quais, tantas vezes, se constrói a história do mundo; por  isso, o “caminho profético” é um caminho onde se lida, permanentemente, com a  incompreensão, com a solidão, com o risco. Deus nunca prometeu a nenhum profeta  um caminho fácil de glórias e de triunfos humanos. Temos consciência disso e  estamos dispostos a seguir esse caminho?
No batismo,  fomos ungidos como “profetas”, à imagem de Cristo. Estamos conscientes dessa  vocação a que Deus, a todos, nos convocou? Temos a noção de que somos a “boca”  através da qual a Palavra de Deus ressoa no mundo e se dirige aos  homens?
Neste texto –  e, em geral, em toda a vida de Jeremias – impressiona-nos o espaço fundamental  que a Palavra de Deus ocupa na vida do profeta. Ela tomou conta do seu coração e  dominou-o totalmente. É uma “paixão” que – apesar de ter trazido ao profeta uma  história pessoal de sofrimento e de risco – não pode ser calada e sufocada. Que  espaço ocupa a Palavra de Deus ocupa na minha vida? Amo, de forma apaixonada, a  Palavra de Deus? Estou disposto a correr todos os riscos para que a Palavra de  Deus alcance a vida dos meus irmãos e renove o mundo?
O lamento de  Jeremias não deve escandalizar-nos; mas deve ser entendido no contexto de uma  situação trágica de sofrimento intolerável. É o grito de um coração humano  dolorido, marcado pela incompreensão dos que o rodeiam, pelo abandono, pela  solidão e pelo aparente fracasso da missão a que devotou a sua vida. É o mesmo  lamento de tantos homens e mulheres, em tantos momentos dramáticos de solidão,  de sofrimento, de incompreensão, de dor. É a expressão da nossa finitude, da  nossa fragilidade, das nossas limitações, da nossa humanidade. É precisamente  nessas situações que nos dirigimos a Deus (às vezes até com expressões menos  próprias) e Lhe dizemos a falta que Ele nos faz e o quanto a nossa vida é vazia  e sem sentido se Ele não nos estender a sua mão. Esses momentos não são,  propriamente, momentos negativos da nossa caminhada de fé e de relação com Deus;  mas são momentos (talvez necessários) de crescimento e de amadurecimento, em que  experimentamos a nossa fragilidade e descobrimos que, sem Deus e sem o seu amor,  a nossa vida não faz sentido.
2ª leitura: Rm.  12,1-2 - Ambiente
Depois de  apresentar a sua catequese sobre o projeto de salvação que Deus tem para todos  os homens (cf. Rm. 1,18-11,36), Paulo vai descer a considerações de caráter mais  prático, destinadas a mostrar como deve viver aquele que é chamado à  salvação.
Essas  indicações práticas aparecem na segunda parte da Carta aos Romanos (cf. Rm.  12,1-15,13). Aí Paulo apresenta um longo discurso exortativo, no qual convida os  romanos (e os crentes em geral) a comportar-se de acordo com as exigências da  sua condição de batizados. Aderir a Cristo e acolher a salvação que Ele veio  oferecer não significa ficar no simples campo das verdades teóricas e abstratas  (por muito bonitas e profundas que elas possam ser), mas exige um comportamento  coerente com os valores de Jesus e com a vida nova que Ele oferece. A adesão a  Jesus implica assumir atitudes, nos vários momentos e situações da vida diária,  que sejam a expressão existencial desse dinamismo de vida nova que resulta do  batismo.
O texto que  hoje nos é proposto é a introdução à segunda parte da Carta e a esta reflexão  prática sobre as exigências do caminho cristão. Apresentam-se como uma espécie  de ponte entre a parte teórica (primeira parte da carta) e a parte prática  (segunda parte da carta).
Mensagem
A bondade e o  amor de Deus (de que Paulo tratou abundantemente nos capítulos anteriores)  convida a uma resposta do homem. Como é que deve ser essa  resposta?
