Havíamos chegado a uma baixada cujas ribanceiras ocultavam as demais regiões vizinhas; o caminho, sempre em declive, se tornava cada vez mais horrível, sem pavimentação, cheio de buracos, degraus, pedras e rochas arredondadas.
Havia perdido de vista a todos os meus jovens, muitíssimos dos quais haviam saído daquele caminho traiçoeiro para tomar outros rumos.
Continuei caminhando. Quanto mais avançava, mais áspera e rápida era a descida, de modo que às vezes resvalava e caía por terra, onde ficava um pouco para retomar o fôlego. De tempos em tempos o guia me sustentava e me ajudava a levantar. A cada passo as articulações se me dobravam e parecia que meu ossos se iam desconjuntar. Ofegante, eu dizia ao que me guiava:
- Meu amigo, minhas pernas já não podem me sustentar: estou tão esgotado que me é impossível prosseguir a caminhada.
O guia não respondeu, mas fazendo-me sinal para ter ânimo continuou o caminho; até que, vendo-me suado e morto de cansaço, conduziu-me a um patamarzinho que havia na entrada. Sentei-me, respirei profundamente e me pareceu descansar um pouco. Eu olhava entrementes o caminho percorrido: parecia quase vertical, semeado de espinhos e pedras ponteagudas. Olhava depois o caminho que ainda devia percorrer e fechava os olhos aturdido. Por fim, exclamei:
- Por caridade, voltemos par trás. Se continuamos adiante, como faremos para retornar ao Oratório? Serme-á impossível subir essa encosta.
O guia respondeu resolutamente:
- Agora que chegamos a este ponto, queres que te deixe só?
Diante da ameaça, exclamei em tom dolorido: - Sem ti, como poderei voltar para trás ou continuar a viagem.
- Pois bem, segue-me - acrescentou.
Levantei-me e continuamos descendo. O caminho se tornava cada vez mais espantoso e intransitável, de modo que mal podia manter-me em pé.
Eis que no fundo desse precipício, que terminava num vale sombrio, apareceu um imenso edifício que exibia, diante de nosso caminho, uma porta altíssima, fechada. Chegamos ao fundo do precipício. Um calor sufocante me oprimia e uma densa fumaça esverdeada se elevava em torno das muralhas, marcadas por chamas cor de sangue. Levantei os olhos para ver a altura dos muros; eram mais altos que uma montanha. Perguntei ao guia:
- Onde é que nos encontramos? Que é isso?
- Lê naquela porta - respondeu - pela inscrição saberás onde estamos.
Olhei e vi escrito na porta: Ubi non est redemptio [onde não há redenção]. Dei-me conta de que estávamos na porta do Inferno.
O guia me levou a fazer o contorno das muralhas daquela horrível cidade. De espaço a espaço, a distância regular, via-se uma porta de bronze como a primeira, também no ponto final de uma espantosa vertente, e todas tinham uma inscrição latina distinta das anteriores.
Discedite, maledicti, in ignem aeternum, qui paratus est diabolo et Angelis eius... Omnis arbor quae non facit fructum bonum excidetur et in ignem mittetur [Afastai-vos, malditos, ide para o fogo eterno que está preparado para o diabo e seus anjos... Toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo].
Apanhei um lápis para copiar as inscrições; mas o guia me disse:
- Que estás fazendo?
- Tomo nota destas inscrições.
- Não é preciso; tu as tens todas na Escritura. Algumas delas até as mandaste colocar nas portas [de teu Oratório].
Diante de tal espetáculo, eu teria desejado voltar para trás e marchar para o Oratório; já havia dado alguns passos, mas meu guia nem se moveu. Percorremos um imenso e profundíssimo barranco e novamente nos encontramos diante da primeira porta, aos pés da vertente por onde havíamos descido. De repente o guia recuou e, com o rosto entristecido e desfeito, fez sinal para que me afastasse, dizendo:
- Observa!
