Um curso de doutrina católica. O conferencista entra na sala, senta-se à mesa e, encarando o público, anuncia: – Hoje, vamos falar sobre a preguiça.
Imediatamente um sorriso percorre o auditório, e os presentes entreolham-se com regozijo. Talvez tenha sido também um sorriso a primeira reação do leitor ao ler o título deste caderno, e é possível que tenha folheado rapidamente as páginas e examinado o índice com divertida curiosidade.
Podemos ter a certeza de que nada disso teria acontecido se o tema fosse outro. Por exemplo: o orgulho, a ira, a inveja. Todos eles são assuntos que trazem o nome de um dos sete pecados capitais. Por que será então que só a preguiça, dentre os sete, nos faz sorrir?
Os pecados ou vícios capitais têm este nome – “capitais” – precisamente por serem cabeças (capita, em latim) de muitos outros vícios e pecados. São como que as raízes que o egoísmo lança no mais profundo da alma, e que fazem irromper, como plantas peçonhentas, múltiplas ramificações.
Não é preciso insistir muito, por exemplo, acerca dos efeitos, dos ramos amargos da soberba: discórdias, arrogância, ódios e desprezos, humilhações... Nada disso, certamente, faz sorrir ninguém.
Da mesma forma, ninguém se regozija ao pensar nos frutos azedos da ira (brigas, agressões, divisões, injúrias) ou nos da inveja (críticas ácidas, deslealdades, inquietações constantes) ou ainda na ruína da saúde ou do lar, que com freqüência é o resultado das desordens da gula (embriaguez), da avareza e da luxúria.
Mas quando pensamos nas ramificações da preguiça, não conseguimos apagar de todo aquele sorriso inicial. Parecem ter qualquer coisa de cômico, e ousaríamos dizer até de simpático: correrias matutinas rumo ao emprego, por não se ter acordado na hora certa; cenas de comedieta italiana entre a mulher e o marido, que se entrincheira na poltrona e no jornal para não ter que ajudar; artes de “cola” em estudantes pouco afeiçoados ao trabalho...
Certamente podemos avistar alguns ramos mais retorcidos da preguiça, perante os quais o sorriso murcha: vidas atoladas na mediocridade, por não terem sabido esforçar-se e trabalhar a sério; constante instabilidade de empregos no profissional irresponsável; amarguras causadas por filhos cuja educação os pais descuraram... Tudo isto nada tem de engraçado.
Pois bem, é isto, precisamente, o que nos pode ajudar a entender o que significa o vício capital da preguiça, vício de fundo – como os outros seis pecados capitais – que, brotando da raiz do egoísmo, corrói a grandeza moral do homem.
As confusões, neste tema, procedem de que, de modo imediato, a palavra preguiça nos sugere pensar naquilo que, benevolamente, costumamos chamar de preguicinhas. Parecem-nos apenas minúcias, fragilidades próprias da condição humana, sempre desculpáveis. Mas, entre as pequenas preguiças e a preguiça sem diminutivos, vai uma grande distância.
O QUE E A PREGUIÇA?
Existe uma definição muito simples de preguiça, com a qual é fácil concordar: “a resistência ao esforço e ao sacrifício”. Com efeito, o preguiçoso não tem um ideal de perfeição esforçada, mas de facilidade. Mais do que o bem, move-o a vantagem. Podendo seguir uma linha cômoda, não se esforçará por subir a encosta íngreme do aprimoramento, da perfeição.
O preguiçoso contentar-se-á com “despachar’ as tarefas e responsabilidades, sem se importar em deixá-las acabadas. E, à força de se poupar egoistamente ao esforço, chegará a tornar-se um virtuose na arte lamentável de contornar os deveres, de “dar um jeito” – como se diz popularmente – e de outras tantas manhas da moleza.
Será que percebemos o vírus oculto, que anda emboscado por trás dessas atitudes e comportamentos? É, nem mais nem menos, a fuga do ideal – da perfeição –, a deserção do amor. E essa constatação é importante para penetrarmos no âmago da preguiça como pecado capital.
