“Faz o que deves”, para um cristão, não é o simples imperativo do dever, da obrigação. É a Vontade do seu Senhor. O que é que Deus quer que eu faça em primeiro lugar? Quais são as tarefas prioritárias no dia de hoje, aos olhos de Deus? Isto é o que interesa, o verdadeiramente “necessário”.
Pensando friamente no dever, poderíamos chegar todos os dias à noite e acalmar a consciência, dizendo-nos: “Não fiz outra coisa senão trabalhar”, seja na fábrica ou no escritório, no lar, na escola ou onde quer que se cumpra a obrigação cotidiana.
Em face de Deus, porém, as coisas são diferentes. O Senhor nunca vai sugerir-nos que abandonemos ou descuidemos as nossas obrigações. Mas freqüentemente, se soubermos escutá-lo, dirá: hoje, o que é prioritário para ti é dar o passo decisivo para te reconciliares com o teu marido, e acabar de vez com esse mutismo causado pelo teu orgulho ferido; hoje, não deixes de procurar, lá no escritório, um momento propício para conversar com esse colega que anda cada vez mais desorientado e precisa de uma palavra amiga que o encaminhe; hoje, aproveita o intervalo do almoço, e vai consultar com um sacerdote esse problema de consciência que te atormenta, e cuja resolução já adiaste demais; hoje, começa a pôr em prática o propósito de te levantares antes, de rezar a oração da manhã com pausa e ler umas palavras do Evangelho, que sejam luz para o coração ao longo do dia...
Mas essa voz, essas “palavras” do Senhor, só podem ser ouvidas – é preciso insistir neste ponto – se soubermos recolher-nos em silêncio na presença de Deus, pensar sinceramente na nossa vida e fazer oração.
Todos os cristãos deveríamos estabelecer e manter – e defender como algo de sagrado – pelo menos dez ou quinze minutos diários dedicados à meditação e ao exame da vida na presença de Deus: de manhã, antes de iniciar as atividades; ou pouco antes de recolher-nos para descansar; ou aproveitando a possibilidade de visitar uma igreja numa hora
tranqüila, quando o silêncio do templo convida ao diálogo íntimo com Deus... Porque é nesses momentos que a alma, com a graça divina, se torna transparente, se liberta da terrível força centrífuga do ativismo, e consegue voltar para o seu centro, esse “centro da alma” de que falam os místicos, onde se encontra com Deus. Para quem quer escutá-lo, aí Deus sempre fala.
E a voz de Deus – como antes lembrávamos – é a que nos esclarece as prioridades e ajuda a hierarquizar, pela ordem de importância, os deveres a cumprir. Assim, estamos em condições de “escolher” com “atenção esmerada e cuidadosa”. Passamos a ser diligentes.
É importante, neste ponto, perceber que o fato de um dever ser prioritário não significa, via de regra, que se lhe tenha que dedicar maior quantidade de tempo. Há duas maneiras de dar prioridade a alguma obrigação, sem necessidade de prejudicar o tempo exigido pelas ocupações habituais.
Em primeiro lugar, vive-se uma tarefa como prioritária quando se dá importância primária à qualidade com que se realiza. Assim, a um homem que deve trabalhar por longas horas para sustentar a família, Deus muitas vezes lhe sugerirá: no dia de hoje, é prioritário dar ouvidos às preocupações da tua esposa, dedicar uma palavra de estímulo àquele filho. Isto não significa que Ele nos peça um tempo de que não dispomos. Pede-nos, sim, que, dentro do pouco tempo disponível, demos maior qualidade – qualidade de carinho, de intensidade de interesse, de afabilidade – ao relacionamento com os da nossa casa. E isto é sempre possível.
Há ainda uma segunda maneira de dar prioridade a um dever, cuja importância percebemos meditando na presença de Deus: a prioridade cronológica. Não a que consiste – repitamos de novo – em lhe dedicar longo tempo. Mas a que consiste em fazê-lo quanto antes.
Pensemos, a esse respeito, na facilidade com que empurramos para depois deveres que certamente julgamos primordiais. Temos consciência de que alguma coisa é importante e não pode ser largada; mas iludimo-nos, dizendo: “Mais tarde”; ou então: “Logo que me sobrar um pouco de tempo”. Infelizmente, esse tipo de reações é freqüente quando se trata de deveres para com Deus: missa dominical, oração, etc., ou de deveres relacionados com o serviço do próximo.
Seria lamentável que reservássemos para esses deveres, que consideramos importantes – e que são ressonâncias de apelos divinos –, somente as sobras do tempo. No entanto, é isto o que fazemos com freqüência: deixar o refugo do nosso tempo para as exigências do amor de Deus e do amor ao próximo. E aí não há diligência, porque não há amor. A diligência acha sempre o modo de preservar as precedências. A diligência ama o antes e detesta o depois.
A DILIGENCIA EXIGE ORDEM
Estabelecer prioridades é uma das formas mais nobres da virtude da ordem: é a ordem da mente e do coração. Nos parágrafos anteriores, examinamos a necessidade de hierarquizar conscienciosamente o conjunto dos nossos deveres, abrindo espaços para todos e garantindo-lhes as precedências.
Mas, para além dessa ordenada hierarquia de preferências, o homem diligente caracteriza-se pela prática da ordem no seu sentido mais simples e corriqueiro: a organização das atividades e do tempo dentro dos horários de cada dia, a adequada planificação.
Falar nessas palavras – organização, planificação – evoca de imediato, nos tempos que correm, a frieza empresarial da produtividade e da eficiência. Parecem soluções muito boas para a indústria e o comércio, e muito ruins para o coração.
Será possível falar-se em planejamento e medições de horário quando se trata de coisas de amor? Porque, no fundo, é de coisas de amor que estamos falando. Ter um horário fixo para rezar ou para ler um livro de espiritualidade, reservar tempos e horários certos para trabalhos apostólicos... tudo isto não soa a constrangimento, formalismo e abafamento da espontaneidade do espírito?
Muitos pensam assim, e isso acontece porque não compreendem o verdadeiro sentido da virtude da ordem, uma virtude que precisa ser resgatada dos preconceitos que a desmerecem. Se não a reabilitarmos no nosso mundo de valores, veremos como a espontaneidade do amor e dos bons propósitos se desvanecerá em ilusões e omissões. Vejamos um pouco mais de perto este tema.
