segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A PROTESTANTIZAÇÃO DA CULTURA

 
Por ocasião da visita do papa Francisco a Lund, Suécia, como parte das comemorações dos 500 anos da dita "Reforma" protestante, num gesto que –, como não poderia deixar de ser –, provocou perplexidade, confusão, preocupação e mesmo indignação entre não poucos fiéis católicos (divulgou o portal 'The Fatima Center' que na referida cidade um pequeno grupo de católicos saiu em procissão com cartazes com dizeres como: 'Como pode uma celebração da revolta trazer unidade?', 'A verdadeira paz vem do Céu' e 'Não esconda a verdade católica', publicamos o excelente estudo do Revmo. padre Javier O. Ravasi, com a autorização do autor e traduzido por frei Zaqueu, que assim colabora com o nosso apostolado, no fito de oferecer algum subsídio para a reflexão dos nossos leitores. Esperamos em Nosso Senhor, humildemente, que a leitura seja útil.
Por Revmo padre Javier Olivera Ravasi
Tradução – Frei Zaqueu (freizaqueu@gmail.com)

Lutero é o protótipo das
idades modernas (Fichte)


O PADRE CANTALAMESSA, pregador quaresmal e pontifício, neste ano de 2016 deixou-nos palavras que trouxeram, por um lado, entusiasmo, e, por outro, desconcerto:

O mundo cristão nos prepara para celebrar o quinto centenário da "Reforma" em 2017. É vital para o futuro da Igreja não perder esta ocasião, permanecendo prisioneira do passado ou limitando-se a usar um tom mais conciliador no estabelecimento dos acertos e erros em ambos os lados. É o momento de dar, creio, um salto de qualidade, como quando uma barca chega à comporta de um rio ou de um canal que lhe permite prosseguir a navegação a um nível superior.

Consideramos – há que dizê-lo – bastante desafortunada a frase utilizada para referir-se à "Reforma". “Celebrar” implica “festejar”, “recordar com alegria”, “elogiar”… E, assim como ninguém em sã juízo “celebra” a morte de um ser querido, a separação de um cônjuge ou a enfermidade de um amigo, tampouco deveria fazer-se o mesmo com o episódio quiçá mais doloroso da História da Igreja, que não somente quebrou a unidade da Cristandade mas que, segundo alguns, arrastou as melhores de suas partes.

O cardeal Koch, presidente do Conselho Pontifício para Unidade dos cristãos (alguém a quem não se pode chamar de 'tradicionalista') já havia expressado em 2012 que não era possível “celebrar um pecado” pois “os acontecimentos que dividem a Igreja não podem ser chamados um dia de festa”[2]. Ao que tudo indica, quatro anos depois, os ventos da mudança lograram reciclar o prelado suíço, quem terminou promovendo a celebração de um ato ecumênico na Suécia para “comemorar (...) não a divisão, mas a renovação da Igreja” querida por Lutero[3].

Seja como for, consideramos apropriado o convite de analisar “acertos e erros de ambos os lados” como dizia o pregador Pontifício, a fim de compreender as consequências que, de parte do luteranismo, afetam a cultura hodierna. Para isso partimos da base de que a mal chamada “Reforma” protestante, vista já em perspectiva histórica, não foi outra coisa que uma ruptura doutrinal no seio mesmo da Igreja. E dizemos “ruptura doutrinal” porque, atualmente, nenhum historiador sério, com os escritos de Lutero à vista, dirá que o motivo da separação se baseou nos abusos do clero ou na pregação das indulgências em ordem a construir a Basílica Vaticana; do contrário, o mesmo Lutero estaria ali para desmenti-lo: “Eu não impugno a imoralidade e os abusos, mas a substância e a doutrina do Papado (…). Eu nunca deixei de atacar às duas colunas do Papado: os votos monásticos e o Sacrifício da Missa”[4].

