Mt 16,13-20
O episódio que nos é
proposto ocup Vquando começa a perfilar-se no horizonte de Jesus um destino de cruz.
Depois do êxito
inicial do seu ministério, Jesus experimenta a oposição dos líderes e um certo
desinteresse por parte do Povo. A sua proposta do Reino não é acolhida, senão
por um pequeno grupo – o grupo dos discípulos.
É, então, que Jesus
dirige aos discípulos uma série de perguntas sobre si próprio.
Não se trata, tanto,
de medir a sua quota de popularidade; trata-se, sobretudo, de tornar as coisas
mais claras para os discípulos e confirmá-los na sua opção de seguir Jesus e de
apostar no Reino.
O relato de Mateus é
um pouco diferente do relato do mesmo episódio feito por outros evangelistas
(nomeadamente Marcos – cf. Mc 8,27-30).
Mateus remodelou e
ampliou o texto de Marcos, acrescentando a afirmação de que Jesus é o Filho de
Deus e a missão confiada a Pedro.
O
nosso texto pode dividir-se em duas partes.
A
primeira, de caráter mais cristológico, centra-se em Jesus
e na definição da sua identidade.
A
segunda, de carácter mais eclesiológico, centra-se na
Igreja, que Jesus convoca à volta de Pedro.
Na primeira parte
(vers. 13-16), Jesus interroga duplamente os discípulos: acerca do que as
pessoas dizem dele e acerca do que os próprios discípulos pensam.
A opinião dos
“homens” vê Jesus em continuidade com o passado (“João Batista”, “Elias”,
“Jeremias” ou “algum dos profetas”).
Não captam a condição
única de Jesus, a sua novidade, a sua originalidade. Reconhecem, apenas, que
Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao mundo com uma missão – como os
profetas do Antigo Testamento… Mas não vão além disso.
Na perspectiva dos
“homens”, Jesus é, apenas, um homem bom, justo, generoso, que escutou os apelos
de Deus e que Se esforçou por ser um sinal vivo de Deus, como tantos outros
homens antes d’Ele (vers. 13-14). É muito, mas não é o suficiente: significa
que os “homens” não entenderam a novidade do Messias, nem a profundidade do
mistério de Jesus.
A opinião dos
discípulos acerca de Jesus vai muito além da opinião comum.
Pedro, porta-voz da
comunidade dos discípulos, resume o sentir da comunidade do Reino na expressão:
“Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo” (vers. 16). Nestes dois títulos
resume-se a fé da Igreja de Mateus e a catequese aí feita sobre Jesus.
Dizer que Jesus é “o
Cristo” (Messias) significa dizer que Ele é esse libertador que Israel
esperava, enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe oferecer a
salvação definitiva. No entanto, para os membros da comunidade do Reino, Jesus
não é apenas o Messias: é também o “Filho de Deus”. No Antigo Testamento, a
expressão “Filho de Deus” é aplicada aos anjos (cf. Dt 32,8; Sal 29,1; 89,7;
Job 1,6), ao Povo eleito (cf. Ex 4,22; Os 11,1; Jer 3,19), aos vários membros
do Povo de Deus (cf. Dt 14,1-2; Is 1,2; 30,1.9; Jer 3,14), ao rei (cf. 2 Sm
7,14) e ao Messias/rei da linhagem de David (cf. Sal 2,7; 89,27). Designa a
condição de alguém que tem uma relação particular com Deus, a quem Deus elegeu
e a quem Deus confiou uma missão. Definir Jesus como o “Filho de Deus”
significa, não só que Ele recebe vida de Deus, mas que vive em total comunhão
com Deus, que desenvolve com Deus uma relação de profunda intimidade e que Deus
Lhe confiou uma missão única para a salvação dos homens; significa reconhecer a
profunda unidade e intimidade entre Jesus e o Pai e que Jesus conhece e realiza
os projectos do Pai no meio dos homens. Os discípulos são convidados a entender
dessa forma o mistério de Jesus.