Assustado, voltei os olhos para trás e vi a uma grande distância, por aquele rapidíssimo caminho, alguém que caía precipitadamente. Conforme ia se aproximando, procurava fixar-lhe o rosto; afinal reconheci nele um dos meus jovens. Seus cabelos, em parte desordenados e eriçados, em parte lançados para trás por efeito do vento; seus braços, estendidos para adiante em atitude de quem nada para escapar do naufrágio. Queria parar e não podia. Tropeçava nas pedras salientes do caminho e elas mesmas serviam para dar-lhe mais impulso na queda.
- Corramos, vamos Pará-lo e ajuda-lo - dizia eu, enquanto estendia para ele as mãos.
- Não, deixa - dizia-me o guia.
- Por que não posso Pará-lo?
- Não sabes como é terrível a vingança de Deus?
Porventura crês que és capaz de parar alguém que foge da cólera acesa do Senhor?
Entrementes, o jovem, voltando a cabeça para trás e olhando com olhos esbugalhados para ver se a ira de Deus o perseguia, lançava-se ao fundo e ia chocar-se na porta de bronze, como se em sua fuga não pudesse encontrar melhor refúgio.
- Por que - perguntava eu - aquele jovem olha para trás com tanto espanto?
- Por que a ira de Deus atravessa todas as portas do Inferno e vai atormenta-los até em meio do fogo.
De fato, ante aquele encontrão, com estrondo se abriu a porta. Por trás dela abriram-se ao mesmo tempo, com estrondo ensurdecedor, duas, dez, cem, mil portas mais, empurradas pelo jovem que era levado por um torvelinho invisível, irresistível, velocíssimo. Todas essas portas de bronze, uma defronte à outra, embora a grande distância, ficavam um instante abertas. Vi no fundo, muito distante, como que a boca de um grande forno, e enquanto o jovem se precipitava naquela voragem, elevaram-se bolas de fogo. As portas voltaram a fechar-se com a mesma rapidez com que se haviam aberto. Tirei então minha caderneta para escrever o nome e o sobrenome daquele desgraçado, mas o guia, segurando-me pelo braço, intimou-se:
- Espera e observa novamente.
Olhei e presenciei outro espetáculo. Vi que por aquela vertente se precipitavam outros três jovens das nossas casas, os quais, à maneira de três pedras, rolavam rapidissimamente um após o outro. Tinham os braços abertos e urravam de terror.
Chegaram ao fundo e foram bater na primeira porta. No mesmo instante, reconheci todos os três. A porta se abriu e, por trás delas, as outras mil; os jovens foram empurrados no compridíssimo corredor, ouviu-se um prolongado rumor infernal, que se afastava mais e mais, e desapareceram, cerrando-se as portas.
Muitos outros pouco a pouco foram caindo atrás desses. Vi cair um pobrezinho empurrado por um pérfido companheiro. Uns caíam sós, outros acompanhados; uns seguros pelo braço e outros soltos, ainda que bastante juntos uns dos outros. Todos levavam escrito na fronte o seu pecado. Eu os chamava com grande aflição, enquanto caíam. Mas os jovens não me ouviam; retumbavam as portas infernais ao abrir-se, fechavam-se depois, e seguia-se um silêncio sepulcral.
- Eis uma das causas principais de tantas condenações - exclamou meu guia - maus livros, maus companheiros e hábitos perversos.
Os laços que antes havia visto eram os que arrastavam os jovens ao precipício. Ao ver caírem tantos deles, disse com voz desolada:
- Mas então é inútil trabalharmos em nossos colégios, se tantos são os rapazes aos quais aguarda esse fim. Não haverá nenhum outro remédio para impedir a perda de tantas almas?
Respondeu o guia: - Esse é o estado atual em que se encontram, e se morressem, para cá viriam sem mais.
- Nesse caso, deixa-me anotar seus nomes para que eu possa avisa-los e pô-los no caminho do Paraíso.
- E crês que alguns deles, avisado, se corrigiriam?
