Cristo não disse aos Apóstolos:
“Sentai-vos, escrevei ou viajai e distribui Bíblias”, mas sim: “Ide e
pregai; quem vos ouve, a mim ouve”.
“A Bíblia, e só a Bíblia: eis a única regra de fé”. Verdade capital,
fundamento de todo o cristianismo e que, por isso mesmo, se devera
encontrar expresso com uma clareza insofismável na própria Escritura. No
entanto, abro a Bíblia, percorro-a de cabo a rabo, e não a encontro uma só vez nem sequer acenada! Que terrível decepção! Para firmar a sua norma de fé, o protestantismo começa por violá-lo flagrantemente. A contradição irrompe logo pela primeira porta e crava-se no coração do sistema.
Lutero e os seus discípulos encalçados pela lógica dos católicos
deram-se a folhear as Escrituras à cata de textos que os justificassem. Baldado esforço.
Nenhum protestante instruído ousaria fazer gala das investigações
exegéticas dos primeiro reformadores. Nem foram mais felizes os que lhes
sucederam na desesperada empresa. Assim, da sua excursão pela imensa
seara bíblica colheu o Sr. C. Pereira [1] não mais de três textos.
Quereis ver-lhes a força demonstrativa?
O primeiro é de S. João (5, 39): “Examinai as Escrituras”. O seu significado nem de longe acena à tese protestante.
Cristo num discurso apologético prova contra os seus adversários a
divindade de sua missão. Invoca primeiro o testemunho do Padre, depois o
do Precursor, apela em seguida para os seus milagres e finalmente num
argumento ad hominem aduz a verificação das profecias escritas:
“Vós examinais [2] as Escrituras cuidando ter nelas a vida eterna;
pois são elas que dão testemunho de mim”.
Ver nestas palavras — dirigidas não aos discípulos, mas aos
adversários, propostas não como regra de fé do cristianismo, senão como
prova apologética do seu messiado — uma confirmação da teoria
protestante, é zombar da Escritura e insultar o bom senso dos leitores.
O segundo texto é tirado de S. Mateus (13, 43). Ao terminar a
explicação da parábola do trigo e do joio diz Jesus: “Quem tem ouvidos
de ouvir, ouça”. O Sr. C. Pereira vê aí toda a doutrina da Reforma: só a
Bíblia é regra da fé; só o livre exame deve interpretá-la. Se, a grande
esforço, não chegais a enxergar naquelas palavras todas estas
importantíssimas verdades, a culpa é vossa. Falta-vos aquela agudeza de intuição que caracteriza a exegese do ilustrado gramático.
O Apocalipse de S. João subministra-lhe outro passo não menos
peremptório: “Bem-aventurado aquele que lê e ouve as palavras desta
profecia” (1, 3). O que diz o Discípulo amado, entende-se facilmente.
Ler e ouvir a palavra inspirada é fonte de felicidade. A Igreja a lê
todos os dias na sua liturgia e aconselha repetidamente a sua leitura
aos fiéis. Mas daí à afirmação protestante vai um abismo que nem a hermenêutica mais atrevida é capaz de saltar.
Com estas infantilidades proferidas em tom de seriedade aruspicina,
julga-se o Sr. C. Pereira no direito de concluir: “estes passos e muitos
outros [3] da Sagrada Escritura importam em um reconhecimento formal do
direito, e, ainda mais, do dever do livre exame e juízo privado no
estudo do código divino”. Quem tem ouvidos de ouvir ouça... e pasme
diante desta lógica de por aí além!
Mas se a Escritura, nem mesmo torturada, dá um só texto em favor do
protestantismo, a sua origem, a sua índole, as suas declarações formais depõem concordemente contra ele.
Jesus Cristo só ensinou de viva voz, não escreveu uma só linha.
E todo o cristianismo deveria apoiar-se num livro! E Cristo não nos deu
este livro! E Cristo não disse aos seus apóstolos: “Sentai-vos,
escrevei ou viajai e distribui Bíblias”; senão: “Ide e pregai; quem vos
ouve, a mim ouve”. E os apóstolos foram fiéis à sua missão; poucos escreveram e pouco, todos pregaram e muito.
Já a Igreja estava fundada, já o cristianismo se havia propagado e não havia ainda um livro do Novo Testamento!
O primeiro evangelho de S. Mateus, escrito em aramaico, saiu na
Palestina vários anos depois da ascensão do Senhor; o último, de S.
João, veio à luz nos derradeiros anos do primeiro século. Durante este
tempo a Igreja crescia e prosperava em todo o mundo. Qual era então a
regra de fé dos cristãos? Qual o veículo da doutrina integral de Jesus? O ensino oral, vivo, autêntico dos apóstolos ou dos a quem eles confiaram o governo e a doutrina das cristandades [4].
Em que dia, em que ano, em que época cessou esta economia para dar
lugar ao reino do livro? Só a Bíblia o deveria dizer. Di-lo? Não. Antes
como depois da Bíblia, a Igreja continua sempre como a fundou Cristo,
como a estabeleceram os apóstolos, afirmando o direito de ensinar de
viva voz, de examinar e interpretar os livros que se apresentam como
inspirados. Na história, nenhum vestígio de ab-rogação da antiga regra
de fé.
Seria mesmo possível esta ab-rogação? Seria possível que a Igreja,
mais tarde, substituísse outra norma de crer à que foi ensinada,
praticada e inculcada pelo próprio Cristo e pelos apóstolos?
Mas, enfim, os apóstolos escreveram alguma coisa; escreveram evangelhos e epístolas. Porventura pretenderam encerrar nestes escritos todo o cristianismo, todo o depósito das verdades reveladas? Basta considerar-lhes a índole e natureza para responder imediatamente e sem tergiversar: não.