Na segunda parte
(vers. 17-20), temos a resposta de Jesus à confissão de fé da comunidade dos
discípulos, apresentada pela voz de Pedro. Jesus começa por felicitar Pedro
(isto é, a comunidade) pela clareza da fé que o anima. No entanto, essa fé não
é mérito de Pedro, mas um dom de Deus (“não foram a carne e o sangue que to
revelaram, mas sim o meu Pai que está nos céus” – vers. 17). Pedro (os
discípulos) pertence a essa categoria dos “pobres”, dos “simples”, abertos à
novidade de Deus, que têm um coração disponível para acolher os dons e as
propostas de Deus (esses “pobres” e “simples” estão em contraposição com os
líderes – fariseus, doutores da Lei, escribas – instalados nas suas certezas,
seguranças e preconceitos, incapazes de abrir o coração aos desafios de Deus).
O
que é que significa Jesus dizer a Pedro que ele é “a rocha”
(o nome “Pedro” é a tradução grega do hebraico “Kephâ” – “rocha”) sobre a qual
a Igreja de Jesus vai ser construída? As palavras de Jesus têm de ser vistas no
contexto da confissão de fé precedente. Mateus está, portanto, a afirmar que a
base firme e inamovível sobre a qual vai assentar a Ekklesia de Jesus é a fé
que Pedro e a comunidade dos discípulos professam: a fé em Jesus como o
Messias, Filho de Deus vivo.
Para que seja
possível a Pedro testemunhar que Jesus é o Messias Filho de Deus e edificar a
comunidade do Reino, Jesus promete-lhe “as chaves do Reino dos céus” e o poder
de “ligar e desligar”.
A entrega das chaves
equivale à nomeação do “administrador do palácio” de que falava a primeira
leitura: o “administrador do palácio”, entre outras coisas, administrava os
bens do soberano, fixava o horário da abertura e do fechamento das portas do
palácio e definia quais os visitantes a introduzir junto do soberano… Por outro
lado, a expressão “atar e desatar” designava, entre os judeus da época, o poder
para interpretar a Lei com autoridade, para declarar o que era ou não
permitido, para excluir ou reintroduzir alguém na comunidade do Povo de Deus.
Assim, Jesus nomeia
Pedro para “administrador” e supervisor da Igreja, com autoridade para
interpretar as palavras de Jesus, para adaptar os ensinamentos de Jesus a novas
necessidades e situações, e para acolher ou não novos membros na comunidade dos
discípulos do Reino (atenção: todos são chamados por Deus a integrar a
comunidade do Reino; mas aqueles que não estão dispostos a aderir às propostas
de Jesus não podem aí ser admitidos).
Trata-se, aqui, de
confiar a um homem (Pedro) um primado, um papel de liderança absoluta (o poder
das chaves, o poder de ligar e desligar) da comunidade dos discípulos? Ou Pedro
é, aqui, um discípulo que dá voz a todos aqueles que acreditam em Jesus e que
representa a comunidade dos discípulos? É difícil, a partir deste texto, fazer
afirmações concludentes e definitivas. O poder de “ligar e desligar”, por
exemplo, aparece noutro contexto, confiado à totalidade da comunidade e não a
Pedro em exclusivo (cf. Mt 18,18). Provavelmente, o mais correto é ver em
Pedro o protótipo do discípulo; nele, está representada essa comunidade que se
reúne à volta de Jesus e que proclama a sua fé em Jesus como o “Messias” e o
“Filho de Deus”. É a essa comunidade, representada por Pedro, que Jesus confia
as chaves do Reino e o poder de acolher ou excluir. Isso não invalida que Pedro
fosse uma figura de referência para os primeiros cristãos e que desempenhasse
um papel de primeiro plano na animação da Igreja nascente, sobretudo nas
comunidades da Síria (as comunidades a que o Evangelho de Mateus se destina).