Há duas formas possíveis de situar-se perante a vida e as suas responsabilidades:
–– pode-se encará-la como uma missão – grande, bela e árdua –, que Deus propõe a cada um de seus filhos, e pela qual vale a pena gastar as melhores energias;
–– ou pode-se encará-la com a mentalidade do aproveitador. Para este, o que importa é passar bem, usufruir os prazeres da vida, fazer o imprescindível e não complicar-se. Assemelha-se a um mata-borrão que, quanto mais absorve – quanto mais a sua alma se embebe de egoísmo –, mais se estraga. É característica desses tais “o comodismo, a falta de vibração, que impelem a procurar o mais fácil, o mais agradável, o caminho aparentemente mais curto, mesmo à custa de concessões no caminho da fidelidade a Deus”1.
Com muito acerto escreveu um filósofo cristão dos nossos dias que “a preguiça significa, antes de mais nada, que o homem renuncia à altura da sua dignidade: não quer ser aquilo que Deus quer que seja”2. E, nesta dolorosa renúncia, se destrói.
Desistir dos ideais é desistir de sermos “nós mesmos”. Porque cada um de nós só pode realizar-se de verdade na medida em que luta por ajustar-se àquilo que Deus lhe propõe como meta na vida. Ou porventura pensamos que Deus, Pai e Amor, Sabedoria infinita, nos lançou no mundo às cegas, sem ter em sua mente um plano para nós?
Furtar-se a este plano de Deus, que é a sua Vontade e o nosso Ideal, é a mais radical das frustrações. Na vida, o que nos desencanta não são as pequenas ambições insatisfeitas – no plano do sucesso e do dinheiro, por exemplo –, mas os ideais abandonados ou atraiçoados. Deus ofereceu-nos uma oportunidade, e nós a recusamos. Quantas vezes Eu quis – dizia Cristo com lágrimas, contemplando Jerusalém – e tu não quiseste! (Mt 23, 37).
UMA PISTA PARA DESMASCARAR A PREGUIÇA
Ouvi contar há tempo, a um homem de Deus, a história verídica de um pastorzinho que todos os dias acompanhava o pai, ajudando-o a conduzir o gado para o pasto. Queimava-o o sol e cansavam-no as longas caminhadas, um dia após outro. Aconteceu que chegaram à fazenda uns estudantes para passar as férias. Acordavam tarde, passeavam longamente, prolongavam conversas à sombra das árvores.
Um dia, um desses estudantes, no meio de um passeio vespertino, aproximou-se do garoto, que voltava cansado do pastoreio.
– “Você – perguntou –, que gostaria de ser quando crescer?”.
A resposta, após um relance ao moço e outro à boiada, não se fez esperar:
– “Eu gostaria de ser ou estudante ou boi”. Não andava pelas alturas, aquele menino. Queria uma vida cômoda: o dolce far niente do estudante em férias ou a paz do boi ruminando no pasto. Mas será que nós andamos por maiores elevações? Uma das formas mais comuns da preguiça, sem diminutivo, é justamente a repugnância pelas alturas espirituais e morais. É o que poderíamos chamar a ambição da mediocridade. Quer-se é viver bem, mas sem exageros de esforço nem loucuras de idealismo. Ser bom, ser um “cristão médio”, com a sua dose medida de religião, vá lá. Mas levar o cristianismo a sério e em plena coerência com a fé, isso considera-se fanatismo.
É muito interessante verificar que a sabedoria dos antigos, já desde os primeiros séculos do cristianismo, ao enfocar a preguiça, contemplava quase que exclusivamente o seguinte conteúdo: a resistência a atingir a altura espiritual e moral própria de um filho de Deus, de um cristão.
Na linguagem clássica cristã (de Cassiano a São Tomás de Aquino, passando por São Gregório Magno), o vício capital da preguiça era designado com o nome de acédia. A acédia é fundamentalmente uma tristeza, uma tristeza ácida e fria – daí o nome –, que invade a alma ao pensar nos bens espirituais – na virtude, na bondade, no amor a Deus e ao próximo –, precisamente porque não são fáceis de alcançar nem de conservar. Exigem esforço, renúncia, sacrifício. E o egoísmo se defende. A repugnância que sente por tudo quanto é abnegação e doação generosa vai criando depósitos azedos no coração, e acaba transferindo para Deus e para os próprios bens árduos que Deus pede uma fria antipatia, que pode terminar em aversão: “um tédio que acabrunha”, diz São Tomás3.