S. Mateus escreve para provar aos hebreus que Jesus é o Messias
prometido. Da vida do Salvador escolhe os fatos que lhe faziam ao
intento e omite os outros. S. Marcos, que resume a pregação de S. Pedro,
é ainda mais conciso e poucas notícias novas adianta às que já
escrevera S. Mateus. Aos evangelistas anteriores S. Lucas acrescenta
algumas parábolas, alguns milagres, alguns episódios da vida do Senhor.
S. João, a pedido dos fiéis, toma a pena para pôr em maior relevo a
divindade de Cristo, contra as heresias nascentes dos corintianos,
ebionitas e nicolaítas.
E as epístolas? Escrevem-nas os seus autores, segundo a oportunidade,
para corrigir um erro, extirpar um preconceito, expor uma doutrina,
premunir contra uma heresia, dar um conselho, etc. Surgem escândalos na
igreja de Corinto? Dirige-lhe S. Paulo duas epístolas veementes.
Ilaqueiam os judaizantes a boa fé dos Gálatas? Escreve-lhes o apóstolo
precavendo-os contra as suas insídias. A Timóteo, a Tito manda
conselhos, exortações, instruções sobre o modo de governar a Igreja,
etc.
Em todo o Novo Testamento não há um só compêndio ordenado da doutrina cristã,
nada que se pareça com um manual, um código, um catecismo destinado a
substituir o magistério vivo e ser para o futuro o canal exaustivo do
ensinamento cristão. À vista deste caráter evidentemente ocasional de todos os livros inspirados do N.T., como afirmar que só a Bíblia é fonte de fé, que só nela se encerram todas as verdades religiosas?
Há mais. Os próprios apóstolos que deixaram escritos e precisamente os que por último escreveram, são os primeiros a declarar que não escreveram tudo, são os primeiros a insistir em que se conserve a tradição do seu ensino oral.
S. João remata o seu Evangelho advertindo que Jesus fez muitas outras
coisas que não se acham escritas no seu livro nem em livro algum (cf. Jo 20, 30; 21, 25). O mesmo apóstolo termina as suas duas últimas epístolas dizendo expressamente que não quis confiar tudo à tinta e ao pergaminho, reservando para o comunicar de viva voz: os ad os loquemur (cf. 2Jo, 12; 3Jo, 14).
S. Paulo não se cansa de inculcar a necessidade da tradição oral. Aos tessalonicenses: “Estai firmes, irmãos, e conservai as tradições que aprendestes ou de viva voz ou por epístola nossa” (2Ts
2, 15). Na mesma carta: “Nós vos prescrevemos […] que vos aparteis de
todos os irmãos que andem desordenadamente e não segundo a tradição que receberam de nós” (2Ts 3, 6). A Timóteo: “O que de mim ouviste por muitas testemunhas, ensina-o a homens fiéis que se tornem idôneos para ensinar aos outros” (2Tm 2, 2). Aí está claro o ensino vivo, transmitido por tradição de uns a outros. O apóstolo já velho, nas vésperas do martírio, adverte a Timóteo a necessidade de prover quem continue o seu magistério. Nada de livre exame das Escrituras; sempre o ensino oral feito por mestres autorizados.
Nas suas duas epístolas ao mesmo discípulo, insiste ainda São Paulo para que conserve o bom depósito: “bonum depositum custodi” (1Tm 6, 20; 2Tm 1, 14). Com os corintos, na sua primeira epístola, congratula-se porque haviam conservado as suas tradições orais: “sicut tradidi vobis, praecepta mea sustinetis” (1Cor 1, 14).
De todos estes textos o Sr. C. Pereira nem uma palavra! Em
vez de cantar em todos os tons o mesmo estribilho: a Bíblia, e só a
Bíblia, fora melhor que a patenteasse aos seus leitores e lhes dissesse
sinceramente: “Julgai. Em todo o N.T. nem uma só vez se propõe explicitamente ou implicitamente a regra protestante.
Em mil lugares diversos se inculca a necessidade do ensino vivo, a
importância de conservar a tradição, a insuficiência da Escritura, que,
segundo afirma S. João, não encerra tudo o que ensinou o Salvador. Jesus Cristo nunca mandou aos seus discípulos que folheassem em um livro para achar a sua doutrina, mandou pelo contrário aos fiéis que ouvissem aos que Ele mandara pregar: Quem vos ouve, a mim ouve; se algum não ouvir a Igreja,
seja considerado como infiel e publicano, isto é, não pertencente à
minha Igreja; se algum não vos receber nem ouvir as vossas palavras,
saindo da casa ou da cidade, sacudi o pó dos sapatos; Pai, oro, não só
por esses (apóstolos), mas por todos os que hão de crer em mim mediante a sua palavra a fim de que sejam todos uma coisa só. Foi Jesus ainda quem prometeu o seu Espírito de Verdade, a sua assistência espiritual, todos os dias
até à consumação dos séculos, para que os apóstolos, vivendo moralmente
em seus sucessores, continuassem até ao fim dos tempos a ensinar sempre
tudo o que Ele nos mandou. Eis, meus caros leitores, o que diz a Bíblia”.
Assim devera falar o Sr. C. Pereira, se desejasse ser sincero e
realmente lhe interessasse o conhecimento exato e fiel das Escrituras. Mas é mais fácil repisar o estafadíssimo chavão: A Bíblia, só a Bíblia.
É mais cômodo passar a esponja na história e continuar a escrever: Roma
fecha a Bíblia; só a Reforma abriu aos povos o Livro da palavra de
Deus.
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