A dita “Reforma” (em que pese o termo equívoco), teve sua raiz na desbordante e avassaladora personalidade de Martinho Lutero. Não é nosso propósito penetrar as causas ou seu desenvolvimento; sequer as intenções do monge agostiniano[5], às quais se referiu o atual Pontífice. Para isso existem hoje magníficas obras de resumo e eruditos trabalhos[6]; nos proporemos, sim, tentar ver em que medida o fenômeno protestante tem influído na cultura contemporânea, para o qual, após analisar sucintamente alguns princípios do protestantismo, veremos que consequências trouxeram aquelas lamas para estes lodos.

Mas digamos, em primeiro lugar, o que entendemos pelo termo “cultura”.


A cultura

Remontando-nos à sabedoria greco-romana, os antigos faziam derivar a palavra cultura do verbo latino colo, colis, colere, colui, cultum, que, etimologicamente, possui três acepções[7]: cultivar a terra, habitá-la, e venerar os deuses. Os ditos significados, longe de se opor, complementavam-se no mundo clássico, buscando sempre o aperfeiçoamento da ordem natural: cultivava-se uma planta e brotava a flor; cultivava-se o homem e surgia um herói ou o sábio que não esquecia os seus deuses.
Agora, desde o ponto de vista filosófico, poderia se dizer que cultura é “o conjunto de hábitos humanos que configuram uma sociedade enquanto expressivos da racionalidade”[8].

Vejamos:

1) Conjunto: porque não se reduzem a uma só coisa, mas que são vários os hábitos que nele confluem.

2) De hábitos: tomados em sua raiz subjetiva (modos de pensar, modos de conduzir-se, de expressar-se etc.) e em sua repercussão objetiva (linguagem, arte, música, construção, expressões religiosas, etc.).

3) Que configuram uma sociedade: ou seja, a mostram, lhe dão um “rosto” a um período, a uma civilização, a uma etapa, a um lugar etc.

4) Expressivos da racionalidade: é a raiz próxima que explica, por um lado, como a cultura é um proprium do homem, ao plasmar o espírito no tempo e no espaço; por outro, explica a possibilidade de transcender a cultura (inclusive de modificá-la) justamente pela capacidade reflexiva da razão, daí que o homem, ainda vivendo em determinado horizonte cultural, possa não estar necessariamente absorvido por ela, podendo transcendê-la se logra privilegiar em si a reflexão (não outra coisa sucedeu com Lot e sua família em Sodoma).

Ou seja, a cultura é um efeito, perdurável ou não no tempo e no espaço, que pode ir variando segundo a perfeição ou não do homem mesmo. Daí que essa “cultura” possa possuir gradações em um mais ou em um menos segundo aquele proprium racional.

Até aqui o âmbito estritamente filosófico.

Josef Pieper
Há no entanto no homem, apesar de sua natureza racional, essa necessidade de “tributar a Deus o culto devido”, religando-se com Ele e restaurando a justiça infringida, segundo a sentença de Santo Tomás[9]. É por isso que existe uma relação íntima entre religião, cultura e culto, na qual a primeira é fundante, as restantes fundadas. Segundo a religião que se possua (não os atos externos, senão o conteúdo próprio da religião), haverá uma cultura e, consequentemente, um culto. Neste sentido pode se dizer que o culto depende da cultura de modo que, aqueles hábitos próprios dos quais falávamos mais acima, se são elevados pela Graça e a virtude teologal da Fé (da verdadeira Fé), produzirão não só uma cultura exímia, mas um “culto verdadeiro”, como assinala de forma mui feliz John Senior ao dizer: “A cultura cristã é essencialmente a Missa (…) e todo o aparato que a protege e favorece”[10].

E, com palavras análogas, o grande Josef Pieper: “Não há nada por fundar. Para o cristão há algo que não oferece lugar a dúvidas: que depois de Cristo não há senão uma forma verdadeira e válida de celebração do culto: a Oferenda Sacramental da Igreja cristã”[11].

Mas não nos adiantemos. Vejamos primeiro as teses fundamentais do protestantismo que, a nosso juízo, hoje influem na cultura contemporânea. E estas são três: o princípio de imanência, a fé pessoal e a predestinação fatalista.


