Sempre
me deixou impressionado as palavras que a Liturgia da sexta-feira santa
usa ao referir-se ao culto à Cruz: “solene adoração da santa Cruz”,
deixando inclusive a possibilidade de dobrar o joelho diante dela. Penso
que essas palavras calaram no coração de mais de um cristão deixando-o
pensativo. A reflexão teológica que segue é – aceitando com alegria e
admiração o que a Igreja em sua liturgia nos traz – uma tentativa de
entender melhor a fé expressada na oração da Igreja, e espero não
confundir mais a cabeça do leitor. Pode-se adorar a Cruz? Em que
sentido? Parece-me ver uma explicação bastante satisfatória numas
palavras de um teólogo muito recomendado pela mesma Igreja.
Santo
Tomás de Aquino estuda a “adoração” na terceira parte da Suma de
Teologia, na questão 25. Vamos segui-lo passo a passo. Ao chegar no
quarto artigo dessa questão encontramo-nos com uma excelente definição
de adoração, tal como é entendido no sentido comum atual. Santo Tomás
diz que adoração é colocar nossa esperança de salvação em alguém. A Deus
damos adoração por que é o nosso Criador, daí que a adoração só se deve
dar ao Deus Uno e Trino, esse é um principio claro que devemos ter
conosco durante todo esse estudo: só a Deus se deve a adoração, porque
Ele é o nosso Criador, nós somos suas criaturas, e nEle pomos nossa
esperança de salvação. Salvadas essas preliminares, vamos à nossa
questão. Procurarei fazer acessível o pensamento de Santo Tomás sabendo
que não é tarefa fácil. É preciso fazer esse estudo com muita
concentração.
Em primeiro lugar, a fé
cristã diz que em Cristo há uma única Pessoa, a Segunda da Trindade,
que é divina, e duas naturezas, a humana e a divina, que estão unidas
nessa única Pessoa divina (Concilio de Calcedônia, ano 451). No primeiro
artigo Santo Tomás se pergunta se a adoração que se dá à Humanidade de
Cristo é a mesma que se dá à sua Divindade. E como objeção se poderia
dizer que a Humanidade de Cristo não é comum a Ele e ao Pai, como o é a
Divindade. Tomás de Aquino começa por dizer que na honra que se dar a
uma determinada realidade há que considerar duas coisas: a realidade
honrada e a causa dessa honra. Quanto à primeira, é preciso dizer que a
honra que se deve, por exemplo a uma pessoa, é devida a toda a pessoa,
não só à sua mão ou ao seu pé, a uma parte; se por algum motivo alguém
dissesse que honra a mão ou outra parte de alguém só o faria em razão de
toda a pessoa, in istis partibus honoratur totum, nessas partes se
honraria toda a realidade. Quando à segunda, a causa da honra encontra
sua justificação na excelência da pessoa honrada. E conclui o nosso
teólogo: como em Cristo há uma única Pessoa, a divina, na qual estão
unidas a natureza humana e a natureza divina, a Cristo se dá uma única
adoração em razão de sua única Pessoa e, por tanto, ao adorar uma parte
de Cristo, adoramos todo o Cristo.
No
artigo segundo, Tomás de Aquino dá um passo a mais. Já sabemos que à
Humanidade e à Divindade de Cristo se dá uma mesma adoração e glória em
razão da única Pessoa de Cristo. Mas, será que se pode dizer que a
adoração que se dá à Humanidade de Cristo é adoração de “latria”, isto
é, a adoração devida só a Deus, ao qual o homem se entrega colocando sua
esperança de salvação? Considerando que a Encarnação é para sempre, ou
seja, a Humanidade e a Divindade em Cristo desde a Encarnação nunca se
separaram e jamais se separarão (nem mesmo na morte de Cristo, já que a
morte é a separação de corpo e alma, o que se deu em Cristo, não da
Humanidade e da Divindade, o que não se deu em Cristo), a pergunta
pareceria sem sentido. No entanto, na hipótese de uma consideração
separada, diz Santo Tomás de Aquino que se deve considerar a adoração à
Humanidade de Cristo de duas maneiras. Em primeiro lugar: a adoração que
se dá à Humanidade de Cristo em razão de sua união à Pessoa divina;
nesse caso, se trata de uma verdadeira adoração de “latria” à sua
Santíssima Humanidade já que ao adorá-la estamos adorando o mesmo Verbo
de Deus encarnado. Nesse sentido, diz São João Damasceno que se adora a
carne de Cristo não por causa da carne em si mesma, mas por que está
unida à pessoa do Verbo de Deus. A segunda consideração é a respeito da
adoração que se deve à Humanidade de Cristo por causa das perfeições
dessa Humanidade em quanto cheia de todos os dons da graça; nesse
sentido se deve adorá-la “adoratione duliae”, com uma adoração de dulia,
ou seja com a adoração que se dá às criaturas (a Humanidade de Cristo
foi criada); na resposta à primeira objeção, Santo Tomás dirá com mais
precisão que à Humanidade de Cristo considerada separadamente se deve
dar uma adoração de “hiperdulia”.