Paulo convida  os crentes a oferecerem-se a si mesmos (literalmente “os vossos corpos”. “Corpo”  não designa, aqui, essa entidade distinta da alma, mas a pessoa na sua  totalidade, enquanto ser em relação. É o homem enquanto ser que se relaciona com  Deus, com os outros homens e com o mundo). Os cristãos são aqueles que se  entregam completamente nas mãos de Deus e que, em todos os instantes da sua  existência, vivem para Deus. Essa oferta será um “sacrifício vivo, santo e  agradável a Deus”. É esse “culto espiritual” (pode traduzir-se também como  “culto lógico” ou “culto razoável”) que Deus espera do homem. O adjetivo  utilizado por Paulo para referir-se ao culto é utilizado em contextos análogos,  tanto por autores judeus como por autores gregos, para marcar a diferença entre  um culto formal e exterior, que não compromete o homem e o culto verdadeiro, que  brota do coração e que compromete o homem inteiro (cf. Am. 5,21-25; Os 6,6; Jo  4,23-24). Os crentes devem, portanto, oferecer inteiramente as suas vidas a  Deus; e é esse o culto que Deus espera desses sobre quem derrama a sua  misericórdia e a quem oferece a salvação.
Na perspectiva  de Paulo, o que é que significa o homem oferecer inteiramente a sua vida a  Deus?
Significa, em  primeiro lugar, não se conformar com “este mundo” – isto é, manter uma distância  crítica em relação aos esquemas do mundo e aos valores sobre os quais este mundo  de egoísmo e de pecado se constrói. Significa, em segundo lugar, uma mudança de  coração, de mentalidade e de inteligência, que possibilite ao homem discernir  qual é a vontade de Deus, a fim de poder percorrer, com fidelidade, os seus  caminhos.
O “culto  espiritual” de que Paulo fala é, portanto, a entrega a Deus da totalidade da  vida do homem. Na sua relação com Deus, com os outros homens e com o mundo, o  cristão deve renunciar aos caminhos do egoísmo, do orgulho, da auto-suficiência,  da injustiça e do pecado; e deve procurar conhecer os projetos de Deus,  acolhê-los no coração e viver em coerência total com as suas  propostas.
Atualização
Como é que o  crente deve responder aos dons de Deus? Com atos rituais solenes e formais, com  orações ou gestos tradicionais repetidos de forma mecânica, com a oferta de uma  “esmola” para os cofres da Igreja, com uma peregrinação a um santuário? Paulo  responde: o culto que Deus quer é a nossa vida, vivida no amor, no serviço, na  doação, na entrega a Deus e aos irmãos. Respondemos ao amor de Deus  entregando-nos nas suas mãos, tentando perceber as suas propostas, vivendo na  fidelidade aos seus projetos. Como é o culto que eu procuro prestar a Deus: é um  somatório de gestos mecânicos, rituais e externos, ou é uma vida de entrega e de  amor a Deus e aos homens meus irmãos?
“Não vos  conformeis com este mundo” – pede Paulo. O cristão é alguém que não pactua com  um mundo que se constrói à margem ou contra os valores de Deus. O cristão não  pode pactuar com a violência como meio para resolver os problemas, nem com a  lógica materialista do sucesso a qualquer custo, nem com as leis do  neo-liberalismo que deixam atrás uma multidão de vencidos e de sofredores, nem  com as exigências de uma globalização que favorece alguns privilegiados mas  aumenta as bolsas de miséria e de exclusão, nem com a forma de organização de  uma sociedade que condena à solidão os velhos e os doentes… Eu sou um comodista,  egoisticamente instalado no meu cantinho a devorar a minha pequena fatia de  felicidade, ou sou alguém que não se conforma e que luta para que os projetos de  Deus se concretizem?
“Transformai-vos  pela renovação espiritual da vossa mente” – diz Paulo. Estou instalado nos meus  preconceitos, nas minhas certezas e seguranças, nos meus princípios imutáveis,  ou estou sempre numa permanente escuta de Deus, dos seus caminhos, dos seus  projetos e propostas?
Evangelho: Mt.  16,21-27
O episódio que  o Evangelho de hoje nos propõe vem na sequência daquele que lemos e refletimos  no passado domingo. Então (cf. Mt. 16,13-20), a comunidade dos discípulos  expressava a sua fé em Jesus como o “Messias, Filho de Deus” (é sobre essa fé –  diz Jesus – que a Igreja será edificada); agora, Jesus vai explicar a esse grupo  de discípulos o sentido autêntico do seu messianismo e da sua filiação  divina.
Continuamos,  ainda, no âmbito da “instrução sobre o Reino” (cf. Mt. 13,1-17,27); no entanto,  iniciamos, com este episódio, uma secção onde se privilegia a catequese sobre  esse destino de cruz que aparece no horizonte próximo de Jesus (cf. Mt.  16,21-17,27).