O princípio de imanência ou a primazia do “Eu”

Sob o título de “Lutero ou o advento do Eu”[12], Maritain iniciava seu já famoso livro intitulado "Três Reformadores". A primazia do eu ou, dito em termos do padre Cornélio Fabro “o princípio de imanência”, denota essa “mudança de direção do objeto ao sujeito, do mundo ao eu, do exterior ao interior”[13] pelo qual o homem se coloca em um lugar central, sendo árbitro e medida de todas as coisas.

Guilherme de Ockham
De onde um monge agostiniano, conhecedor da Filosofia e da Teologia, podia pensar deste modo? É que Lutero é filho de seu tempo: educado na universidade de Erfurt primeiro, e, na vida religiosa depois, se viu empapado da “via modernorum” ('o caminho dos modernos'), um movimento consolidado por Guilherme de Ockham (o 'philosophus maximus' segundo ele) o pai do nominalismo. A dita corrente, longe de ser um “sistema” fechado, era mais uma atmosfera ou ar de repúdio contra o movimento escolástico, que se encontrava por então perdido em fúteis interpretações e distinções, que faziam da Filosofia e Teologia um emaranhado labirinto de trocadilhos e símbolos.
Assim o assinala o dominicano Frei, um grande historiador da Filosofia:

O nominalismo não é um sistema, nem sequer uma escola, é mais um sentimento, um espírito difuso, um pouco indefinido, mas que repercute em amplas ramificações que se estendem às manifestações mais diversas, à política, à teologia, à filosofia e à mística (…). Seu signo é essencialmente negativo e demolidor. Carece de soluções positivas. É mais um conjunto de problemas, uma atitude crítica e cética ante os aportes da escolástica anterior. [14]

Daí que, ao descer aos grandes temas, o nominalismo caia em um certo ceticismo propondo, por exemplo, que,

a teologia não é ciência, e não há possibilidade nenhuma de conciliação entre os dois campos, o da razão e o da fé (…). Assim se compreendem as múltiplas derivações, aparentemente contraditórias, que resultam simplesmente de se acentuar mais ou menos algum de seus princípios.[15]

Ockham, afirmando também a univocidade (e não a analogia) do ser, propunha que a realidade se compõe de indivíduos particulares que só possuem em comum o nome, a partir de –em última instância- uma mera convenção:

O universal não existe fora da alma, nem como substância nem como acidente. Mas tampouco existe dentro da alma como acidente de qualidade. Não tem mais que uma realidade objetiva, isto é, que se identifica com a mesma alma ou entendimento. É uma ficção (‘fictio’, ‘imago’, ‘exemplar’) cujo ser consiste somente em ser percebido (‘esse est percipi’).

Os conceitos têm um esse subjetive[17] expressados por meio dos nomes (com o tempo, Heidegger dirá que as palavras são o veículo do ser) pelo que, dado que o homem é incapaz de alcançar a essência das coisas (e, por isso, a verdade) terminará fechando-se na intimidade de seu cogito-volo (penso-quero), que lhe impedirá transcender o âmbito da consciência pessoal.[16]

É isto o que levará Ockham a adotar “uma atitude de desdenhosa independência frente aos seus contemporâneos. Não reconhece mais autoridades que a Sagrada Escritura, a Igreja e os doutores aprovados por ela [citando] raras vezes a Santo Tomás, e com o fim de rejeitar suas doutrinas”[18].

Pois bem, este princípio do permanecer na própria interioridade, de centrar a bússola no Eu, é um dos que Lutero receberá e projetará. Para o monge agostiniano, todo dado da inteligência será incerto (“a prostituta razão”, gostava de chamar à inteligência), tendo como única fonte de certeza a revelação bíblica lida segundo o espírito subjetivo de cada qual. Isto e não outra coisa será o motor do “livre examen” protestante. Nada de princípios exteriores, nada de dogmas, só uma experiência interior de “liberação espiritual” e uma percepção interior da realidade reduzida a sentimento pessoal: “O cristianismo não é mais que o exercício contínuo de sentir que não tens pecado ainda que peques”[19].