Dizíamos nas páginas anteriores que existe uma ordem negativa, a que chamávamos ordem defensiva. Não passa da carapaça com que se protege o egoísta. Bem sabemos que essa ordem pode tornar-se doentia e atingir requintes de neurose, de mania. Talvez já tenhamos conhecido pessoas que ficavam transtornadas porque alguém – esposa, filho, empregada – tinha tido a ousadia de deslocar em poucos centímetros a posição exata que um livro devia ocupar na mesa do escritório. Da mesma forma que não faltam os que dramatizam qualquer interferência que lhes altere o horário de sono, ou o fim de semana cuidadosamente planejado. Isto não é virtude, é doença ou egoísmo. Como não é virtude a ordem dos escravos da eficiência, que sobre o altar da “produtividade” ou do “sucesso” profissional sacrificam Deus, a saúde, a família e as amizades.
A virtude da ordem é outra coisa: por ser uma das faces da diligência, é uma maneira de praticar o amor.
Se nos perguntássemos pelos traços mais essenciais do amor, com certeza todos nós coincidiríamos em dois deles:
– primeiro: amar é querer bem, o que significa, por um lado, querer mesmo, querer de verdade; e, por outro, querer fazer o bem e tornar feliz – ou agradar – a pessoa amada;
– segundo: amar é dar, ou melhor, dar-se. Não é a procura interesseira de si mesmo, através do prazer, das satisfações ou das compensações obtidas dos outros.
Procuremos aplicar estas idéias, simples e transparentes, a dois exemplos vivos, que ilustram o que é a ordem nascida da diligência.
Um homem está habituado a viver à margem do lar. Mulher e filhos vêem chegar todas as noites um fugaz visitante cansado e mal-humorado, que só deseja não ser incomodado. Chega tarde, não por necessidade, mas porque se entretém inutilmente com o serviço, ou prolonga o expediente em conversas de bar com os amigos.
Um belo dia sente a voz da consciência. Compreende que não está dando amor aos seus. E resolve fazer uma pequena modificação importante: encerrar o trabalho na hora certa e chegar a casa, no máximo, até às 18:00 horas, para assim dedicar-se mais à família. Faz o propósito e o cumpre. Pois bem, este ato de ordem é um ato de amor: porque quer sinceramente o bem dos outros, e concretiza o modo de dar-se.
Vejamos um segundo exemplo: um estudante (um desses católicos “comuns”, que vai à Missa “quando dá”) entende num dado momento a importância da oração. Como é possível – diz de si para si – amar a Deus e não falar com Ele, não ter um mínimo de intimidade. Antes, pensava vagamente que a oração era uma coisa boa, e estava disposto a fazê-la – como tantos outros – “quando tiver vontade”, “quando sentir” ... Agora, quer mesmo fazer oração, e reserva para isso um tempo diário, fixo e determinado. Porque quer mesmo, define um horário que garanta esse seu querer. Com isto, já está começando a amar, e o seu amor será mais completo quando se determinar a dar a Deus todos os dias, sem falta, esse pedaço do seu tempo – uns minutos de oração –, sem calcular se gosta ou tem vontade, pensando só em agradar a Deus.
Convençamo-nos de que a ordem e a disciplina que a ordem estabelece – quando brotam da meditação, da oração – não asfixiam o idealismo, a paixão nobre ou o amor. Pelo contrário, canalizam-nos e os efetivam. Naturalmente, desde que a paixão nobre, o amor e o ideal existam e sejam uma força poderosa da alma. A ordem está a serviço dessa força, não a substitui.
Como são traiçoeiras as faltas de ordem, essas “preguicinhas” que tanto nos fazem sorrir. Parecem coisa de nada, e podem vir a ser coisa de muito. Um simples atraso, um descuido, um adiamento escorado numa boa desculpa... são outros tantos modos de fazer murchar os melhores propósitos e os mais belos ideais. Basta uma “pequena preguiça” na hora de levantar, para que a oração ou a comunhão sejam abandonadas, ou para que o trabalho seja enfrentado atabalhoadamente e sem garra.
Façamos um plano de vida, bem meditado e bem distribuído, que crie canais efetivos para todos os nossos desejos de fazer o bem; vivamos fielmente esse plano, e então entenderemos por experiência o sentido destas palavras: “Quando tiveres ordem, multiplicar-se-á o teu tempo e, portanto, poderás dar maior glória a Deus, trabalhando mais a seu serviço”14.
A LABORIOSIDADE, IRMÃ DA DILIGÊNCIA
“Trabalhando mais”. As palavras que acabamos de citar fazem pensar num dos aspectos mais essenciais da diligência: a virtude da laboriosidade, que é como uma irmã gêmea da diligência.
Chama-se laborioso àquele que ama o trabalho, e por isso se esforça por trabalhar muito e bem. É fácil perceber que a laboriosidade é um dos flancos da diligência mais vulneráveis à preguiça. Porque o preguiçoso foge do trabalho como de um castigo, esquecido de que, já nas suas primeiras páginas, a Bíblia ensina que o trabalho é uma grande missão confiada por Deus ao homem – sua “imagem” e seu “colaborador” –, desde o dia da sua criação: Para isso – lemos no Gênesis – Deus colocou o homem no paraíso, para que trabalhasse (Gên 3, 19). As penas e fadigas do trabalho são conseqüência do pecado, mas o trabalho não.
O preguiçoso encara o trabalho como um fardo, do qual procura livrar-se quanto antes e de mil modos possíveis. Com essa mentalidade, é inevitável que o trabalho esteja crivado de inconstâncias e imperfeições, e que os dias se encham de tristes horas suportadas ou perdidas.
Não é laborioso quem trabalha frivolamente; quem cumpre as tarefas levianamente, sem atenção nem esmero; quem interrompe o trabalho com qualquer desculpa, pontilhando os horários de serviço de contínuos parênteses de vazio (beber um gole de água, esticar um telefonema, hora do cafezinho); quem começa muitas coisas e nunca termina nenhuma, incapaz que é de colocar a “última pedra”15 em nenhum dos seus empreendimentos; quem deixa a imaginação divagar e, nas asas da fantasia, sonha com grandes realizações ideais ao passo que “desgraça” as ocupações reais.
