Se a Igreja Católica foi em algum
tempo a verdadeira Igreja, então ela nunca cessou, nunca cessará de o
ser, até o fim dos tempos. Do contrário, Jesus Cristo nos enganou.
Da infalibilidade da Igreja deriva um corolário fatal a todas as
heresias. Qualquer grupo de almas batizadas que se separa da comunhão
dos fiéis e rompe com os ensinamentos e tradições antigas já está condenado pela sua própria novidade.
A Igreja de Cristo é una como a verdade. O Espírito Santo nela habita
com a sua assistência continuada todos os dias, até a consumação dos
tempos. Impossível assinalar uma época na história em que a Esposa do
Verbo se tenha desviado da senda real da ortodoxia. As promessas divinas falhariam, Cristo deixaria de ser Deus e a religião por ele instituída afundaria para sempre no pego imenso das superstições humanas.
Após 15 séculos de cristianismo levante-se um monge no coração da
Alemanha e lança ao mundo o pregão de uma reforma. Simples regeneração
dos costumes?
Não, reforma doutrinal.
O que então se chamava doutrina cristã admitida pela Igreja universal
era uma adulteração profunda do Evangelho, um acervo de superstições e
idolatrias, patrocinadas pelo anticristo de Roma. A Igreja se havia apartado da verdadeira fé: era mister reconduzi-la às fontes genuínas do Evangelho.
Cristo errara a mão. Fundara uma sociedade fadada a destinos
imortais. Plantara-a no mundo como cidade visível para acolher os
eleitos. Mas apenas saída das suas mãos divinas, apenas o mundo pagão,
com a paz de Constantino, viera buscar à sombra da cruz a verdade e a
vida, a Igreja desfalece, corrompe-se, paganiza-se. Onze séculos de ignorância, de trevas e de superstições ensombraram a obra do Salvador.
Foi mister que um frade apóstata, sensual e orgulhoso apontasse no horizonte religioso da humanidade para reconduzi-la aos mananciais cristalinos do Evangelho, e, mais feliz, mais próvido, mais sábio, mais poderoso que o Cristo,
fundasse uma nova Igreja de vitalidade menos efêmera, Igreja
imorredoura e incorruptível, destinada a acolher sob as suas tendas as
gerações do porvir. Eis a significação real do protestantismo. Eis outrossim a sua condenação, a seta fatal que se lhe embebeu no peito e há de arrastá-lo à morte inevitável.
Se Cristo é Deus, se Cristo fundou uma Igreja, essa é indefectível e imortal como as obras divinas. Mas se
a Igreja caiu no erro, as portas do inferno prevaleceram contra ela e
Cristo não manteve a sua promessa. Cristo enganou-nos, Cristo não é
Deus, e o cristianismo é uma grande impostura. É tão forte a consequência que muitos protestantes por este motivo abjuraram o cristianismo. É o exemplo de Staudlin, que dizia:
Se na religião partimos de um princípio sobrenatural (como uma revelação, a Bíblia, por exemplo ou o Corão), cumpre necessariamente admitir que a Divindade, comunicando uma revelação ao homem, deve prover outrossim o modo de impedir que o sentido desta revelação não seja abandonado às arbitrariedades do juízo subjetivo. Esta inconsequência de Jesus Cristo não me permite considerá-lo senão como um sábio benfeitor. [1]
Ochin, outro protestante, que no dizer de Calvino, era mais sábio ele
só que a Itália inteira, chegava pelo mesmo caminho à mesma conclusão.
“Considerando, de um lado, como poderia a Igreja haver sido fundada por
Jesus Cristo e regada com o seu sangue, e, do outro, como poderia ela
ser fundamentalmente adulterada pelo catolicismo, como estamos vendo,
conclui que aquele que a estabeleceu não podia ser o Filho de Deus;
faltou-lhe evidentemente a Providência” [2]. E Ochin, renunciando ao protestantismo, fez-se judeu.
Nada, com efeito, mais diametralmente oposto aos ensinamentos e
promessas do Evangelho do que a ideia de uma Igreja que pode desgarrar
da sua primeira instituição, pregar o erro e a corrupção. O Espírito de
Verdade habitará nela para todo o sempre: prometeu-o formalmente Cristo.
Formalmente mandou-nos o Senhor que obedecêssemos à Igreja em todos os
tempos e em todos os lugares. Não nos disse: Escutai a Igreja durante
300 ou 1.000 anos, mas ouvi-a sempre, sem nenhum limite de tempo, sem nenhuma reserva, sem nenhuma restrição. “Quem não ouve a Igreja, seja considerado como pagão ou pecador” (Mt 18, 17).
Ora, evidentemente, antes de Lutero existia uma Igreja, a Igreja
católica, que por uma sucessão ininterrupta de pastores ascendia aos
apóstolos, e, por meio dos apóstolos, ao próprio Cristo. Esta era a
Igreja instituída pelo Salvador, esta a Igreja de que falam as promessas
evangélicas. Fora dela, a história não conhece outra.
Quando nasceram as igrejas luteranas, calvinistas e anglicanas, já a
Igreja católica tinha uma existência quinze vezes secular. Desde Jesus
Cristo só há uma Igreja, a grande Igreja, como a chamavam os
pagãos, a Igreja, simplesmente, sem epítetos derivados de nomes humanos,
como a chamamos nós. Diante deste fato, afirmai agora que essa Igreja
entrou a corromper-se no 4.º século e de todo adulterou a doutrina
evangélica nas “trevas caliginosas da Idade Média” e tereis anulado as
promessas de sua Providência, atributo distintivo da Divindade. Staudlin
e Ochin são lógicos. Entre o catolicismo e o naturalismo deísta não há
racionalmente meio termo. Se a Igreja católica foi em algum tempo a verdadeira Igreja, nunca cessou, nunca cessará de o ser, até o fim dos tempos [3]. Se não, Jesus Cristo enganou-nos. Seitas cristãs acatólicas são superfetação parasitária destinada a uma existência efêmera.
Por uma feliz incoerência, porém, muitos protestantes não resvalaram
até ao fundo do abismo. Parando à meia encosta, esforçam-se por
conservar alguns restos de cristianismo. Mas nem estes deixaram de
sentir o fio cortante do argumento: onde estava a Igreja antes de Lutero?
Pergunta capciosa? Não, pergunta molesta, pergunta irrespondível, pergunta que vale por si uma apologia inteira, pergunta inexoravelmente fatal ao protestantismo.
Notas
- Transcrito e adaptado da obra do Pe. Leonel Franca, “A Igreja, a Reforma e a Civilização”, 5.ª ed., Rio de Janeiro, Agir, 1948, pp. 143-151.
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