Chegados
aqui o leitor poderia assustar-se: Santo Tomás de Aquino diz que se
deve adorar às criaturas? Não. Tomás de Aquino simplesmente mostra que
na sua época a palavra adoração não tinha a mesma carga que tem nos
nossos dias. Para ele adoração é o mesmo que “honra”, nesse sentido o
determinante nessa questão não é a adoração, mas a “latria”, que é a o
tipo de adoração que se deve só a Deus; a adoração de “dulia” é para ele
o que nós hoje em dia conhecemos como “veneração”; finalmente a
adoração de “hiperdulia”, que seria uma “veneração especial”. Um
exemplo: cantamos no Hino Nacional referindo-no ao Brasil as seguintes
palavras: “Ó terra amada, idolatrada”. Será que estamos idolatrando a
nossa Pátria? Claro que não. Quando dizemos “terra idolatrada”
referindo-nos ao Brasil queremos dizer simplesmente que o nosso País
é-nos muito querido, estamos simplesmente cumprindo com o quarto
mandamento que inclui a amor à Pátria. Que perigo seria ficar só nas
palavras sem dar-nos conta do sentido que elas nos trazem! Cada palavra
quer significar uma realidade e não podemos simplesmente ficar preso à
palavra em si, mas procurar chegar à realidade que essa palavra nos quer
transmitir.
Continuemos com Santo
Tomás. Nesse terceiro momento (art.3) nos aproximamos mais da nossa
questão. A pergunta agora é se um cristão pode adorar com adoração de
latria as imagens de Cristo. Tomás de Aquino, como bom cristão, tem
horror à idolatria. A resposta do Santo Doutor se compreende ao olhar
tanto a Cristo, Verbo de Deus encarnado, quanto ao movimento da nossa
alma ao adorá-lo. Tomás de Aquino diz claramente que a reverência é algo
devido apenas às criaturas racionais, não às coisas. No entanto,
fixando-nos nesse movimento da nossa alma quando olha uma imagem,
percebemos que olhamos a imagem não só como uma coisa, um pedaço de
madeira por exemplo, mas também como imagem de outra realidade. Quando
olhamos uma imagem de Cristo, o movimento da nossa alma é aquele que vê a
imagem em quanto imagem, ou seja, em quanto imagem de uma outra
realidade. Diz Santo Tomás que esse movimento de ver a imagem de Cristo
em quanto imagem da Pessoa de Cristo faz com que estejamos voltados ao
mesmo Cristo, de tal maneira que à imagem em quanto imagem se deve a
mesma adoração que se dá à realidade, já que esse movimento da nossa
alma vê na imagem a realidade, não o pedaço de madeira, por exemplo. Não
acontece o mesmo se olhamos a imagem em quanto um pedaço de madeira,
nesse caso não se deve dar-lhe nenhuma reverência, já que a reverência é
dada tão somente às criaturas racionais. Conclusão: às imagens de
Cristo em quanto “imagens” de Cristo devemos dar adoração de latria,
pois essa adoração não fica na imagem, mas se dirige à realidade, que é
Cristo mesmo.
Mas alguém poderia
dizer que essa é uma doutrina estranha e que não está na Escritura
Santa. Em primeiro lugar, a Igreja Católica não tem como único veículo
da Divina Revelação apenas a Escritura (esse é um principio protestante,
a sola Scriptura), mas também da Tradição. Diz Tomás de Aquino na
resposta à quarta objeção: “por um instinto familiar do Espírito Santo,
certas Igrejas conservaram tradições que não estão escritas, mas
colocadas para serem observadas pelos fiéis. O mesmo São Paulo diz aos
Tessalonicenses: “ficai firmes e conservai os ensinamentos que de nós
aprendestes, seja por palavras, seja por carta nossa” (2,15). E entre
essas tradições se encontra a adoração das imagens de Cristo”.