É natural que estes mesmos autores insistam no fato de que a acédia se opõe frontalmente àquilo que é a essência da perfeição cristã: o amor. A preguiça detesta o que o amor abraça, entristece-se com o que alegra o amor.
É possível que já tenhamos tido, alguma vez, a experiência desse tipo de tristeza, ao pensar em Deus e nos ideais cristãos, e nos tenhamos perguntado: por que Cristo exige de todos os seus seguidores que se neguem a si mesmos e tomem a cruz (cfr. Mt 16, 24)? Por que insiste na necessidade de perder a vida – de entregá-la – para achá-la (cfr. Jo 12, 25)? Por que assinala como lei áurea do cristianismo um amor ao próximo tão exigente, que deve ser um constante “servir e dar a vida’ pelos outros (cfr. Mc 10, 5)? Não seria mais agradável um programa suave, sem cruzes nem renúncias, feito de bondades descomprometidas?
É bem possível que, sem reparar, tenhamos fixado como ideal de vida a honestidade hipócrita do fariseu – não mato, não roubo, pago o dízimo –, aliada à frase que se esgrime como uma fórmula de auto-canonização: “Não faço mal a ninguém”.
Basta uma leitura superficial dos Evangelhos para concluir que isso não basta. Sede perfeitos, assim como vosso Pai celestial é perfeito (Mt 5, 48). O primeiro de todos os mandamentos é este: amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo (Mc 12, 29-31).
Quem quiser seguir a Cristo tem que renunciar à vida fácil. Não se pode entrar no Reino de Deus sem um empenho esforçado: O reino dos Céus – diz Cristo – é arrebatado à força e são os violentos (os que lutam energicamente) que o conquistam (Mt 11, 12).
Iludem-se os homens quando pensam que levar Deus a sério vai perturbar-lhes a vida, metendo-os num calvário de compromissos, exigências e complicações. Quando, na realidade, o que complica e estraga a vida, com a maior perturbação que existe – o vazio –, é exatamente o contrário: o medo de levar Deus a sério, a apreensão que faz fugir dos compromissos do ideal cristão.
Nunca é por ter-se dado ou sacrificado que um homem se esvazia, mas por ter-se poupado. E dolorosa como uma queimadura a constatação de que os anos vão passando e o vazio vai aumentando. São duras certas horas de solidão, em que parece que o coração reclama: – “Não sei o que está acontecendo comigo, falta-me alguma coisa e não sei dizer o que é”.
A única coisa que acontece é que não vivemos a “nossa” vida – o que ela deveria ser –, mas um substitutivo rebaixado ou uma falsificação. Somente seremos felizes quando realizarmos a Vontade de Deus a nosso respeito, porque só então é que nos encontraremos a nós mesmos.
Aqui temos, pois, uma primeira pista para descobrir a preguiça de fundo: a renúncia à altura. Assim resume Pieper, com traços vigorosos, essa atitude: “A preguiça, como pecado capital, é a renúncia mal-humorada e triste, estupidamente egoísta, do homem à “nobreza que obriga” de ser filhos de Deus”4.
UMA SEGUNDA PISTA
Se a palavra “bitolado”, da nossa linguagem familiar, tem algum sentido, este sentido adquire feições, olhos e mãos nos personagens – habitantes de minúsculos asteróides – que o Pequeno Príncipe5 visita na sua viagem sideral.
O acendedor-de-lampiões vive num mundo reduzido a um lampião esguio, que deve acender e apagar sem descanso, a cada volta do seu asteróide. O bêbado povoa solitariamente um pequenino mundo concentrado na obsessão por garrafas cheias e garrafas vazias. Para o rei, viver é poder dizer de boca cheia (quando pode): “Ordeno-te”.
Acontece que o planeta Terra está povoado por inúmeros “homens de asteróide”. Pessoas muito atarefadas, mas inteiramente polarizadas em uma ou duas ocupações, a que reduzem, na prática, todo o seu “mundo”.
Começávamos estas páginas referindo-nos aos que sorriem, ao ouvirem falar de preguiça. Mas esses mesmos – talvez sejamos nós – sentir-se-ão muito aborrecidos se a referência à preguiça lhes for espetada com endereço pessoal: – “Você é um preguiçoso!”. Uma onda quente de revolta subirá à cabeça e à garganta: – “Eu, preguiçoso? Mas se não tenho nem um minuto livre, se trabalho sem folga nem férias... Precisaria, em todo o caso, é de um pouco mais de descanso...”.