“Trabalhemos muito e bem”16: eis o lema da laboriosidade, que se completa com outro princípio de ação: “Faz o que deves e está no que fazes”17.
O que entendemos por “muito trabalho”, por “trabalhar muito”...? Sobre o “peso” do trabalho, a preguiça não se cansa de nos enganar, suscitando queixumes e auto-compaixão: “Trabalho muito, trabalho demais, como é dura a vida”. Talvez fosse bom levarmos a sério o ditado brincalhão, que alguma vez teremos lido na traseira de um caminhão: “A vida é dura para quem é mole”. Reconheçamos honestamente que, com ordem e empenho, todos podemos fazer mais, muito mais do que fazemos.
O laborioso aprende a “espremer” o seu tempo, com garbo e com garra. É questão de querer. “Que esperas, pois, para aproveitar conscienciosamente todos os instantes? (...). Aconselho-te que consideres se esses minutos que te sobram ao longo do dia – bem somados, perfazem horas! – não obedecem à tua desordem ou à tua poltronice”18.
Faz o que deves e está no que fazes. Mediante a virtude da ordem, fazemos o que devemos. A laboriosidade nos leva também a “estar” no que fazemos.
“Estar” nas tarefas significa dedicar-lhes os cinco sentidos, todas as potências: inteligência, vontade... Significa vencer habitualmente a divagação e o espírito rotineiro. Uma coisa é “trabalhar” – realizar algo de acordo com as nossas possibilidades – e outra muito diferente, embora seja infelizmente freqüente, é “liquidar” os encargos de qualquer maneira.
Um excelente exercício, para ajudar-nos a cair na conta da nossa falta de laboriosidade, poderia ser perguntar-nos: esta tarefa, é minha mesmo? Muitas vezes deveríamos responder: não, não é minha, porque é anônima, é uma tarefa superficial que qualquer um poderia ter feito. Não traz a minha marca, porque não me entreguei a ela com toda a minha capacidade e iniciativa. Naturalmente, a “nossa marca” não é a da frívola originalidade, mas a marca inconfundível da nossa diligência, do nosso amor.
O DILIGENTE TEM ALMA DE ARTISTA
“Não é diligente quem se precipita – recordávamos acima –, mas quem trabalha com amor, primorosamente”19.
É possível imaginar alguma coisa feita diligentemente, que esteja mal acabada? Qualquer trabalho ou realização, levados a cabo com amor, são obras “acabadas” ou, como se diz familiarmente, “caprichadas”. A imperfeição grosseira é uma denúncia clamorosa da falta de amor.
Não é em vão que, na linguagem comum, se utilizam algumas significativas expressões: é uma coisa muito trabalhada – diz-se –, é uma peça lavrada com primor. É sugestivo que, de uma coisa realizada com esmero muito especial, se diga simplesmente que foi “trabalhada”; e que se aplique aos requintes da arte manual o verbo “lavrar”, que deriva da palavra latina “laborare”, trabalhar.
Por trás dessas expressões, oculta-se como que um sexto sentido, a intuir que a laboriosidade envolve a idéia da perfeição amorosa em tudo o que se faz.
Com efeito, a diligência – a laboriosidade – sabe “acabar” as coisas, porque sabe fazê-las por amor – por amor a Deus e aos outros – e com amor.
Se fizermos uma revisão da tapeçaria formada pelos nossos deveres cotidianos, poderemos por acaso dizer que essa tapeçaria está “trabalhada” como uma obra de arte?
Existem, por exemplo, lares bons, mas muito pouco “trabalhados”, porque a rotina e a indelicadeza foram tomando conta deles – não houve renovação – como ferrugem implacável. Existem deveres profissionais pouco “trabalhados”, porque foram deslizando para um monótono cumprimento, uma burocrática repetição de serviços. Existem práticas religiosas pouco “trabalhadas”, porque não se renovou a fé que as acalentava alimentando-a com uma intensa formação – ou porque cristalizaram em devoções formalistas e práticas mecânicas. Existem paternidades muito pouco “trabalhadas”, porque sobre o amor dos pais depositou-se a poeira do costume, abafando afetos e dedicações.
Em todos estes casos, o amor e o entusiasmo foram-se congelando entre as mãos da rotina. Cederam passagem a mil pequenos descuidos, grosserias e imperfeições, aparentemente sem importância, e com isso perderam a força da renovação, isto é, da vida.
Uma tarefa feita por inércia, sem carinho, não é só uma tarefa inacabada e imperfeita, é um corpo sem alma. Só o amor cria e renova. “Na simplicidade do teu trabalho habitual, nos detalhes monótonos de cada dia, tens que descobrir o segredo – para tantos escondido – da grandeza e da novidade: o Amor”20.
A dupla força motriz da alma do cristão – o amor a Deus e o amor ao próximo – é poderosa para “renovar a face da terra” e conseguir o milagre de expulsar a rotina da vida cotidiana. Cada dia pode ser uma estréia, cada esforço um gesto inédito. “Toda hora o barro se refaz – diz Guimarães Rosa –, Deus ensina”21.
Sim, Deus ensina que, para Ele, “nenhuma ocupação é em si mesma grande ou pequena. Tudo adquire o valor do Amor com que se realiza”, e por isso é possível – e nisso consiste a aventura cotidiana do cristão – “transformar a prosa desta vida em decassílabos, em poesia heróica”22.
Santo Agostinho dizia, com uma expressão muito viva, que dilectio vacare non potest, o amor não pode parar, não pode tomar férias. Pois bem, uma pessoa de fé e de amor tem sempre o coração em movimento, como um coração de artista, alegremente inquieto e criativo.
Nunca o artista se sente satisfeito com a obra realizada. Sempre sonha em ir além. E este sonho ativa-lhe o engenho e movimenta-lhe o braço. Elabora por dentro, cria, recria, e se entrega ao trabalho com fervor, sem medir cansaços nem fadigas. Seu braço pode extenuar-se, mas o seu coração canta. Assim deve ser o cumprimento diligente dos deveres de um cristão.
Se porventura percebemos que, no íntimo de nós, está abafada essa alma de artista, se caímos na conta de que a rotina está estreitando o seu cerco, afunilando sonhos, crestando ilusões, cobrindo antigos entusiasmos com a pátina de uma canseira triste, é necessário prestar muita atenção: há um sinal de alarme avisando-nos de que já caímos, ou estamos à beira de cair numa lastimável preguiça, a preguiça do coração, o tédio da falta de amor.
