domingo, 3 de setembro de 2017

22º DOMINGO DO TEMPO COMUM - TOMAR A CRUZ E SEGUIR JESUS

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A liturgia do 22º domingo do tempo comum convida-nos a descobrir a “loucura da cruz”: o acesso a essa vida verdadeira e plena que Deus nos quer oferecer passa pelo caminho do amor e do dom da vida (cruz).
Na primeira leitura, um profeta de Israel (Jeremias) descreve a sua experiência de “cruz”. Seduzido por Jahwéh, Jeremias colocou toda a sua vida ao serviço de Deus e dos seus projetos. Nesse “caminho”, ele teve que enfrentar os poderosos e pôr em causa a lógica do mundo; por isso, conheceu o sofrimento, a solidão, a perseguição… É essa a experiência de todos aqueles que acolhem a Palavra de Jahwéh no seu coração e vivem em coerência com os valores de Deus.
A segunda leitura convida os cristãos a oferecerem toda a sua existência de cada dia a Deus. Paulo garante que é esse o sacrifício que Deus prefere. O que é que significa oferecer a Deus toda a existência? Significa, de acordo com Paulo, não nos conformarmos com a lógica do mundo, aprendermos a discernir os planos de Deus e a viver em consequência.
No Evangelho, Jesus avisa os discípulos de que o caminho da vida verdadeira não passa pelos triunfos e êxitos humanos, mas passa pelo amor e pelo dom da vida (até a morte, se for necessário). Jesus vai percorrer esse caminho; e quem quiser ser seu discípulo tem de aceitar percorrer um caminho semelhante.
1ª leitura: Jr. 20,7-9 - Ambiente
Jeremias nasceu em Anatot (a norte de Jerusalém), por volta de 650 a.C. Ainda novo (por volta de 627/626 a.C.), sentiu que Deus o chamava a ser profeta. A atividade profética de Jeremias prolongou-se até depois da destruição de Jerusalém pelos babilônios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta foi, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém). Jeremias viveu numa época histórica bastante conturbada. Foi um período de grande instabilidade, de injustiças sociais gritantes, de infidelidade religiosa. Quer Joaquim (609-597 a.C.) quer Sedecias (597-586 a.C.) foram reis fracos, incapazes de responder com êxito às exigências da conjuntura internacional e de manter uma política de neutralidade em relação às grandes potências da época (sobretudo o Egito e a Babilônia). Jeremias – convencido de que Judá estava a ser infiel a Deus ao deixar de confiar em Jahwéh e ao colocar a sua segurança e a sua esperança nas mãos dos povos estrangeiros – criticou duramente os líderes do Povo e anunciou uma invasão estrangeira, destinada a castigar os pecados de Judá.
A pregação de Jeremias não foi, no entanto, apreciada pelo Povo e pelos líderes. Considerado um “profeta da desgraça”, Jeremias apenas conseguiu criar o vazio à sua volta e viu os amigos, os familiares, os conhecidos voltarem-lhe as costas. Conheceu a solidão, o abandono, a maledicência… Acusado de traição e encarcerado (cf. Jr. 37,11-16), o profeta chegou a correr perigo de vida (cf. Jr. 38,11-13).
Jeremias é o paradigma dos profetas que sofreram por causa da sua missão. De natureza sensível e cordial, homem de paz, Jeremias não foi feito para o confronto, para a violência das palavras ou dos gestos; mas Jahwéh chamou-o para “arrancar e destruir, para exterminar e demolir” (Jr. 1,10), para predizer desgraças e anunciar destruição e morte (cf. Jr. 20,8). Como consequência, foi continuamente objeto de desprezo e de irrisão e todos o maldiziam e se afastavam mal ele abria a boca. E esse homem bom, sensível e delicado sofria terrivelmente pelo abandono e pela solidão a que a missão profética o condenava.
Jeremias estava, verdadeiramente, apaixonado pela Palavra de Jahwéh e sabia que não teria descanso se não a proclamasse com fidelidade. Mas, nos momentos mais negros de solidão e de frustração, o profeta deixou, algumas vezes, que a amargura que lhe ia no coração lhe subisse à boca e se transformasse em palavras. Então, dirigia-se a Deus e censurava-O asperamente por causa dos problemas que a missão lhe trazia.