Nesta fase, as  multidões ficaram para trás e os líderes já decidiram rejeitar Jesus. Quem  continua a acompanhar Jesus, de forma indefectível, é o grupo dos discípulos.  Eles acreditam que Jesus é o “Messias, Filho de Deus” e querem partilhar o seu  destino de glória e de triunfo. Jesus vai, no entanto, explicar-lhes que o seu  messianismo não passa por triunfos e êxitos humanos, mas pela cruz (cf. Mt.  16,21-17,21); e vai avisá-los de que viver como discípulo é seguir esse caminho  da entrega e do dom da vida (cf. Mt. 17,22-27).
Mateus escreve  o seu Evangelho para comunidades cristãs do final do séc. I (anos 80/90). São  comunidades instaladas, que já esqueceram o fervor inicial e que se acomodaram  num cristianismo morno e pouco exigente. Com a aproximação de tempos difíceis  (no horizonte próximo estão já as grandes perseguições do final do séc. I), é  conveniente que os crentes recordem que o caminho cristão não é um caminho  fácil, percorrido no meio de êxitos e de aplausos, mas é um caminho difícil, que  exige diariamente a entrega e o dom da vida.
Mensagem
O nosso texto  pode, claramente, dividir-se em duas partes. Na primeira (vs. 21-23), Jesus  anuncia aos discípulos a sua paixão; na segunda (vs. 24-28), Jesus apresenta uma  instrução sobre o significado e as exigências de ser seu  discípulo.
A primeira  parte começa com o anúncio de Jesus de que o caminho para a ressurreição passa  pelo sofrimento e pela morte na cruz. Não é uma previsão arriscada: depois do  confronto de Jesus com os líderes judeus e depois que estes rejeitaram de forma  absoluta a proposta do Reino, é evidente que o judaísmo medita a eliminação  física de Jesus. Jesus tem consciência disso; no entanto, não se demite do  projeto do Reino e anuncia que pretende continuar a apresentar, até ao fim, os  planos do Pai.
Pedro não está  de acordo com este final e opõe-se, decididamente, a que Jesus caminhe em  direção ao seu destino de cruz. A oposição de Pedro (e dos discípulos, pois  Pedro continua a ser o porta-voz da comunidade) significa que a sua compreensão  do mistério de Jesus ainda é muito imperfeita. Para ele, a missão do “Messias,  Filho de Deus” é uma missão gloriosa e vencedora; e, na lógica de Pedro – que é  a lógica do mundo – a vitória não pode estar na cruz e no dom da  vida.
Jesus dirige-Se  a Pedro com alguma dureza, pois é preciso que os discípulos corrijam a sua  perspectiva de Jesus e do plano do Pai que Ele vem realizar. O plano de Deus não  passa por triunfos humanos, nem por esquemas de poder e de domínio; mas o plano  do Pai passa pelo dom da vida e pelo amor até às últimas consequências (de que a  cruz é a expressão mais radical). Ao pedir a Jesus que não embarque nos projetos  do Pai, Pedro está a repetir essas tentações que Jesus experimentou no início do  seu ministério (cf. Mt. 4,3-10); por isso, Mateus coloca na boca de Jesus a  mesma resposta que, então, Ele deu ao diabo: “Retira-te, Satanás”. As palavras  de Pedro – como as do diabo anteriormente – pretendem desviar Jesus do  cumprimento dos planos do Pai; e Jesus não está disposto a transigir com  qualquer proposta que O impeça de concretizar, com amor e fidelidade, os  projetos de Deus. Na segunda parte, Jesus apresenta uma instrução sobre as  atitudes próprias do discípulo. Quem quiser ser discípulo de Jesus, tem de  “renunciar a si mesmo”, “tomar a cruz” e seguir Jesus no seu caminho de amor, de  entrega e de dom da vida.
O que é que  significa, exatamente, renunciar a si mesmo? Significa renunciar ao seu egoísmo  e auto-suficiência, para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O cristão não  pode viver fechado em si próprio, preocupado apenas em concretizar os seus  sonhos pessoais, os seus projetos de riqueza, de segurança, de bem-estar, de  domínio, de êxito, de triunfo… O cristão deve fazer da sua vida um dom generoso  a Deus e aos irmãos. Só assim ele poderá ser discípulo de Jesus e integrar a  comunidade do Reino.