Sentimento a partir do Eu. É então, o primeiro princípio: a primazia do eu ou o princípio de imanência.


A salvação pela fé pessoal

A segunda tese do Protestantismo que influirá em nossa cultura, é aquela que proporá a salvação a partir de uma Fé separada de suas obras.

Dentre os inumeráveis escritos do monge alemão, há um que, por sua brevidade e concisão nos dão uma ideia de sua doutrina a respeito do intitulado “Da liberdade cristã”: oferecendo ali uma síntese sobre sua doutrina acerca da justificação, assinala o reformador que o homem não se encontra sujeito a preceito algum, nem às obras externas, mas só à fé em Cristo, nosso Salvador. Em sua concepção, o Filho de Deus, por haver sido ofendido, se entregou de uma vez e para sempre em nosso lugar.

Seu raciocínio é simples: o pecado do homem é uma ofensa infinita contra Deus que não pode ser apagada de modo algum (nem sequer pelo sacramento do batismo). Por que propõe isto? Porque o “comprova” a partir de nossa inclinação permanente ao pecado, como “se experimenta” na concupiscência. É o desejo desordenado o que, longe do que assinala a Igreja, nos demonstra esse estado permanente de pecado em que nos encontramos imersos, fazendo-nos, per se, enfadonhos a Deus e incapazes de justificar-nos por nossas ações.

Que fazer então? Somente lançar-nos nos braços de Cristo, quem já pagou por nós, de uma vez e para sempre... Acaso não é isso o que ensinam as Escrituras? “O justo vive da Fé”– diz São Paulo (Rm 1,17), ao que Lutero com o tempo agregará “só” da Fé. É crendo ou, melhor, “confiando interiormente”, que o homem poderá salvar-se, inclusive sendo mau.

O monge agostiniano, tratando acerca do tema, não hesitará em escrever a seu discípulo Melanchton: “Deus não salva aos pecadores fingidos. Sê pecador e peca fortemente, mas ainda com mais força alegra-te de Cristo…”[20].

Deus sempre nos justificará apesar de nossas obras[21]. Nada de tentar salvar-se pelas obras, nada de sacramentos, nada da ação santificadora da Igreja, nem do sacerdócio, a confissão, etc.


A negação de liberdade do homem e a predestinação

Já vimos a imanência e a não necessidade – e mais ainda a impossibilidade – das obras para salvar-se; só basta a Fé; há entretanto uma última tese protestante que não pode deixar de nomear-se, e que se refere à perda da liberdade e à absoluta predestinação do homem rumo ao céu ou ao inferno: “É terrível o decreto, o confesso (dirá Calvino), mas ninguém poderá negar que Deus previu o destino final do homem antes que o criasse (…). Sua natureza é má e podre (…) não possuímos o arrependimento em nossas mãos”[22].

Nosso destino não está em nossas mãos; ninguém pode agregar ou retirar nada à natureza humana, absolutamente corrompida desde o princípio. O homem está predestinado tanto ao céu como ao inferno independentemente do que faça; se trata de um fatalismo teológico no qual não conta o livre arbítrio. Nada pode o homem pensar, querer ou fazer que não tenha sido previamente determinado por Deus desde toda a eternidade:

Chamamos predestinação – assinala Lutero – ao eterno conselho de Deus, pelo que há decretado ou o que há de fazer de cada homem. Porque Deus não os cria a todos nas mesmas condições, mas ordena a uns para a vida eterna e a outros para a eterna condenação (…). E segundo mostra claramente a Escritura, afirmamos que o Senhor há determinado já em seu eterno imutável conselho a quem salvar e a quem quer deixar na ruína[23].

Com estas palavras, afirma-se uma heresia horrenda também sustentada por Lutero: “Deus é mau”. Em efeito, se “não possuímos o arrependimento em nossas mãos” e a salvação é possível só para alguns, então afirma-se que Deus cria algumas pessoas predestinando-as ao inferno. Mas, se Deus predestina almas ao inferno, então Deus é um tirano e, mais ainda, o pior deles, daí que, como a moral divina se funda nas arbitrariedades divinas, é necessário rejeitá-la como propunha o nominalismo: já não há mais princípios; só sujeitos que propõem uma moral situacional.