Precisaremos, então, abrir bem os olhos da alma para enxergar que a rotina, a desilusão e o cansaço não são devidos – como tendemos a imaginar – ao acúmulo de tarefas, nem à repetição monótona das mesmas, nem ao desestímulo provocado por incompreensões dos que convivem ou trabalham conosco. Pelo contrário, são o efeito de uma doença da alma, que desaprendeu de amar, e por isso vê tudo cinza e sente tudo insosso.
Quando acordamos para a única coisa necessária (Lc 10, 42), voltando-nos decididamente para Deus, haverá uma reviravolta. Tudo, até os menores detalhes do cotidiano, mudará de sentido. Onde antes víamos muros – muralhas de deveres apertando como paredes de um cárcere – passaremos a ver janelas abertas para o infinito. E onde antes a rotina nos fechava num beco, agora se rasgará uma estrada.
Não se trata de simples imagens. O amor de Deus – o impulso da graça divina – muda tudo, como o sol transforma as sombras noturnas em paisagem colorida. Guiado pela fé e o amor, o coração cristão aprende a descobrir, em cada pequeno dever, em cada um dos esforços necessários para a execução das tarefas cotidianas, uma oportunidade – cada dia renovada – de se dar mais, de servir melhor, de alcançar um novo grau de perfeição, de expressar uma generosidade mais alegre... E isto porque aprendeu a captar, nos pequenos pormenores do dia-a-dia, o convite de Deus. Aquele que me segue não andará nas trevas, porque terá a luz da vida (Jo 8, 12).
Aquelas mesmas realidades cansadas que a preguiça fazia murchar, a diligência cristã vem revigorar com viço inesgotável. Quem ama, ensina São João, é transladado da morte para a vida (1 Jo 3, 14). Depende de nós. Não é poupando-nos que encontraremos vida e felicidade, mas dando-nos mais e mais. Quanto mais generoso for o sacrifício e mais profunda a entrega, mais impetuosamente brotará a alegria, como um sinal da plenitude da vida.
Afinal, não é esta uma das mais límpidas e preciosas lições que Cristo nos deixou? Quem quiser guardar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de Mim, a encontrará (Mt 16, 25).
PONTOS DE REFLEXÃO
Nesta matéria, como em tantas outras que configuram o ideal cristão, o que custa não é tanto aceitar as idéias, mas levá-las à prática. Uns poucos pontos concretos podem ajudar a ver o ângulo por onde começar e... continuar.
* Compreendo que uma das maiores manifestações da preguiça em mim é a indiferença ou apatia na luta contra os meus defeitos? Concretizo as ocasiões em que devo enfrentar as minhas inclinações erradas: onde, quando, como?
* Sou consciente de que, sem um plano de vida diário, a minha vida será uma coleção inútil de vagos desejos de ser um bom cristão? Nesse plano, estabeleço com prioridade qualitativa um tempo dedicado à oração, à leitura do Evangelho, a uma visita ao Santíssimo Sacramento, ao exame de consciência?
* Faço o que devo, hoje e agora? Percebo que, muitas vezes, esse “hoje e agora” consiste em enfrentar uma tarefa desagradável, custosa ou espinhosa, humilde ou mesmo humilhante – mas que terá o sabor alegre e fecundo do dever cumprido e da caridade de Cristo? Vejo que o tempo da graça é agora?
* O meu dia é agitado ou sereno, o meu trabalho arrastado ou intenso, desleixado ou competente e bem acabado? Procuro espremer o minuto de sessenta segundos?
* Habituo-me, no meio das minhas ocupações, a buscar o olhar divino, que me dê paz e ânimo para cumprir o dever de cada momento, que torne a minha jornada uma tarefa do coração, e não a escória do egoísmo, o subproduto do orgulho, a claudicação perante o comodismo?
* Omito-me na educação religiosa dos filhos? Omito-me em conversar com os amigos e colegas sobre Deus e a prática da vida cristã? Omito-me nas obras de misericórdia que estejam ao meu alcance? É a minha vida um conjunto de omissões?
* Queixo-me do excesso de trabalho? Não percebo que, quando tiver mais ordem, multiplicar-se-á o meu tempo? Lembro-me daquele claro pensamento (cfr. Sulco, n. 238): “Basta-me ter diante de mim um Crucifixo para não me atrever a falar dos meus sofrimentos...”?
Pensando friamente no dever, poderíamos chegar todos os dias à noite e acalmar a consciência, dizendo-nos: “Não fiz outra coisa senão trabalhar”, seja na fábrica ou no escritório, no lar, na escola ou onde quer que se cumpra a obrigação cotidiana.
Em face de Deus, porém, as coisas são diferentes. O Senhor nunca vai sugerir-nos que abandonemos ou descuidemos as nossas obrigações. Mas freqüentemente, se soubermos escutá-lo, dirá: hoje, o que é prioritário para ti é dar o passo decisivo para te reconciliares com o teu marido, e acabar de vez com esse mutismo causado pelo teu orgulho ferido; hoje, não deixes de procurar, lá no escritório, um momento propício para conversar com esse colega que anda cada vez mais desorientado e precisa de uma palavra amiga que o encaminhe; hoje, aproveita o intervalo do almoço, e vai consultar com um sacerdote esse problema de consciência que te atormenta, e cuja resolução já adiaste demais; hoje, começa a pôr em prática o propósito de te levantares antes, de rezar a oração da manhã com pausa e ler umas palavras do Evangelho, que sejam luz para o coração ao longo do dia...
Mas essa voz, essas “palavras” do Senhor, só podem ser ouvidas – é preciso insistir neste ponto – se soubermos recolher-nos em silêncio na presença de Deus, pensar sinceramente na nossa vida e fazer oração.
Todos os cristãos deveríamos estabelecer e manter – e defender como algo de sagrado – pelo menos dez ou quinze minutos diários dedicados à meditação e ao exame da vida na presença de Deus: de manhã, antes de iniciar as atividades; ou pouco antes de recolher-nos para descansar; ou aproveitando a possibilidade de visitar uma igreja numa hora
tranqüila, quando o silêncio do templo convida ao diálogo íntimo com Deus... Porque é nesses momentos que a alma, com a graça divina, se torna transparente, se liberta da terrível força centrífuga do ativismo, e consegue voltar para o seu centro, esse “centro da alma” de que falam os místicos, onde se encontra com Deus. Para quem quer escutá-lo, aí Deus sempre fala.