O que é que  significa “tomar a cruz” de Jesus e segui-l’O? A cruz é a expressão de um amor  total, radical, que se dá até à morte. Significa a entrega da própria vida por  amor. “Tomar a cruz” é ser capaz de gastar a vida – de forma total e completa –  por amor a Deus e para que os irmãos sejam mais felizes. No final desta  instrução, Jesus explica aos discípulos as razões pelas quais eles devem abraçar  a “lógica da cruz” (vs. 25-27). Em primeiro lugar, Jesus convida-os a entender  que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem é capaz de dar a  vida a Deus e aos irmãos não fracassou; mas ganhou a vida eterna, a vida  verdadeira que Deus oferece a quem vive de acordo com as suas propostas (v.  25).
Em segundo  lugar, os discípulos são convidados a perceber que a vida que gozam neste mundo  não é a vida definitiva. Não devem, pois, preocupar-se em preservá-la a qualquer  custo: devem é procurar encontrar, já nesta terra, essa vida definitiva que  passa pelo amor total e pelo dom a Deus e aos outros. É essa a grande meta que  todos devem procurar alcançar (v. 26). Em terceiro lugar, os discípulos devem  pensar no seu encontro final com Deus: nessa altura, Deus dar-lhes-á a  recompensa pelas opções que fizeram… Esta alusão ao momento do juízo não é rara  em Mateus: ele recorre, com alguma frequência, a esta motivação para fundamentar  as exigências éticas da vida cristã.
Atualização
Na reflexão,  considerar os seguintes dados:
Frente a  frente, o Evangelho deste domingo coloca a lógica dos homens (Pedro) e a lógica  de Deus (Jesus). A lógica dos homens aposta no poder, no domínio, no triunfo, no  êxito; garante-nos que a vida só tem sentido se estivermos do lado dos  vencedores, se tivermos dinheiro em abundância, se formos reconhecidos e  incensados pelas multidões, se tivermos acesso às festas onde se reúne a alta  sociedade, se tivermos lugar no conselho de administração da empresa. A lógica  de Deus aposta na entrega da vida a Deus e aos irmãos; garante-nos que a vida só  faz sentido se assumirmos os valores do Reino e vivermos no amor, na partilha,  no serviço, na solidariedade, na humildade, na simplicidade. Na minha vida de  cada dia, estas duas perspectivas confrontam-se, a par e passo… Qual é a minha  escolha? Na minha perspectiva, qual destas duas propostas apresenta um caminho  de felicidade seguro e duradouro?
Jesus tornou-Se  um de nós para concretizar os planos do Pai e propor aos homens – através do  amor, do serviço, do dom da vida – o caminho da salvação, da vida verdadeira.  Neste texto (como, aliás, em muitos outros), fica claramente expressa a  fidelidade radical de Jesus a esse projeto. Por isso, Ele não aceita que nada  nem ninguém O afaste do caminho do dom da vida: dar ouvidos à lógica do mundo e  esquecer os planos de Deus é, para Jesus, uma tentação diabólica que Ele rejeita  duramente. Que significado e que lugar ocupam na minha vida os projetos de Deus?  Esforço-me por descobrir a vontade de Deus a meu respeito e a respeito do mundo?  Estou atento a esses “sinais dos tempos” através dos quais Deus me interpela?  Sou capaz de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de  Deus, mesmo quando elas são exigentes e vão contra os meus interesses e projetos  pessoais?
Quem são os  verdadeiros discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma catequese que  insistia em ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em determinadas  obrigações legais, mas que deixou para segundo plano o essencial: o seguimento  de Jesus. A identidade cristã constrói-se à volta de Jesus e da sua proposta de  vida. Que nenhum de nós tenha dúvidas: ser cristão é bem mais do que ser  batizado, ter casado na igreja, organizar a festa do santo padroeiro da  paróquia, ou dar-se bem com o padre… Ser cristão é, essencialmente, seguir Jesus  no caminho do amor e do dom da vida. O cristão é aquele que faz de Jesus a  referência fundamental à volta da qual constrói toda a sua existência; e é  aquele que renuncia a si mesmo e que toma a mesma cruz de  Jesus.
O que é  “renunciar a si mesmo”? É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a  auto-suficiência dominem a vida. O seguidor de Jesus não vive fechado no seu  cantinho, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua  volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações  dos outros homens; mas vive para Deus e na solidariedade, na partilha e no  serviço aos irmãos.
O que é “tomar  a cruz”? É amar até às últimas consequências, até à morte. O seguidor de Jesus é  aquele que está disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres  e mais felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a  exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a  tortura, as represálias dos poderosos.
P.  Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas  Carvalho
 

 
 
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