Considerar
os seguintes dados:
• Quem é Jesus? O que
é que “os homens” dizem de Jesus? Muitos dos nossos conterrâneos vêem em Jesus
um homem bom, generoso, atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um
mundo diferente; outros vêem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha
uma proposta de vida “interessante”, mas que não conseguiu impor os seus
valores; alguns vêem em Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a
esperança nos corações das multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda
quando as multidões deixaram de se interessar pelo fenómeno; outros, ainda,
vêem em Jesus um revolucionário, ingénuo e inconsequente, preocupado em
construir uma sociedade mais justa e mais livre, que procurou promover os
pobres e os marginais e que foi eliminado pelos poderosos, preocupados em
manter o “status quo”. Estas visões apresentam Jesus como “um homem” – embora
“um homem” excepcional, que marcou a história e deixou uma recordação
imorredoira. Jesus foi, apenas, um “homem” que deixou a sua pegada na história,
como tantos outros que a história absorveu e digeriu?
• Para os discípulos,
Jesus foi bem mais do que “um homem”. Ele foi e é “o Messias, o Filho de Deus
vivo”. Defini-l’O dessa forma significa reconhecer em Jesus o Deus que o Pai
enviou ao mundo com uma proposta de salvação e de vida plena, destinada a todos
os homens. A proposta que Ele apresentou não é apenas uma proposta de “um
homem” bom, generoso, clarividente, que podemos admirar de longe e aceitar ou
não; mas é uma proposta de Deus, destinada a tornar cada homem ou cada mulher
uma pessoa nova, capaz de caminhar ao encontro de Deus e de chegar à vida plena
da felicidade sem fim.
A diferença entre o
“homem bom” e o “Messias, Filho de Deus”, é a diferença entre alguém a quem
admiramos e que é igual a nós, e alguém que nos transforma, que nos renova e
que nos encaminha para a vida eterna e verdadeira.
• “E vós, quem dizeis
que Eu sou?” É uma pergunta que deve, de forma constante, ecoar nos nossos
ouvidos e no nosso coração. Responder a esta questão não significa papaguear
lições de catequese ou tratados de teologia, mas sim interrogar o nosso coração
e tentar perceber qual é o lugar que Cristo ocupa na nossa existência…
Responder a esta questão obriga-nos a pensar no significado que Cristo tem na
nossa vida, na atenção que damos às suas propostas, na importância que os seus
valores assumem nas nossas opções, no esforço que fazemos ou que não fazemos
para o seguir… Quem é Cristo para mim?
• É sobre a fé dos
discípulos (isto é, sobre a sua adesão ao Cristo libertador e salvador, que
veio do Pai ao encontro dos homens com uma proposta de vida eterna e verdadeira)
que se constrói a Igreja de Jesus. O que é a Igreja? O nosso texto responde de
forma clara: é a comunidade dos discípulos que reconhecem Jesus como “o
Messias, o Filho de Deus”. Que lugar ocupa Jesus na nossa experiência de
caminhada em Igreja? Porque é que estamos na Igreja: é por causa de Jesus
Cristo, ou é por outras causas (tradição, inércia, promoção pessoal…)?
• A Igreja de Jesus
não existe, no entanto, para ficar a olhar para o céu, numa contemplação
estéril e inconsequente do “Messias, Filho de Deus”; mas existe para O
testemunhar e para levar a cada homem e a cada mulher a proposta de salvação
que Cristo veio oferecer. Temos consciência desta dimensão “profética” e
missionária da Igreja? Os homens e as mulheres com quem contactamos no dia a
dia – em casa, no emprego, na escola, na rua, no prédio, nos acontecimentos
sociais – recebem de nós este anúncio e este convite a integrar a comunidade da
salvação?
• A comunidade dos
discípulos é uma comunidade organizada e estruturada, onde existem pessoas que
presidem e que desempenham o serviço da autoridade. Essa autoridade não é, no
entanto, absoluta; mas é uma autoridade que deve, constantemente, ser amor e
serviço. Sobretudo, é uma autoridade que deve procurar discernir, em cada
momento, as propostas de Cristo e a interpelação que Ele lança aos discípulos e
a todos os homens.
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