E a voz de Deus – como antes lembrávamos – é a que nos esclarece as prioridades e ajuda a hierarquizar, pela ordem de importância, os deveres a cumprir. Assim, estamos em condições de “escolher” com “atenção esmerada e cuidadosa”. Passamos a ser diligentes.
É importante, neste ponto, perceber que o fato de um dever ser prioritário não significa, via de regra, que se lhe tenha que dedicar maior quantidade de tempo. Há duas maneiras de dar prioridade a alguma obrigação, sem necessidade de prejudicar o tempo exigido pelas ocupações habituais.
Em primeiro lugar, vive-se uma tarefa como prioritária quando se dá importância primária à qualidade com que se realiza. Assim, a um homem que deve trabalhar por longas horas para sustentar a família, Deus muitas vezes lhe sugerirá: no dia de hoje, é prioritário dar ouvidos às preocupações da tua esposa, dedicar uma palavra de estímulo àquele filho. Isto não significa que Ele nos peça um tempo de que não dispomos. Pede-nos, sim, que, dentro do pouco tempo disponível, demos maior qualidade – qualidade de carinho, de intensidade de interesse, de afabilidade – ao relacionamento com os da nossa casa. E isto é sempre possível.
Há ainda uma segunda maneira de dar prioridade a um dever, cuja importância percebemos meditando na presença de Deus: a prioridade cronológica. Não a que consiste – repitamos de novo – em lhe dedicar longo tempo. Mas a que consiste em fazê-lo quanto antes.
Pensemos, a esse respeito, na facilidade com que empurramos para depois deveres que certamente julgamos primordiais. Temos consciência de que alguma coisa é importante e não pode ser largada; mas iludimo-nos, dizendo: “Mais tarde”; ou então: “Logo que me sobrar um pouco de tempo”. Infelizmente, esse tipo de reações é freqüente quando se trata de deveres para com Deus: missa dominical, oração, etc., ou de deveres relacionados com o serviço do próximo.
Seria lamentável que reservássemos para esses deveres, que consideramos importantes – e que são ressonâncias de apelos divinos –, somente as sobras do tempo. No entanto, é isto o que fazemos com freqüência: deixar o refugo do nosso tempo para as exigências do amor de Deus e do amor ao próximo. E aí não há diligência, porque não há amor. A diligência acha sempre o modo de preservar as precedências. A diligência ama o antes e detesta o depois.
A DILIGENCIA EXIGE ORDEM
Estabelecer prioridades é uma das formas mais nobres da virtude da ordem: é a ordem da mente e do coração. Nos parágrafos anteriores, examinamos a necessidade de hierarquizar conscienciosamente o conjunto dos nossos deveres, abrindo espaços para todos e garantindo-lhes as precedências.
Mas, para além dessa ordenada hierarquia de preferências, o homem diligente caracteriza-se pela prática da ordem no seu sentido mais simples e corriqueiro: a organização das atividades e do tempo dentro dos horários de cada dia, a adequada planificação.
Falar nessas palavras – organização, planificação – evoca de imediato, nos tempos que correm, a frieza empresarial da produtividade e da eficiência. Parecem soluções muito boas para a indústria e o comércio, e muito ruins para o coração.
Será possível falar-se em planejamento e medições de horário quando se trata de coisas de amor? Porque, no fundo, é de coisas de amor que estamos falando. Ter um horário fixo para rezar ou para ler um livro de espiritualidade, reservar tempos e horários certos para trabalhos apostólicos... tudo isto não soa a constrangimento, formalismo e abafamento da espontaneidade do espírito?
Muitos pensam assim, e isso acontece porque não compreendem o verdadeiro sentido da virtude da ordem, uma virtude que precisa ser resgatada dos preconceitos que a desmerecem. Se não a reabilitarmos no nosso mundo de valores, veremos como a espontaneidade do amor e dos bons propósitos se desvanecerá em ilusões e omissões. Vejamos um pouco mais de perto este tema.
Dizíamos nas páginas anteriores que existe uma ordem negativa, a que chamávamos ordem defensiva. Não passa da carapaça com que se protege o egoísta. Bem sabemos que essa ordem pode tornar-se doentia e atingir requintes de neurose, de mania. Talvez já tenhamos conhecido pessoas que ficavam transtornadas porque alguém – esposa, filho, empregada – tinha tido a ousadia de deslocar em poucos centímetros a posição exata que um livro devia ocupar na mesa do escritório. Da mesma forma que não faltam os que dramatizam qualquer interferência que lhes altere o horário de sono, ou o fim de semana cuidadosamente planejado. Isto não é virtude, é doença ou egoísmo. Como não é virtude a ordem dos escravos da eficiência, que sobre o altar da “produtividade” ou do “sucesso” profissional sacrificam Deus, a saúde, a família e as amizades.
A virtude da ordem é outra coisa: por ser uma das faces da diligência, é uma maneira de praticar o amor.
Se nos perguntássemos pelos traços mais essenciais do amor, com certeza todos nós coincidiríamos em dois deles:
– primeiro: amar é querer bem, o que significa, por um lado, querer mesmo, querer de verdade; e, por outro, querer fazer o bem e tornar feliz – ou agradar – a pessoa amada;
– segundo: amar é dar, ou melhor, dar-se. Não é a procura interesseira de si mesmo, através do prazer, das satisfações ou das compensações obtidas dos outros.
Procuremos aplicar estas idéias, simples e transparentes, a dois exemplos vivos, que ilustram o que é a ordem nascida da diligência.
Um homem está habituado a viver à margem do lar. Mulher e filhos vêem chegar todas as noites um fugaz visitante cansado e mal-humorado, que só deseja não ser incomodado. Chega tarde, não por necessidade, mas porque se entretém inutilmente com o serviço, ou prolonga o expediente em conversas de bar com os amigos.
Um belo dia sente a voz da consciência. Compreende que não está dando amor aos seus. E resolve fazer uma pequena modificação importante: encerrar o trabalho na hora certa e chegar a casa, no máximo, até às 18:00 horas, para assim dedicar-se mais à família. Faz o propósito e o cumpre. Pois bem, este ato de ordem é um ato de amor: porque quer sinceramente o bem dos outros, e concretiza o modo de dar-se.