No Livro de Jeremias aparecem, a par e passo, queixas e lamentos do profeta, condenado a essa vida de aparente fracasso. Alguns desses textos são conhecidos como “confissões de Jeremias” e são verdadeiros desabafos em que o profeta expõe a Jahwéh, com sinceridade e rebeldia, a sua desilusão, a sua amargura e a sua frustração (cf. Jr. 11, 18-23; 12,1-6; 15,10.15-20; 17,14-18; 18,18-23; 20,7-18). O texto que hoje nos é proposto faz parte de uma dessas “confissões”.
Mensagem
O texto apresenta-nos uma desconcertante oração de Jeremias num momento dramático de desilusão e de desânimo (quando, preso pelos ministros de Sedecias e atirado para uma cisterna, se afundava no lodo? – cf. Jr. 38,4-6).
Esta estranha oração adota a forma de denúncia ou de acusação do profeta ao seu Deus. Essa acusação é formulada através da imagem da “sedução”: é como se Jahwéh tivesse namorado o profeta até ao ponto de o seduzir (o verbo “pth”, aqui utilizado, aparece em Ex. 22,15 para falar da sedução de uma jovem solteira). Deus insinuou-Se na vida do profeta, pressionou-o, subjugou-o, dominou-o e o profeta não soube como resistir às investidas de Deus (o verbo “ykl”, utilizado no v. 7 para definir a forma como Deus atuou em relação ao profeta, significa “exercer o poder”, “prevalecer sobre alguém”, “dominar”). O profeta, embalado pelas promessas desse Deus sedutor, incapaz de resistir ao seu “charme” e aos seus jogos de sedução, pressionado, dominado, violentado, entregou-se completamente nas suas mãos e dedicou toda a vida ao seu serviço.
O que é que o profeta ganhou com essa entrega? Nada. Esse Deus que o seduziu, que o forçou a dedicar a vida ao serviço profético, abandonou-o miseravelmente e deixou-o entregue aos insultos e às zombarias dos seus adversários. O profeta está desiludido e decepcionado… Essa desilusão irrompe em resolução firme de resistir à voz do sedutor: “não voltarei a falar nele, não falarei mais em seu nome” (v. 9). Conseguirá o profeta levar até ao fim o seu propósito?
Não. O amor por Deus e pela sua Palavra está tão vivo no coração do profeta que é inútil resistir: “procurava contê-lo, mas não podia” (v. 9). A Palavra de Deus é um fogo devorador, que consome o coração do profeta e que não o deixa demitir-se da missão e esconder-se numa vida cômoda e instalada. Ao profeta resta, portanto, continuar ao serviço da Palavra, enfrentando o seu destino de solidão e de sofrimento, na esperança de, ao longo da caminhada, reencontrar esse amor de Deus que um dia o seduziu e ao qual o profeta nunca saberá renunciar.
Atualização
A história de Jeremias é, em termos gerais, a história de todos aqueles que Deus chama a ser profetas. Ser sinal de Deus e dos seus valores significa enfrentar a injustiça, a opressão, o pecado e, portanto, pôr em causa os interesses egoístas e os esquemas sobre os quais, tantas vezes, se constrói a história do mundo; por isso, o “caminho profético” é um caminho onde se lida, permanentemente, com a incompreensão, com a solidão, com o risco. Deus nunca prometeu a nenhum profeta um caminho fácil de glórias e de triunfos humanos. Temos consciência disso e estamos dispostos a seguir esse caminho?
No batismo, fomos ungidos como “profetas”, à imagem de Cristo. Estamos conscientes dessa vocação a que Deus, a todos, nos convocou? Temos a noção de que somos a “boca” através da qual a Palavra de Deus ressoa no mundo e se dirige aos homens?