Uma pessoa pode ser ocupadíssima... e ter uma profunda preguiça, a preguiça do homem “bitolado”, isto é, daquele que reduziu o ideal, a vida e o dever a apenas um ou dois asteróides. Estes podem ser, para um homem, o trabalho profissional e o cuidado das condições materiais da família; ou, se se trata de uma mãe de família, a atenção do lar e dos filhos, e um emprego de meio-período que permita reforçar o orçamento familiar; ou ainda, no caso do modesto estudante, a freqüência às aulas, acrescida do serviço num banco.
Todas essas pessoas, trabalhadoras e responsáveis, podem estar padecendo, sem saberem disso, a doença da preguiça setorial. Há setores da vida em que realmente se empenham, produzindo muito; mas há outros, muitas vezes mais importantes, que deixam abandonados como o campo do preguiçoso de que fala a Bíblia: Passei perto da terra do preguiçoso, junto à vinha de um homem insensato: eis que por toda a parte cresciam abrolhos, urtigas cobriam o solo e o muro de pedra estava por terra (Prov 24, 30).
Não há dúvida de que o quadro completo da missão de um homem ou de uma mulher não se esgota na profissão e na família, por mais que estes sejam setores importantíssimos, primordiais, da sua vida. Deve haver algo mais. Por acaso pode considerar-se realizado alguém que deixou completamente estéril, ou quase, o campo das suas relações com Deus e da sua formação cristã? Pode pensar que cumpre a sua missão aquele que vive de costas para as necessidades espirituais e materiais do próximo?
Seria muito cômodo anestesiar a consciência, pensando: “Não perco tempo, trabalho muito, vivo para o lar...”, e fazer desses deveres mais ou menos bem cumpridos um sedativo para a alma, esquecida dos outros deveres que não cumpre: deveres para com Deus, deveres sociais, responsabilidades em face dos problemas da comunidade humana. Sempre paira sobre os cristãos mornos o que alguém denominou “o perigo das coisas boas”6: deixar-nos embalar pela satisfação de umas tantas coisas boas que já fazemos, para acobertar o vazio de outras tantas coisas boas que não fazemos, e deveríamos fazer.
Não é infreqüente, neste ponto, ouvir comentários como o do homem casado que se gaba da luta extenuante que se impõe para sustentar a família, mas não se apercebe de que, desculpando-se com a fadiga do trabalho, nem sequer toma conhecimento do dever de educar os filhos, de conversar com eles, de formá-los. Não raro, é o mesmo tipo de pai que estufa o peito ao contar com quanto sacrifício conseguiu dar aos filhos estudos em colégios de nível; e, ao mesmo tempo, nada fez para lhes proporcionar uma boa formação religiosa e moral, muito mais importante que um brilhante aprendizado de álgebra, biologia ou história.
Essas deficiências são reais e freqüentes. É possível que, ao reconhecê-las, sintamos desejos de retrucar: “Tudo isso é certo, mas onde encontrar tempo para tantas coisas? O meu tempo não dá para mais...”.
Como um comentário desse tipo parece objetivo, será oportuno abordar um outro aspecto da preguiça, que pode esclarecer essas aparentes contradições.
AS MÁSCARAS DA PREGUIÇA
Estamos, nestas páginas, deixando de lado as modalidades mais grosseiras da preguiça – sombra e água fresca –, para concentrar a atenção na preguiça sutil, de fundo, que – como já sabemos – pode estar unida a uma grande boa vontade, a muitas ocupações e até à agitação.
Pois bem, uma das características dessa sutil preguiça é a sua rara habilidade – verdadeiro “engenho e arte” – para se desculpar ou se justificar.
A preguiça mostra-se uma artista consumada no uso de diversas máscaras, com as quais se disfarça, apresentando por fora o rosto do dever cumprido, da laboriosidade ou da responsabilidade.
Vale a pena, por isso, passar a examinar algumas das máscaras mais comuns de que a preguiça costuma valer-se.
A máscara da atividade. Antes nos referíamos ao espanto com que pessoas de grande atividade questionam a acusação de preguiça: “Eu, preguiçoso?”. E esquecem-se de que o ativismo, o fato de ter o dia atulhado de ocupações e tarefas e agitado pela “correria”, pode ser um grande álibi da preguiça.
