Em
uma sociedade atingida pela desumanização cada vez maior da pessoa,
nada como recordar a vida e o magistério do Papa São João Paulo II.
"Perdendo o sentido de Deus, tende-se a perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da sua vida." (Evangelium Vitae, 21)
Por Brian Kranick — Muitos podem ficar perplexos, mas é
fato histórico que Adolf Hitler, um dos mais prolíficos genocidas em
massa que o mundo já conheceu, foi também um vegetariano a quem causava
horror a crueldade com os animais. Esse mesmíssimo e peculiar enigma foi
revisitado quando a organização PETA (sigla em inglês para "Pessoas
pelo Tratamento Ético dos Animais") lançou a peça publicitária "Holocausto no seu prato" (Holocaust on Your Plate),
em 2003, comparando animais confinados para consumo a prisioneiros
judeus em campos de concentração nazistas. Como notou Richard Weikart,
ironicamente ambos os grupos, os nazistas e o PETA, caíram na falácia do
antropomorfismo, obscurecendo a distinção que existe entre humanos e
animais. Esses são exemplos extremos, mas que lançam luz sobre uma
profunda confusão filosófica da era moderna a respeito da dignidade da
vida humana. Subjacente a essa desvalorização do homem está uma negação
implícita da personalidade.
Essa visão misantrópica infelizmente está em ascensão na cultura
ocidental. Para se ter uma ideia do problema, basta olhar para a grande
onda de indignação e repúdio às mortes
do leão Cecil e do gorila Harambe.
O outro lado da supervalorização da vida animal pode ser, muitas vezes,
o desprezo pela vida humana; o escândalo por causa de Cecil e Harabe
contrasta fortemente com a complacência de nossa cultura em relação ao
aborto, à eutanásia, à eugenia, ao suicídio e ao suicídio assistido.
Essa "cultura de morte" é a dimensão negativa do esforço moderno por
remodelar o ser humano simplesmente como um animal ordinário, não mais
dotado de uma dignidade ontológica ou de um propósito teleológico dados
por Deus. A vida humana se torna dispensável, em comparação com o
reconhecido bem maior da sociedade ou do Estado, ou com o capricho do
indivíduo. O valor da pessoa humana hoje se tornou obscuro.
Como chegamos a esse ponto?
A mistura da dignidade do homem e do animal não é senão sintoma de uma
outra confusão, mais geral e sutil. O crescente desapreço pelo fato de o
homem ser especial atravessa os séculos, tendo como incremento
subversões filosóficas às bases do verdadeiro conhecimento.
O núcleo dessa crise está na epistemologia. A amplitude e a
profundidade do conhecimento humano foram sacrificadas nos altares do
ceticismo e do materialismo. Esse erro epistemológico moderno gira em
torno da negação de nossa verdadeira natureza humana como seres
compostos, de corpo e alma. Como consequência dessa separação, os
primeiros passos em falso foram dados na filosofia.
Alguns traçam os erros do secularismo moderno
até Guilherme de Ockham,
no século XIV, para quem essências universais, como a humanidade, não
eram reais, mas apenas extrapolações nominais em nossas mentes. A teoria
de Ockham era de que não existiam formas universais, apenas formas
individuais. Isso minou parte de nossa habilidade de explicar a
realidade objetiva. Se não há nenhuma forma humana universal, ou
natureza humana, então estamos privados de satisfazer os fins de nossa
natureza e o nosso propósito teleológico. Uma vez que essas coisas se
foram, não é difícil imaginar uma confusão de personalidade e uma perda
de ética.
Na era do Iluminismo, empiristas como Locke e Hume propuseram que
apenas o fenômeno de uma coisa podia ser conhecida, não a coisa em si.
Assim como Ockham,
eles rejeitaram o conhecimento abstrato dos universais em favor simplesmente da experiência sensível.
Em outras palavras, eles trocaram nosso conhecimento intelectual e
espiritual por um semelhante ao dos animais. Kant, de modo similar, só
admitia que conhecêssemos "as coisas tal como se conheciam", tal como
interpretadas pela mente, mas não "as coisas em si mesmas". Esse
"geocentrismo epistemológico", como o chamava o padre Stanley Jaki,
impede-nos de conhecer a Deus, a alma e a natureza completa da
realidade.
Mas talvez o golpe mais devastador ao entendimento de nossa natureza
composta venha do materialismo biológico, na forma do darwinismo do
século XIX. A teoria de Darwin tornou o materialismo biológico estrito e
o cientificismo os únicos conhecimentos predominantemente "aceitáveis".