Neste texto – e, em geral, em toda a vida de Jeremias – impressiona-nos o espaço fundamental que a Palavra de Deus ocupa na vida do profeta. Ela tomou conta do seu coração e dominou-o totalmente. É uma “paixão” que – apesar de ter trazido ao profeta uma história pessoal de sofrimento e de risco – não pode ser calada e sufocada. Que espaço ocupa a Palavra de Deus ocupa na minha vida? Amo, de forma apaixonada, a Palavra de Deus? Estou disposto a correr todos os riscos para que a Palavra de Deus alcance a vida dos meus irmãos e renove o mundo?
O lamento de Jeremias não deve escandalizar-nos; mas deve ser entendido no contexto de uma situação trágica de sofrimento intolerável. É o grito de um coração humano dolorido, marcado pela incompreensão dos que o rodeiam, pelo abandono, pela solidão e pelo aparente fracasso da missão a que devotou a sua vida. É o mesmo lamento de tantos homens e mulheres, em tantos momentos dramáticos de solidão, de sofrimento, de incompreensão, de dor. É a expressão da nossa finitude, da nossa fragilidade, das nossas limitações, da nossa humanidade. É precisamente nessas situações que nos dirigimos a Deus (às vezes até com expressões menos próprias) e Lhe dizemos a falta que Ele nos faz e o quanto a nossa vida é vazia e sem sentido se Ele não nos estender a sua mão. Esses momentos não são, propriamente, momentos negativos da nossa caminhada de fé e de relação com Deus; mas são momentos (talvez necessários) de crescimento e de amadurecimento, em que experimentamos a nossa fragilidade e descobrimos que, sem Deus e sem o seu amor, a nossa vida não faz sentido.
2ª leitura: Rm. 12,1-2 - Ambiente
Depois de apresentar a sua catequese sobre o projeto de salvação que Deus tem para todos os homens (cf. Rm. 1,18-11,36), Paulo vai descer a considerações de caráter mais prático, destinadas a mostrar como deve viver aquele que é chamado à salvação.
Essas indicações práticas aparecem na segunda parte da carta aos Romanos (cf. Rm. 12,1-15,13). Aí Paulo apresenta um longo discurso exortativo, no qual convida os romanos (e os crentes em geral) a comportar-se de acordo com as exigências da sua condição de batizados. Aderir a Cristo e acolher a salvação que Ele veio oferecer não significa ficar no simples campo das verdades teóricas e abstratas (por muito bonitas e profundas que elas possam ser), mas exige um comportamento coerente com os valores de Jesus e com a vida nova que Ele oferece. A adesão a Jesus implica assumir atitudes, nos vários momentos e situações da vida diária, que sejam a expressão existencial desse dinamismo de vida nova que resulta do batismo.
O texto que hoje nos é proposto é a introdução à segunda parte da carta e a esta reflexão prática sobre as exigências do caminho cristão. Apresentam-se como uma espécie de ponte entre a parte teórica (primeira parte da carta) e a parte prática (segunda parte da carta).
Mensagem
A bondade e o amor de Deus (de que Paulo tratou abundantemente nos capítulos anteriores) convida a uma resposta do homem. Como é que deve ser essa resposta?
Paulo convida os crentes a oferecerem-se a si mesmos (literalmente “os vossos corpos”. “Corpo” não designa, aqui, essa entidade distinta da alma, mas a pessoa na sua totalidade, enquanto ser em relação. É o homem enquanto ser que se relaciona com Deus, com os outros homens e com o mundo). Os cristãos são aqueles que se entregam completamente nas mãos de Deus e que, em todos os instantes da sua existência, vivem para Deus. Essa oferta será um “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. É esse “culto espiritual” (pode traduzir-se também como “culto lógico” ou “culto razoável”) que Deus espera do homem. O adjetivo utilizado por Paulo para referir-se ao culto é utilizado em contextos análogos, tanto por autores judeus como por autores gregos, para marcar a diferença entre um culto formal e exterior, que não compromete o homem e o culto verdadeiro, que brota do coração e que compromete o homem inteiro (cf. Am. 5,21-25; Os. 6,6; Jo 4,23-24). Os crentes devem, portanto, oferecer inteiramente as suas vidas a Deus; e é esse o culto que Deus espera desses sobre quem derrama a sua misericórdia e a quem oferece a salvação.
Na perspectiva de Paulo, o que é que significa o homem oferecer inteiramente a sua vida a Deus?