Vejamos um segundo exemplo: um estudante (um desses católicos “comuns”, que vai à Missa “quando dá”) entende num dado momento a importância da oração. Como é possível – diz de si para si – amar a Deus e não falar com Ele, não ter um mínimo de intimidade. Antes, pensava vagamente que a oração era uma coisa boa, e estava disposto a fazê-la – como tantos outros – “quando tiver vontade”, “quando sentir” ... Agora, quer mesmo fazer oração, e reserva para isso um tempo diário, fixo e determinado. Porque quer mesmo, define um horário que garanta esse seu querer. Com isto, já está começando a amar, e o seu amor será mais completo quando se determinar a dar a Deus todos os dias, sem falta, esse pedaço do seu tempo – uns minutos de oração –, sem calcular se gosta ou tem vontade, pensando só em agradar a Deus.
Convençamo-nos de que a ordem e a disciplina que a ordem estabelece – quando brotam da meditação, da oração – não asfixiam o idealismo, a paixão nobre ou o amor. Pelo contrário, canalizam-nos e os efetivam. Naturalmente, desde que a paixão nobre, o amor e o ideal existam e sejam uma força poderosa da alma. A ordem está a serviço dessa força, não a substitui.
Como são traiçoeiras as faltas de ordem, essas “preguicinhas” que tanto nos fazem sorrir. Parecem coisa de nada, e podem vir a ser coisa de muito. Um simples atraso, um descuido, um adiamento escorado numa boa desculpa... são outros tantos modos de fazer murchar os melhores propósitos e os mais belos ideais. Basta uma “pequena preguiça” na hora de levantar, para que a oração ou a comunhão sejam abandonadas, ou para que o trabalho seja enfrentado atabalhoadamente e sem garra.
Façamos um plano de vida, bem meditado e bem distribuído, que crie canais efetivos para todos os nossos desejos de fazer o bem; vivamos fielmente esse plano, e então entenderemos por experiência o sentido destas palavras: “Quando tiveres ordem, multiplicar-se-á o teu tempo e, portanto, poderás dar maior glória a Deus, trabalhando mais a seu serviço”14.
A LABORIOSIDADE, IRMÃ DA DILIGÊNCIA
“Trabalhando mais”. As palavras que acabamos de citar fazem pensar num dos aspectos mais essenciais da diligência: a virtude da laboriosidade, que é como uma irmã gêmea da diligência.
Chama-se laborioso àquele que ama o trabalho, e por isso se esforça por trabalhar muito e bem. É fácil perceber que a laboriosidade é um dos flancos da diligência mais vulneráveis à preguiça. Porque o preguiçoso foge do trabalho como de um castigo, esquecido de que, já nas suas primeiras páginas, a Bíblia ensina que o trabalho é uma grande missão confiada por Deus ao homem – sua “imagem” e seu “colaborador” –, desde o dia da sua criação: Para isso – lemos no Gênesis – Deus colocou o homem no paraíso, para que trabalhasse (Gên 3, 19). As penas e fadigas do trabalho são conseqüência do pecado, mas o trabalho não.
O preguiçoso encara o trabalho como um fardo, do qual procura livrar-se quanto antes e de mil modos possíveis. Com essa mentalidade, é inevitável que o trabalho esteja crivado de inconstâncias e imperfeições, e que os dias se encham de tristes horas suportadas ou perdidas.
Não é laborioso quem trabalha frivolamente; quem cumpre as tarefas levianamente, sem atenção nem esmero; quem interrompe o trabalho com qualquer desculpa, pontilhando os horários de serviço de contínuos parênteses de vazio (beber um gole de água, esticar um telefonema, hora do cafezinho); quem começa muitas coisas e nunca termina nenhuma, incapaz que é de colocar a “última pedra”15 em nenhum dos seus empreendimentos; quem deixa a imaginação divagar e, nas asas da fantasia, sonha com grandes realizações ideais ao passo que “desgraça” as ocupações reais.
“Trabalhemos muito e bem”16: eis o lema da laboriosidade, que se completa com outro princípio de ação: “Faz o que deves e está no que fazes”17.
O que entendemos por “muito trabalho”, por “trabalhar muito”...? Sobre o “peso” do trabalho, a preguiça não se cansa de nos enganar, suscitando queixumes e auto-compaixão: “Trabalho muito, trabalho demais, como é dura a vida”. Talvez fosse bom levarmos a sério o ditado brincalhão, que alguma vez teremos lido na traseira de um caminhão: “A vida é dura para quem é mole”. Reconheçamos honestamente que, com ordem e empenho, todos podemos fazer mais, muito mais do que fazemos.
O laborioso aprende a “espremer” o seu tempo, com garbo e com garra. É questão de querer. “Que esperas, pois, para aproveitar conscienciosamente todos os instantes? (...). Aconselho-te que consideres se esses minutos que te sobram ao longo do dia – bem somados, perfazem horas! – não obedecem à tua desordem ou à tua poltronice”18.
Faz o que deves e está no que fazes. Mediante a virtude da ordem, fazemos o que devemos. A laboriosidade nos leva também a “estar” no que fazemos.
“Estar” nas tarefas significa dedicar-lhes os cinco sentidos, todas as potências: inteligência, vontade... Significa vencer habitualmente a divagação e o espírito rotineiro. Uma coisa é “trabalhar” – realizar algo de acordo com as nossas possibilidades – e outra muito diferente, embora seja infelizmente freqüente, é “liquidar” os encargos de qualquer maneira.
Um excelente exercício, para ajudar-nos a cair na conta da nossa falta de laboriosidade, poderia ser perguntar-nos: esta tarefa, é minha mesmo? Muitas vezes deveríamos responder: não, não é minha, porque é anônima, é uma tarefa superficial que qualquer um poderia ter feito. Não traz a minha marca, porque não me entreguei a ela com toda a minha capacidade e iniciativa. Naturalmente, a “nossa marca” não é a da frívola originalidade, mas a marca inconfundível da nossa diligência, do nosso amor.
O DILIGENTE TEM ALMA DE ARTISTA
“Não é diligente quem se precipita – recordávamos acima –, mas quem trabalha com amor, primorosamente”19.