Santo
Tomás de Aquino vai descendo a questões mais concretas e se pergunta se
à Cruz de Cristo se deve adorar com adoração de latria. O leitor
perceberá que no fundo a nossa pergunta inicial já foi respondida.
Esqueceu-se da pergunta? Pode-se adorar a Santa Cruz? Mas talvez passou
despercebida a resposta. Temos a oportunidade de tratá-la agora
diretamente.
Já ficou claro que
apenas aos seres racionais se dá alguma reverência; às coisas, nenhuma, a
não ser em razão da natureza racional, nesse sentido, diz Tomás de
Aquino, que quando os homens veneravam as vestes do rei queriam
simbolizar através desse ato uma veneração ao mesmo rei. Existe um
segundo tipo de veneração que se pode dar a uma coisa: aquela que se dá
em razão da união que guarda com a realidade em quanto que a realidade
entrou em contato (físico) com a imagem. Se nos referimos à mesma Cruz
na qual Cristo foi crucificado, pensamos no Cristo nela estendido, a
Cruz entrou em contato com os membros santíssimos de Cristo, nela o seu
Sangue preciosíssimo foi derramado. Por tanto, à Cruz na qual Cristo foi
crucificado devemos dar adoração de latria. O que acontece é que, em
quanto às outras imagens de Cristo crucificado, adoramos com adoração de
latria somente em razão desse movimento segundo o qual a nossa alma não
fica parada na imagem, mas se dirige à mesma realidade, que é a Pessoa
de Cristo, a Cruz na qual Cristo foi crucificado tem também um
significado todo especial a causa do contato com os membros santíssimos
do único Redendor dos homens, Jesus Cristo. Penso que com isso a nossa
pergunta inicial recebe resposta pela segunda vez: realmente a Igreja
adora a Santa Cruz porque vê nela não o objeto material em si, mas o que
ela significa, Jesus Cristo crucificado, nosso único Salvador.
E
se alguém se escandaliza ainda com essa expressão, talvez bastaria
citar a São Paulo: “mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para
os judeus e loucura para os pagãos; mas, para os eleitos – quer judeus
quer gregos -, força de Deus e sabedoria de Deus” (1 Cor 1,23-24). Por
outro lado, não o nego, ver uma imagem em quanto imagem e vê-la apenas
em quanto um pedaço de pau são movimentos espontâneos da nossa alma, mas
à hora de fazer uma reflexão sobre isso encontramo-nos com verdadeiras
dificuldades de compreensão. Mas, sejamos honestos: quando nós não
entendemos uma coisa não podemos dizer que essa coisa não é assim só
porque nós não a entendemos, simplesmente não entendemos. Isso parece-me
de bom senso!
Com
os princípios a postos, o artigo quinto e o sexto desta questão
responderão que à Mãe de Deus, Maria, e aos outros Santos e suas
relíquias, jamais se deve adorar com adoração de latria, isso seria
idolatria, mas apenas com o que nós chamamos hoje em dia de veneração e
que Santo Tomás chamaria de “adoração de hiperdulia” para Nossa Senhora e
“adoração de dulia” para os Santos. Penso que não seria demasiado
recordar que a palavra “adoração” para Santo Tomás significa “honra,
veneração, respeito”, o que determina é se essa honra é de latria ou de
hiperdulia ou de dulia.
Sinto muito
se a leitura desse pequeno artigo o deixou mais confuso. Acho que com
uma segunda ou terceira leitura se poderia entender melhor. Se não,
remito à questão da Suma de Teologia, III parte, questão 25. Para
terminar, baste o que a Igreja nos diz e que expressa a sua fé: “Crucem
tuam adoramus, Domine, et sanctam ressurrectionem tuam laudamus et
glorificamus: ecce enim propter lignum venit gaudium in universo mundo” :
adoramos, Senhor, a tua Cruz, e louvamos e glorificamos a tua santa
ressurreição: por causa do lenho da Cruz vem a todo o mundo o gozo
(Ant.1ª para ser cantada enquanto se adora a Santa Cruz).
Pe. Françoá Costa
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