Significa, em primeiro lugar, não se conformar com “este mundo” – isto é, manter uma distância crítica em relação aos esquemas do mundo e aos valores sobre os quais este mundo de egoísmo e de pecado se constrói. Significa, em segundo lugar, uma mudança de coração, de mentalidade e de inteligência, que possibilite ao homem discernir qual é a vontade de Deus, a fim de poder percorrer, com fidelidade, os seus caminhos.
O “culto espiritual” de que Paulo fala é, portanto, a entrega a Deus da totalidade da vida do homem. Na sua relação com Deus, com os outros homens e com o mundo, o cristão deve renunciar aos caminhos do egoísmo, do orgulho, da auto-suficiência, da injustiça e do pecado; e deve procurar conhecer os projetos de Deus, acolhê-los no coração e viver em coerência total com as suas propostas.
Atualização
Como é que o crente deve responder aos dons de Deus? Com atos rituais solenes e formais, com orações ou gestos tradicionais repetidos de forma mecânica, com a oferta de uma “esmola” para os cofres da Igreja, com uma peregrinação a um santuário? Paulo responde: o culto que Deus quer é a nossa vida, vivida no amor, no serviço, na doação, na entrega a Deus e aos irmãos. Respondemos ao amor de Deus entregando-nos nas suas mãos, tentando perceber as suas propostas, vivendo na fidelidade aos seus projetos. Como é o culto que eu procuro prestar a Deus: é um somatório de gestos mecânicos, rituais e externos, ou é uma vida de entrega e de amor a Deus e aos homens meus irmãos?
“Não vos conformeis com este mundo” – pede Paulo. O cristão é alguém que não pactua com um mundo que se constrói à margem ou contra os valores de Deus. O cristão não pode pactuar com a violência como meio para resolver os problemas, nem com a lógica materialista do sucesso a qualquer custo, nem com as leis do neo-liberalismo que deixam atrás uma multidão de vencidos e de sofredores, nem com as exigências de uma globalização que favorece alguns privilegiados mas aumenta as bolsas de miséria e de exclusão, nem com a forma de organização de uma sociedade que condena à solidão os velhos e os doentes… Eu sou um comodista, egoisticamente instalado no meu cantinho a devorar a minha pequena fatia de felicidade, ou sou alguém que não se conforma e que luta para que os projetos de Deus se concretizem?
“Transformai-vos pela renovação espiritual da vossa mente” – diz Paulo. Estou instalado nos meus preconceitos, nas minhas certezas e seguranças, nos meus princípios imutáveis, ou estou sempre numa permanente escuta de Deus, dos seus caminhos, dos seus projetos e propostas?
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Evangelho: Mt. 16,21-27
Naquele tempo, 21Jesus começou a mostrar a seus discípulos que devia ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia.
22Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isso nunca te aconteça!”
23Jesus, porém, voltou-se para Pedro e disse: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!”
24Então Jesus disse aos discípulos: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. 25Pois, quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la.
26De fato, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua vida? O que poderá alguém dar em troca de sua vida? 27Porque o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta”.
— Palavra do Senhor.
— Glória a vós, Senhor.
 
O episódio que o Evangelho de hoje nos propõe vem na sequência daquele que lemos e refletimos no passado domingo. Então (cf. Mt. 16,13-20), a comunidade dos discípulos expressava a sua fé em Jesus como o “Messias, Filho de Deus” (é sobre essa fé – diz Jesus – que a Igreja será edificada); agora, Jesus vai explicar a esse grupo de discípulos o sentido autêntico do seu messianismo e da sua filiação divina.
Continuamos, ainda, no âmbito da “instrução sobre o Reino” (cf. Mt. 13,1-17,27); no entanto, iniciamos, com este episódio, uma secção onde se privilegia a catequese sobre esse destino de cruz que aparece no horizonte próximo de Jesus (cf. Mt. 16,21-17,27).