É possível imaginar alguma coisa feita diligentemente, que esteja mal acabada? Qualquer trabalho ou realização, levados a cabo com amor, são obras “acabadas” ou, como se diz familiarmente, “caprichadas”. A imperfeição grosseira é uma denúncia clamorosa da falta de amor.
Não é em vão que, na linguagem comum, se utilizam algumas significativas expressões: é uma coisa muito trabalhada – diz-se –, é uma peça lavrada com primor. É sugestivo que, de uma coisa realizada com esmero muito especial, se diga simplesmente que foi “trabalhada”; e que se aplique aos requintes da arte manual o verbo “lavrar”, que deriva da palavra latina “laborare”, trabalhar.
Por trás dessas expressões, oculta-se como que um sexto sentido, a intuir que a laboriosidade envolve a idéia da perfeição amorosa em tudo o que se faz.
Com efeito, a diligência – a laboriosidade – sabe “acabar” as coisas, porque sabe fazê-las por amor – por amor a Deus e aos outros – e com amor.
Se fizermos uma revisão da tapeçaria formada pelos nossos deveres cotidianos, poderemos por acaso dizer que essa tapeçaria está “trabalhada” como uma obra de arte?
Existem, por exemplo, lares bons, mas muito pouco “trabalhados”, porque a rotina e a indelicadeza foram tomando conta deles – não houve renovação – como ferrugem implacável. Existem deveres profissionais pouco “trabalhados”, porque foram deslizando para um monótono cumprimento, uma burocrática repetição de serviços. Existem práticas religiosas pouco “trabalhadas”, porque não se renovou a fé que as acalentava alimentando-a com uma intensa formação – ou porque cristalizaram em devoções formalistas e práticas mecânicas. Existem paternidades muito pouco “trabalhadas”, porque sobre o amor dos pais depositou-se a poeira do costume, abafando afetos e dedicações.
Em todos estes casos, o amor e o entusiasmo foram-se congelando entre as mãos da rotina. Cederam passagem a mil pequenos descuidos, grosserias e imperfeições, aparentemente sem importância, e com isso perderam a força da renovação, isto é, da vida.
Uma tarefa feita por inércia, sem carinho, não é só uma tarefa inacabada e imperfeita, é um corpo sem alma. Só o amor cria e renova. “Na simplicidade do teu trabalho habitual, nos detalhes monótonos de cada dia, tens que descobrir o segredo – para tantos escondido – da grandeza e da novidade: o Amor”20.
A dupla força motriz da alma do cristão – o amor a Deus e o amor ao próximo – é poderosa para “renovar a face da terra” e conseguir o milagre de expulsar a rotina da vida cotidiana. Cada dia pode ser uma estréia, cada esforço um gesto inédito. “Toda hora o barro se refaz – diz Guimarães Rosa –, Deus ensina”21.
Sim, Deus ensina que, para Ele, “nenhuma ocupação é em si mesma grande ou pequena. Tudo adquire o valor do Amor com que se realiza”, e por isso é possível – e nisso consiste a aventura cotidiana do cristão – “transformar a prosa desta vida em decassílabos, em poesia heróica”22.
Santo Agostinho dizia, com uma expressão muito viva, que dilectio vacare non potest, o amor não pode parar, não pode tomar férias. Pois bem, uma pessoa de fé e de amor tem sempre o coração em movimento, como um coração de artista, alegremente inquieto e criativo.
Nunca o artista se sente satisfeito com a obra realizada. Sempre sonha em ir além. E este sonho ativa-lhe o engenho e movimenta-lhe o braço. Elabora por dentro, cria, recria, e se entrega ao trabalho com fervor, sem medir cansaços nem fadigas. Seu braço pode extenuar-se, mas o seu coração canta. Assim deve ser o cumprimento diligente dos deveres de um cristão.
Se porventura percebemos que, no íntimo de nós, está abafada essa alma de artista, se caímos na conta de que a rotina está estreitando o seu cerco, afunilando sonhos, crestando ilusões, cobrindo antigos entusiasmos com a pátina de uma canseira triste, é necessário prestar muita atenção: há um sinal de alarme avisando-nos de que já caímos, ou estamos à beira de cair numa lastimável preguiça, a preguiça do coração, o tédio da falta de amor.
Precisaremos, então, abrir bem os olhos da alma para enxergar que a rotina, a desilusão e o cansaço não são devidos – como tendemos a imaginar – ao acúmulo de tarefas, nem à repetição monótona das mesmas, nem ao desestímulo provocado por incompreensões dos que convivem ou trabalham conosco. Pelo contrário, são o efeito de uma doença da alma, que desaprendeu de amar, e por isso vê tudo cinza e sente tudo insosso.
Quando acordamos para a única coisa necessária (Lc 10, 42), voltando-nos decididamente para Deus, haverá uma reviravolta. Tudo, até os menores detalhes do cotidiano, mudará de sentido. Onde antes víamos muros – muralhas de deveres apertando como paredes de um cárcere – passaremos a ver janelas abertas para o infinito. E onde antes a rotina nos fechava num beco, agora se rasgará uma estrada.
Não se trata de simples imagens. O amor de Deus – o impulso da graça divina – muda tudo, como o sol transforma as sombras noturnas em paisagem colorida. Guiado pela fé e o amor, o coração cristão aprende a descobrir, em cada pequeno dever, em cada um dos esforços necessários para a execução das tarefas cotidianas, uma oportunidade – cada dia renovada – de se dar mais, de servir melhor, de alcançar um novo grau de perfeição, de expressar uma generosidade mais alegre... E isto porque aprendeu a captar, nos pequenos pormenores do dia-a-dia, o convite de Deus. Aquele que me segue não andará nas trevas, porque terá a luz da vida (Jo 8, 12).
Aquelas mesmas realidades cansadas que a preguiça fazia murchar, a diligência cristã vem revigorar com viço inesgotável. Quem ama, ensina São João, é transladado da morte para a vida (1 Jo 3, 14). Depende de nós. Não é poupando-nos que encontraremos vida e felicidade, mas dando-nos mais e mais. Quanto mais generoso for o sacrifício e mais profunda a entrega, mais impetuosamente brotará a alegria, como um sinal da plenitude da vida.