Não mais era necessária uma criação especial do homem por Deus, ou uma
alma intelectual e imaterial. O homem seria apenas um primata evoluído,
criado através de forças cegas, erros genéticos e graças à sobrevivência
dos mais fortes. A separação de corpo e alma, iniciada em filosofias
dos séculos anteriores, estava agora completa. Como notou Chesterton, "
o que a evolução nega em especial não é a existência de Deus, mas a existência do homem". O homem não era mais um ente composto espiritual, mas apenas uma criatura física.
O mundo que o materialismo forjou
Esse reducionismo materialista teve grandes repercussões na visão de
mundo moderna e na desumanização do homem. Quando os materialistas
finalmente tomaram o poder, os regimes comunistas, de Stálin, Mao e Pol
Pot, mataram cerca de 100 milhões de pessoas. Também o darwinismo social
se infiltrou no pensamento do Ocidente, espalhando a ideia de que havia
pessoas "aptas" e "inaptas", bem como raças "superiores" e
"inferiores". Isso se tornou notável na Alemanha nazista, onde noções
racistas eram supostamente "provadas" e "justificadas" pela ciência.
Hitler abraçou completamente essa ideia da ética evolucionista em sua
marcha rumo à guerra e ao genocídio.
A evidência do século passado mostra como a ética evolucionista é, na
verdade, ética nenhuma. Ela mina nossa segurança em relação à
moralidade, tornando-a subjetiva e, no espírito dos nossos tempos,
relativista. O reducionismo material alterou a visão das pessoas sobre a
santidade da vida humana, desvalorizando o que significa ser humano. A
alma se tornou meramente um epifenômeno da matéria. Nesse sentido, o
Cristianismo está em desacordo com o materialismo darwinista estrito,
tal como oposto à teoria geral da evolução, com a qual, na verdade, não
existe conflito algum. Esse materialismo dogmático nega
a priori até mesmo a possibilidade de causalidade final no
homem. Ela reprime falsamente a razoabilidade da fé em Deus, de nossos
princípios morais e o conhecimento de nós mesmos como seres espirituais.
Infelizmente, esse reducionismo epistemológico não tem só persistido,
mas também aumentado, até o presente. Ainda que haja algum progresso
contra a cultura da morte, ainda permanece uma espécie de amnésia,
persistindo em nossa psiquê cultural, acerca da dignidade humana. Não
surpreendentemente, também tem acontecido um simultâneo afastamento da
fé, como evidenciam os números recorde de não-religiosos e ateus em
entrevistas recentes (i.e., o "crescimento dos Nenhum", que assinalam
"nenhuma" preferência religiosa).
Uma resposta católica
Como nós, católicos, devemos reagir a tudo isso? Comecemos reafirmando
que existem muitas razões boas, intelectuais e multifaces para crer. O
Cristianismo e a fé em Deus são perfeitamente razoáveis, não obstante os
protestos dos materialistas científicos modernos e dos ateístas.
Ciência e teologia, fé e razão não são opostas uma à outra, mas são
"como duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a
contemplação da verdade" [1]. De fato, nunca antes se teve disponíveis
tantos registros científicos avançados que apontam para um Criador. Que
melhor comprovação poderia haver, por exemplo, do argumento cosmológico
de Santo Tomás para Deus como o "primeiro motor", que o Big Bang e a sua
última evidência: radiação cósmica de fundo em micro-ondas?
O Cristianismo foi construído sobre a revelação, é claro, mas também sobre a razão. Jesus mandou-nos amar a Deus com todo o nosso entendimento (cf. Mt
22, 37). A tradição intelectual do Ocidente e a sua ciência empírica
são, no fim das contas, frutos de nossa civilização cristã. A disputa
com o secularismo moderno só surge com a negação materialista de Deus e
da alma humana, por serem uma negação de nosso próprio ser. O ateísmo
sofre de um defeito epistemológico, que é o de negar a personalidade.
Como afirma o Papa Leão XIII em sua encíclica Rerum Novarum, de 1891,
"o que em nós se avantaja, o que nos faz homens, nos distingue
essencialmente do animal, é a razão ou a inteligência" [2]. Devemos
abraçar a ideia da personalidade e a filosofia do personalismo como
parte de nossa ética e visão de mundo, e como um bastião contra as
filosofias desumanizadoras de nosso tempo.
Um dos grandes proponentes da moderna filosofia do personalismo foi o
Papa São João Paulo II. Quando era apenas Karol Wojtyla, ele testemunhou
em primeira mão essas forças desumanizadoras do materialismo na
Polônia, inicialmente sob a ocupação nazista e, depois, debaixo do
comunismo soviético. Ele esteve no epicentro de ambas as sanhas
totalitárias e observou o que chamava de "pulverização" da pessoa
humana. Foi em reação a essas ideologias destruidoras e às tiranias
políticas subsequentes que ele ajudou a liderar um novo movimento
filosófico e uma teologia moral focada na dignidade absoluta da pessoa
humana.