Nesta fase, as multidões ficaram para trás e os líderes já decidiram rejeitar Jesus. Quem continua a acompanhar Jesus, de forma indefectível, é o grupo dos discípulos. Eles acreditam que Jesus é o “Messias, Filho de Deus” e querem partilhar o seu destino de glória e de triunfo. Jesus vai, no entanto, explicar-lhes que o seu messianismo não passa por triunfos e êxitos humanos, mas pela cruz (cf. Mt. 16,21-17,21); e vai avisá-los de que viver como discípulo é seguir esse caminho da entrega e do dom da vida (cf. Mt. 17,22-27).
Mateus escreve o seu Evangelho para comunidades cristãs do final do séc. I (anos 80/90). São comunidades instaladas, que já esqueceram o fervor inicial e que se acomodaram num cristianismo morno e pouco exigente. Com a aproximação de tempos difíceis (no horizonte próximo estão já as grandes perseguições do final do séc. I), é conveniente que os crentes recordem que o caminho cristão não é um caminho fácil, percorrido no meio de êxitos e de aplausos, mas é um caminho difícil, que exige diariamente a entrega e o dom da vida.
Mensagem
O nosso texto pode, claramente, dividir-se em duas partes. Na primeira (vs. 21-23), Jesus anuncia aos discípulos a sua paixão; na segunda (vs. 24-28), Jesus apresenta uma instrução sobre o significado e as exigências de ser seu discípulo.
A primeira parte começa com o anúncio de Jesus de que o caminho para a ressurreição passa pelo sofrimento e pela morte na cruz. Não é uma previsão arriscada: depois do confronto de Jesus com os líderes judeus e depois que estes rejeitaram de forma absoluta a proposta do Reino, é evidente que o judaísmo medita a eliminação física de Jesus. Jesus tem consciência disso; no entanto, não se demite do projeto do Reino e anuncia que pretende continuar a apresentar, até ao fim, os planos do Pai.
Pedro não está de acordo com este final e opõe-se, decididamente, a que Jesus caminhe em direção ao seu destino de cruz. A oposição de Pedro (e dos discípulos, pois Pedro continua a ser o porta-voz da comunidade) significa que a sua compreensão do mistério de Jesus ainda é muito imperfeita. Para ele, a missão do “Messias, Filho de Deus” é uma missão gloriosa e vencedora; e, na lógica de Pedro – que é a lógica do mundo – a vitória não pode estar na cruz e no dom da vida.
Jesus dirige-Se a Pedro com alguma dureza, pois é preciso que os discípulos corrijam a sua perspectiva de Jesus e do plano do Pai que Ele vem realizar. O plano de Deus não passa por triunfos humanos, nem por esquemas de poder e de domínio; mas o plano do Pai passa pelo dom da vida e pelo amor até às últimas consequências (de que a cruz é a expressão mais radical). Ao pedir a Jesus que não embarque nos projetos do Pai, Pedro está a repetir essas tentações que Jesus experimentou no início do seu ministério (cf. Mt. 4,3-10); por isso, Mateus coloca na boca de Jesus a mesma resposta que, então, Ele deu ao diabo: “Retira-te, Satanás”. As palavras de Pedro – como as do diabo anteriormente – pretendem desviar Jesus do cumprimento dos planos do Pai; e Jesus não está disposto a transigir com qualquer proposta que O impeça de concretizar, com amor e fidelidade, os projetos de Deus. Na segunda parte, Jesus apresenta uma instrução sobre as atitudes próprias do discípulo. Quem quiser ser discípulo de Jesus, tem de “renunciar a si mesmo”, “tomar a cruz” e seguir Jesus no seu caminho de amor, de entrega e de dom da vida.
O que é que significa, exatamente, renunciar a si mesmo? Significa renunciar ao seu egoísmo e auto-suficiência, para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O cristão não pode viver fechado em si próprio, preocupado apenas em concretizar os seus sonhos pessoais, os seus projetos de riqueza, de segurança, de bem-estar, de domínio, de êxito, de triunfo… O cristão deve fazer da sua vida um dom generoso a Deus e aos irmãos. Só assim ele poderá ser discípulo de Jesus e integrar a comunidade do Reino.