Afinal, não é esta uma das mais límpidas e preciosas lições que Cristo nos deixou? Quem quiser guardar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de Mim, a encontrará (Mt 16, 25).
PONTOS DE REFLEXÃO
Nesta matéria, como em tantas outras que configuram o ideal cristão, o que custa não é tanto aceitar as idéias, mas levá-las à prática. Uns poucos pontos concretos podem ajudar a ver o ângulo por onde começar e... continuar.
* Compreendo que uma das maiores manifestações da preguiça em mim é a indiferença ou apatia na luta contra os meus defeitos? Concretizo as ocasiões em que devo enfrentar as minhas inclinações erradas: onde, quando, como?
* Sou consciente de que, sem um plano de vida diário, a minha vida será uma coleção inútil de vagos desejos de ser um bom cristão? Nesse plano, estabeleço com prioridade qualitativa um tempo dedicado à oração, à leitura do Evangelho, a uma visita ao Santíssimo Sacramento, ao exame de consciência?
* Faço o que devo, hoje e agora? Percebo que, muitas vezes, esse “hoje e agora” consiste em enfrentar uma tarefa desagradável, custosa ou espinhosa, humilde ou mesmo humilhante – mas que terá o sabor alegre e fecundo do dever cumprido e da caridade de Cristo? Vejo que o tempo da graça é agora?
* O meu dia é agitado ou sereno, o meu trabalho arrastado ou intenso, desleixado ou competente e bem acabado? Procuro espremer o minuto de sessenta segundos?
* Habituo-me, no meio das minhas ocupações, a buscar o olhar divino, que me dê paz e ânimo para cumprir o dever de cada momento, que torne a minha jornada uma tarefa do coração, e não a escória do egoísmo, o subproduto do orgulho, a claudicação perante o comodismo?
* Omito-me na educação religiosa dos filhos? Omito-me em conversar com os amigos e colegas sobre Deus e a prática da vida cristã? Omito-me nas obras de misericórdia que estejam ao meu alcance? É a minha vida um conjunto de omissões?
* Queixo-me do excesso de trabalho? Não percebo que, quando tiver mais ordem, multiplicar-se-á o meu tempo? Lembro-me daquele claro pensamento (cfr. Sulco, n. 238): “Basta-me ter diante de mim um Crucifixo para não me atrever a falar dos meus sofrimentos...”?
NOTAS
(1) Josemaría Escrivã, E Cristo que passa, Quadrante, São Paulo, 1975, pág. 6;
(2) Josef Pieper, in: LeclercqPieper, De La vida serena, 3a. ed., Rialp, Madrid, 1965, pág. 75;
(3) São Tomás de Aquino, Suma Teológica, IMI, q.31, a . 1;
(4) Josef Pieper, Las virtudes fundamentales, Rialp, Madrid, 1976, pág. 395;
(5) Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, 25a. ed., Ed. Agir, Rio de janeiro, 1983, pág. 37 e segs.;
(6) Salvatore Canals, Reflexões espirituais, Quadrante, São Paulo, 1985, pág. 137;
(7) João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, 3a. ed., Livraria José Olympio, Rio de janeiro, 1963, passim;
(8) Rabano Mauro, De ecclesiastica disciplina, livro 111o.; cfr. S. Th., II-II, q.35, a . 1;
(9) Josemaría Escrivá, Caminho, 6a. ed., Quadrante, São Paulo, ns. 251, 253 e 254;
(10) São Gregório Magno, Regula pastoralis, parte III, cap. XV; in: Obras, BAC, Madrid, 1958, pág. 174;
(11) Georges Chevrot, As pequenas virtudes do lar, Quadrante, São Paulo, 1984, pág. 74;
(12) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, 2a. ed., Quadrante, São Paulo, 1979, pág. 64;
(13) Jacques Leclercq, in: De La vida serena, págs. 19 e 20;
(14) Caminho, n. 80;
(15) Caminho, n. 42;
(16) Josemaría Escrivá, Sulco, Quadrante, São Paulo, 1987, n. 497;
(17) Caminho, n. 815;
(18) Sulco, n. 509;
(19) Amigos de Deus, pág. 64;
(20) Sulco, n. 489;
(21) João Guimarães Rosa, Corpo de baile, 2a. ed., Livraria José Olympio, Rio de janeiro, 1960, pág. 513;
(22) Sulco, ns. 487 e 500.
(1) Josemaría Escrivã, E Cristo que passa, Quadrante, São Paulo, 1975, pág. 6;
(2) Josef Pieper, in: LeclercqPieper, De La vida serena, 3a. ed., Rialp, Madrid, 1965, pág. 75;
(3) São Tomás de Aquino, Suma Teológica, IMI, q.
(4) Josef Pieper, Las virtudes fundamentales, Rialp, Madrid, 1976, pág. 395;
(5) Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, 25a. ed., Ed. Agir, Rio de janeiro, 1983, pág. 37 e segs.;
(6) Salvatore Canals, Reflexões espirituais, Quadrante, São Paulo, 1985, pág. 137;
(7) João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, 3a. ed., Livraria José Olympio, Rio de janeiro, 1963, passim;
(8) Rabano Mauro, De ecclesiastica disciplina, livro 111o.; cfr. S. Th., II-II, q.
(9) Josemaría Escrivá, Caminho, 6a. ed., Quadrante, São Paulo, ns. 251, 253 e 254;
(10) São Gregório Magno, Regula pastoralis, parte III, cap. XV; in: Obras, BAC, Madrid, 1958, pág. 174;
(11) Georges Chevrot, As pequenas virtudes do lar, Quadrante, São Paulo, 1984, pág. 74;
(12) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, 2a. ed., Quadrante, São Paulo, 1979, pág. 64;
(13) Jacques Leclercq, in: De La vida serena, págs. 19 e 20;
(14) Caminho, n. 80;
(15) Caminho, n. 42;
(16) Josemaría Escrivá, Sulco, Quadrante, São Paulo, 1987, n. 497;
(17) Caminho, n. 815;
(18) Sulco, n. 509;
(19) Amigos de Deus, pág. 64;
(20) Sulco, n. 489;
(21) João Guimarães Rosa, Corpo de baile, 2a. ed., Livraria José Olympio, Rio de janeiro, 1960, pág. 513;
(22) Sulco, ns. 487 e 500.
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