Num primeiro momento, o aviso os impressionará; depois o desprezarão, dizendo: "mais um sonho!", e ficarão piores do que antes. Outros, sabendo-se descobertos, freqüentarão os Sacramentos, mas sem boa vontade e sem mérito, porque não o farão bem. Outros se confessarão, mas só por temor momentâneo do Inferno, sem arrancar de seu coração o afeto ao pecado.
- Não há, então, remédio para esses desgraçados? Dá-me um remédio que possa salva-los.
- Eles têm superiores: que lhes obedeçam! Têm um regulamento: que o observem! Têm os Sacramentos: que os freqüentem!
Nesse meio tempo, precipitou-se outro bando de jovens, e as portas ficaram abertas por uns instantes.
- Entra tu também - me disse o guia.
Retrocedi horrorizado. Estava com a idéia de que devia voltar logo ao Oratório para avisar os jovens e segura-los pra que nenhum se perdesse. Mas o guia insistiu:
- Vem, e aprenderás muitas coisas. Diz-me, antes, porém: queres ir só ou acompanhado?
Disse isso para que eu reconhecesse a insuficiência de minhas forças, e ao mesmo tempo a necessidade de sua benévola assistência. Respondi:
- Só?! A esse lugar de horrores?! Sem ser ajudado por tua bondade?! Quem é que me poderia ensinar o caminho de volta?
Mas no mesmo instante senti-me cheio de coragem, pensando comigo mesmo:
- Só pode ir para o Inferno quem já foi julgado, e eu ainda não o fui.
Em conseqüência, exclamei resoluto:
- Entremos, pois!
Adentramos aquele estreito e horrível corredor. Corríamos com a velocidade do relâmpago. Em cada uma das portas interiores brilhava com tétrica luz uma inscrição ameaçadora. Quando terminamos de percorre-lo, fomos parar num vasto e tenebroso pátio, em cujo o fundo via-se uma grossa e horrível portinha, como jamais vi igual, e nela estava escrita estas palavras: Ibunt impii in ignem aeternum [Os ímpios irão para o fogo eterno]. Todas as paredes em volta estavam cheias de inscrições. Pedi permissão para o guia para lê-las, e me respondeu:
- A vontade.
- Então examinei tudo. Num lugar, vi escrito: Dabo ignem in carnes eorum ut comburantur in sempiternum [Darei fogo a suas carnes para que queime eternamente]. Cruciabuntur die ac nocte in saecula saeculorum [Serão atormentados dia e noite pelos séculos dos séculos]. Noutro lugar: Hic universitas malorum per omnia saecula saeculorum [Aqui está o conjunto dos moles pelos séculos dos séculos]. E noutro: Nullus est hic ordo, sed horror sempiternus inhabitat [Aqui não há ordem, mas habita horror eterno]. Fumus tormentorum suorum in aeternum ascendit [Eternamente estará subindo o fumo de seus tormentos]. Non est pax impiis [Não há paz para os ímpios]. Clamor et stridor dentium [Clamor e ranger de dentes].
Enquanto eu estava lendo as inscrições a volta, o guia, que havia ficado no meio do pátio, aproximou-se e me disse :
- A partir daqui ninguém mais poderá ter um companheiro que o sustente, um amigo que o conforte, um coração que o ame, um olhar compassivo, uma palavra benévola; passamos a linha. Queres ver ou experimentar?
- Só quero ver - Respondi.
- Vem, então - acrescentou o amigo, e tomou-me pela mão.
Levou-me assim adiante daquela portinha e abriu-a . comunicava com um espaço em cujo fundo havia uma grande cova fechada com uma ampla janela de um só cristal que ia desde o piso até o teto, e através do qual se podia divisar o interior. Dei um passo para trás e retrocedi até o umbral da porta, tomado por indescritível terror.