O que é que significa “tomar a cruz” de Jesus e segui-l’O? A cruz é a expressão de um amor total, radical, que se dá até à morte. Significa a entrega da própria vida por amor. “Tomar a cruz” é ser capaz de gastar a vida – de forma total e completa – por amor a Deus e para que os irmãos sejam mais felizes. No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as razões pelas quais eles devem abraçar a “lógica da cruz” (vs. 25-27). Em primeiro lugar, Jesus convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos não fracassou; mas ganhou a vida eterna, a vida verdadeira que Deus oferece a quem vive de acordo com as suas propostas (v. 25).
Em segundo lugar, os discípulos são convidados a perceber que a vida que gozam neste mundo não é a vida definitiva. Não devem, pois, preocupar-se em preservá-la a qualquer custo: devem é procurar encontrar, já nesta terra, essa vida definitiva que passa pelo amor total e pelo dom a Deus e aos outros. É essa a grande meta que todos devem procurar alcançar (v. 26). Em terceiro lugar, os discípulos devem pensar no seu encontro final com Deus: nessa altura, Deus dar-lhes-á a recompensa pelas opções que fizeram… Esta alusão ao momento do juízo não é rara em Mateus: ele recorre, com alguma frequência, a esta motivação para fundamentar as exigências éticas da vida cristã.
Atualização
Na reflexão, considerar os seguintes dados:
Frente a frente, o Evangelho deste domingo coloca a lógica dos homens (Pedro) e a lógica de Deus (Jesus). A lógica dos homens aposta no poder, no domínio, no triunfo, no êxito; garante-nos que a vida só tem sentido se estivermos do lado dos vencedores, se tivermos dinheiro em abundância, se formos reconhecidos e incensados pelas multidões, se tivermos acesso às festas onde se reúne a alta sociedade, se tivermos lugar no conselho de administração da empresa. A lógica de Deus aposta na entrega da vida a Deus e aos irmãos; garante-nos que a vida só faz sentido se assumirmos os valores do Reino e vivermos no amor, na partilha, no serviço, na solidariedade, na humildade, na simplicidade. Na minha vida de cada dia, estas duas perspectivas confrontam-se, a par e passo… Qual é a minha escolha? Na minha perspectiva, qual destas duas propostas apresenta um caminho de felicidade seguro e duradouro?
Jesus tornou-Se um de nós para concretizar os planos do Pai e propor aos homens – através do amor, do serviço, do dom da vida – o caminho da salvação, da vida verdadeira. Neste texto (como, aliás, em muitos outros), fica claramente expressa a fidelidade radical de Jesus a esse projeto. Por isso, Ele não aceita que nada nem ninguém O afaste do caminho do dom da vida: dar ouvidos à lógica do mundo e esquecer os planos de Deus é, para Jesus, uma tentação diabólica que Ele rejeita duramente. Que significado e que lugar ocupam na minha vida os projetos de Deus? Esforço-me por descobrir a vontade de Deus a meu respeito e a respeito do mundo? Estou atento a esses “sinais dos tempos” através dos quais Deus me interpela? Sou capaz de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de Deus, mesmo quando elas são exigentes e vão contra os meus interesses e projetos pessoais?
Quem são os verdadeiros discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma catequese que insistia em ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em determinadas obrigações legais, mas que deixou para segundo plano o essencial: o seguimento de Jesus. A identidade cristã constrói-se à volta de Jesus e da sua proposta de vida. Que nenhum de nós tenha dúvidas: ser cristão é bem mais do que ser batizado, ter casado na igreja, organizar a festa do santo padroeiro da paróquia, ou dar-se bem com o padre… Ser cristão é, essencialmente, seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida. O cristão é aquele que faz de Jesus a referência fundamental à volta da qual constrói toda a sua existência; e é aquele que renuncia a si mesmo e que toma a mesma cruz de Jesus.
O que é “renunciar a si mesmo”? É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a auto-suficiência dominem a vida. O seguidor de Jesus não vive fechado no seu cantinho, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações dos outros homens; mas vive para Deus e na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos.
O que é “tomar a cruz”? É amar até às últimas consequências, até à morte. O seguidor de Jesus é aquele que está disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres e mais felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a tortura, as represálias dos poderosos.
 
 
 
 
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho

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