Wojtyla defendia um "personalismo tomista", uma filosofia focada na
dignidade transcendente de cada pessoa. O seu personalismo em particular
era fundado na metafísica clássica de Santo Tomás de Aquino, bem como
na visão cosmológica do ser humano como um ente apartado do resto da
criação por seu intelecto e por sua natureza racional.
Wojtyla procurou ir além disso, no entanto, a fim de explicar a
"totalidade da pessoa". Ele reconhecia a grande importância, para a
experiência humana, da perspectiva interior. Esta ele a chamava de
"subjetividade", experimentada na consciência de cada pessoa, da qual
não poderia sequer haver duas iguais. Cada pessoa, então, é
absolutamente irrepetível, insubstituível, incomunicável e irredutível.
O Papa João Paulo falava disso em termos práticos, em seu "princípio personalista", dizendo que
o ser humano deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo,
sem jamais ser submetido a outrem como meio para atingir um fim.
Internalizar esse princípio produziria inevitavelmente aplicações
práticas concretas, tais como ir contra a escravidão e o tráfico humano.
Mas também poderia ajudar a colocar a sociedade atual contra a
normalização dessa cultura de morte, com seus impulsos de
descaracterizar a pessoa humana, como se viu recentemente na Holanda — onde praticaram a eutanásia com um homem por ele ser alcóolatra — e no discurso de Peter Singer — o ético utilitarista de Princeton que pediu pelo fim da vida de crianças deficientes.
Cada ser humano é único
Como católicos, nós devemos sempre defender a dignidade inviolável da
pessoa humana, princípio que remonta ao próprio Gênesis, é claro, onde
lemos que "Deus criou o homem à sua imagem" (
Gn 1, 27). O Magistério faz eco disso ao chamar cada um de nós
de "sinal do Deus vivo, ícone de Jesus Cristo" [3]. Temos uma
transcendência interior em comum com nosso Criador. Nós, humanos, somos
relacionais e seres sociais, feitos em conformidade com Deus, uma
trindade de Pessoas intrarrelacionais.
Por ser imagem de Deus, há algo de especial no homem, que o separa de
todo o resto da criação. Nós, sozinhos, podemos dizer "Eu". Nenhum outro
animal, por mais belo que pareça, pode pronunciar algo assim. Eles
estão limitados pelo instinto. Mesmo nos mais elevados primatas, como no
caso fascinante de Koko, a gorila que se comunica por sinais, a
disparidade continua sendo imensa. Nas palavras do Papa João Paulo, é
preciso dar "um salto ontológico" para atravessar o "grande abismo" que
separa pessoa e não-pessoa. Só o ser humano é capaz de pensamento
racional e abstrato, livre arbítrio, autoconsciência, ação moral,
linguagem complexa, progresso tecnológica, propósito elevado, altruísmo,
amor, criatividade, oração e adoração. O ser humano é diferente em grau
e em substância, porque Deus formou cada pessoa da infinitude de Si
mesmo [4].
No Novo Testamento, Jesus dá-nos o coração do personalismo com seu
mandamento de "amar ao próximo como a si mesmo". Porque, como ele revela
noutro lugar, "o que tiverdes feito ao menor destes meus irmãos, foi a
Mim que o fizestes". Ao abraçar essa noção personalista em nossas vidas,
nós nos livramos de nosso próprio egoísmo e frieza em relação ao
próximo. Tornamo-nos capazes de ver a face de Deus no outro. Essa é a
nossa vacina contra a desumanização da pessoa, juntamente com a adoção
de uma cultura da vida que resista a séculos de ceticismo e materialismo
e nos atraia a um conhecimento mais completo. O materialismo é apenas
parcialmente verdadeiro. Ele nega a natureza mais elevada de nosso ser
espiritual. Ao reconhecer a imagem de Deus em cada um, vemos o valor
universal ontológico de cada pessoa, mesmo dos aparentemente menores e
mais fracos de nós. Assim podemos, à luz do sacrifício de Cristo,
contemplar "quão precioso aos olhos de Deus e quão inestimável é o valor
da sua vida" com "a dignidade quase divina de cada homem" [5] — e agir
de acordo com essa verdade.
Fonte: Crisis Magazine | Tradução: Equipe Christo Nihil Praeponere
Referências
- Papa São João Paulo II, Carta Encíclica Fides et Ratio (14 de setembro de 1998), n. 1.
- Papa Leão XIII, Carta Encíclica Rerum Novarum (15 de maio de 1891), n. 5.
- Papa São João Paulo II, Carta Encíclica Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 84.
- Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2258.
- Papa São João Paulo II, Carta Encíclica Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 25.
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