Apareceu diante de meus olhos uma espécie de imensa caverna que se perdia como que nas entranhas da montanha, cheias de fogo, não comovemos na terra, com chamas vivas, mas um fogo tal e tão ardente que tudo o que havia em torno estava torrado e embranquecido pelo excessivo calor. Paredes, tetos, chão, ferro, pedra, lenha, carvão, tudo estava branco e incandescente. Com certeza o fogo era de milhares e milhares de graus de calor; mas nada se reduzia as cinzas, nada se consumia.
Não sou capaz de descrever aquela caverna em toda a sua espantosa realidade. Praeparata est enim ab hero Thopheth, a rege praeparata, profunda et dilatata. Nutrimentum eius, ignis et ligna multa: flatus Domini sicut torrens sulphuris succendens eam (Isaías, 30, 33) [Desde muito tempo, foi Thopheth preparada por seu dono, foi preparada pelo rei, profunda e larga. Seu alimento é fogo e muita lenha; o sopro do Senhor, como uma torrente de enxofre, a mantém acesa].
Enquanto eu olhava tudo aquilo estarrecido, vejo inesperadamente cair com fúria incoercível um jovem que, lançando um grito lancinante, como o de uma pessoa, que estivesse a ponto de cair num lago de bronze derretido, se precipita no meio do fogo, torna-se incandescente como toda a caverna e fica imóvel, ressoando por uns instantes o eco de sua voz agoniada.
Cheio de horror, fechei os olhos no jovem, e pareceu-me um do oratório, um de meus filhos!
- Mas, não é este um de meus rapazes? - Perguntei ao guia - Não é fulano de tal?
- Sim, é ele - Me respondeu.
- E porque - Acrescentei - Não muda de posição? Como é que esta assim incandescente e não se consome?
- Preferiste ver, por isso agora não me fales. Olha e verás. Ademais, omnis enim igne salietur et omnis victima sale salietur (S. Marcos, 14, 15) [Será salgado com fogo e toda vítima se condimentará com sal].
Mal havia voltado os olhos, quando outro jovem, com furor desesperado e grandíssima velocidade, corre e se precipita na mesma caverna. Também era do oratório. Mal caiu, já não se moveu mais; também ele havia lançado um grito lancinante, e sua voz se havia confundido, com o ultimo eco do grito do que cairá antes.
Chegaram depois outros igualmente precipitados; seu numero aumentava cada vez mais, todos lançavam o mesmo grito e ficavam imóveis incandescentes, como os que os tinham precedido.
Observei que o primeiro teria ficado com a mão no ar e com o pé também suspenso no alto o segundo havia ficado como que dobrado para baixo. Uns tinham os pés no ar; outros, a cara contra o solo; outros, estavam como que suspensos, sustentando-se com um só pé e com uma só mão. Havia os sentados ou estendidos, apoiados de um lado em pé ou de joelhos, com as mãos entre os cabelos. Havia, por fim, um grande número de jovens como estatuas, em posições cada qual mais dolorosa.
Vieram ainda muitos mais aquela fornalha. Jovens que em parte eu conhecia e em parte eram desconhecidos. Lembrei-me então do que está escrito na Bíblia: como se cai pela primeira vez no inferno, assim se estará eternamente. Lignum, in quocumque loco ceciderit, ibi erit [onde cair a árvore, ali ficará].
Aumentava em mim o espanto, e perguntei ao guia:
- Mas esses que ocorrem com tanta velocidade, não sabem que vem ter aqui?
- Oh, sim! Sabem que vão para o fogo! Foram avisado mil vezes, mas correm voluntariamente por causa do pecado, que não detesta e não querem abandonar, porque desprezaram e rechaçaram a misericórdia de Deus que incessantemente os chamava a penitência. Por isso a justiça Divina, provocada, os empurra, os insta, os persegue e não podem parar enquanto não chegam a este lugar.
Qual não deve ser o desespero destes desgraçados sem a menor esperança de sair daqui! - Exclamei. - Queres conhecer as inquietações e os furores das almas deles? Aproxima-te um pouco mais - Respondeu o guia.
quinta-feira, 11 de março de 2010
VISAO DO INFERNO - PARTE II
CONTINUA ...
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