“Não tenho um minuto livre”, repete-se constantemente. A vida parece um quebra-cabeças, cujas peças jamais se poderão encaixar, porque o tempo é limitado. “Eu bem que quereria fazer tudo, arranjar tempo para toda a gama dos deveres, mas infelizmente não posso”.
Não posso. Estas palavras não são novas. Lembram-nos alguma coisa muito antiga, uma parábola saída dos lábios de Cristo.
Um homem deu uma grande ceia e convidou a muitos. A parábola começa com uma clara luz: Deus é esse “homem”, que prepara um grande convite de Amor – uma vida de Amor na terra e depois na eternidade –, e chama à porta dos corações dos homens: Vinde, tudo já está preparado. Está pronto o plano que preparei para ti, a missão que te proponho realizar no mundo.
Mas o convite do Amor não obtém resposta: Todos à uma começaram a escusar-se. Todos. E deram as suas razões, razões objetivas e cheias de sensatez: Comprei um campo e preciso ir vê lo; rogo-te que me dês por escusado. Disse outro: Comprei cinco juntas de bois e vou experimentá-las; rogo-te me dês por escusado. Disse também um outro: Casei-me e por isso não posso ir (Lc 14, 16-20).
E o retrato falado dos nossos não-posso: não podemos assumir determinadas responsabilidades e deveres cristãos... porque andamos muito ocupados.
O Senhor não aceita as desculpas. Para Ele não passam de enganos, máscaras da preguiça, que foge de maiores compromissos de amor porque não quer complicações. O pai de família – acrescenta o Evangelho – ficou irado (Lc 14, 21). Uma expressão forte, que convida à reflexão. Deus não aceita as nossas desculpas, e isto porque o não-posso, a maior parte das vezes, significa simplesmente um não-quero.
A preguiça começa por não querer pensar. Há deveres sobre os quais – por medo do sacrifício – “nem se cogita”. Arremedando a frase “viver é muito perigoso” do protagonista de Grande Sertão: Veredas 7, poderíamos dizer que, para alguns, “pensar é muito perigoso”. Resistem a enfrentar seriamente alguns deveres, porque podem vir a impor-se-lhes como uma obrigação de consciência. Por isso, preferem tapar a vista com um pano – a afirmação prévia de que “não dá” –, antes de terem sequer começado a refletir.
Deus, pelo contrário, diz que dá. Tudo aquilo que é expressão da vontade divina, do ideal do cristão, é possível. Depende da nossa boa vontade, ou melhor, da nossa vontade boa, disposta a abraçar e a amar, sem regatear sacrifícios, a vontade de Deus.
Todos temos a experiência de que o nosso querer torna-se poderoso quando há um verdadeiro interesse, ou quando há um verdadeiro amor.
É surpreendente verificar o que acontece, por exemplo, core certas pessoas agoniadas pela “absoluta falta de tempo”. Um belo dia, o amigo, aflito pelo excesso de trabalho, comunica-nos com expressão radiante: – “Sabe que estou fazendo um curso de alemão? É ótimo. São só quatro dias por semana, das sete às dez da noite. E, depois, é quase certo que vou arranjar um emprego numa multinacional... O ouvinte sente vontade de dizer: “Mas, se há um mês você me disse que não tinha nem meia hora por semana para ensinar o catecismo a seus filhos, e que lhe seria quase impossível conseguir cinco minutos diários para ler o Evangelho...”.
Produziu-se um milagre, por obra e graça do interesse. Quem não “podia” fazer o que, na realidade, não interessava ao seu coração egoísta, agora pode dedicar sem problemas 12 horas semanais à gramática alemã.
Será preciso lembrar os “milagres” que, neste mesmo âmbito do tempo, é capaz de realizar o amor? Uma pessoa apaixonada cria tempo, inventa-o, multiplica-o... e acaba “encontrando” tempo para estar com quem ama.
Seria muito bom que cada um de nós revisasse, sinceramente, o que há por trás dos nossos não-posso. Não demoraríamos a descobrir, com evidência, que se trata de uma falta de interesse ou de uma falta de amor. Não vai ficando, assim, mais clara a estreita relação da preguiça com o "amor do bem" de que tanto falam os clássicos cristãos?
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