Não importa o que o homem faça; não importa o que o homem pense; a vida, no dizer de Macbeth, será “um conto contado por um idiota, cheio de ruído e de fúria, que não tem nenhum sentido”.

Até aqui, algumas das teses protestantes. Tentemos agora ver como puderam ter influenciado na cultura atual.


A influência do Protestantismo na cultura atual

O padre Julio Meinvielle em sua obra já clássica intitulada “O comunismo na revolução anticristã”[24], assinala com precisão que, no homem coexistem quatro formalidades, isto é, quatro constitutivos. O homem é, antes de tudo, um aliquid, ou seja, um algo, uma coisa; mas ao mesmo tempo, o homem é também animal, quer dizer, é um ser sensível, que segue o bem deleitável. Mas não só isso: o homem é também homem, ou seja, é um ser racional que se guia pelo bem honesto e pode alcançar e apreender a verdade; mas acima destas três formalidades, o homem também é capaz de Deus, está chamado à vida em comunhão com Ele, que é a vida sobrenatural.

Esquematizando então, poderia se dizer que quatro são as formalidades:

a. A formalidade sobrenatural ou divina.

b. A formalidade humana ou racional.

c. A formalidade animal ou sensitiva.

d. A formalidade da mera realidade ou da mera coisa.

Seguindo este mesmo esquema tentaremos ver como as teses protestantes que temos selecionado têm podido influir em nossos hábitos culturais. Mas antes uma objeção: poderia se dizer que o Protestantismo como tal, isto é, como religião, parece estar extinto em sua raiz mais acabada; e no entanto, a forma mentis, os hábitos que ela engendrou, inclusive em ambientes católicos, esteja muito viva. Porque uma heresia pode morrer como confissão religiosa mas suas consequências culturais podem perdurar no tempo.

Mas vejamos as revoluções possíveis.


a. Em primeiro lugar, a revolução do eu contra Deus: relativismo subjetivista

Como podemos ver, o princípio de imanência ou o “advento do Eu” não só tem sido o princípio, mas a causa do resto das teses protestantes. Esse giro rumo à subjetividade e rumo à interioridade se disparará poucos anos depois da “Reforma” tanto em sua vertente racionalista, fideísta como empirista. Se trata, nas memoráveis palavras de Fabro, de um “subjetivismo dogmático” pelo qual “o Protestantismo terminará inevitavelmente no anarquismo”[25] a partir do qual “o ato de fé que termina por tragar ou sufocar o elemento dogmático”[26].

Já o denunciava em palavras também memoráveis Pio XII: “Nestes últimos séculos... quiseram a natureza sem a graça… Cristo sim e a Igreja não (Revolução humanista e protestante)... depois Deus sim e Cristo não (Revolução liberal)... ao fim, o grito ímpio: Deus está morto (Revolução comunista)”[27].

Esse culto pelo EU, fará do homem um Deus-para-si que, longe de regressar a sua formalidade “natural”, ou “racional” o desbarrancará a um lodaçal sem limites. Quer dizer, o culto pessoal, não o levará novamente a um âmbito “natural” mas a um afastamento deste. Mas, por quê? –poderíamos nos perguntar licitamente- não torna o homem, abandonando a graça, à ordem natural existente prévia ao cristianismo, por exemplo? por que não torna à sabedoria dos gregos ou à ordem romana?

A razão parece encontrar-se na mesma ideia de redenção. Em efeito, quando Deus quis irromper agressivamente na história, chegada a plenitudo temporum (Gal 4,4) a inteligência humana foi elevada pela graça tornando o homem “mais homem” (se se nos permite a expressão). Agora, ao retroceder à própria interioridade subjetiva, o homem volta a ser uma espécie de Prometeu desacorrentado não ao manejo de suas paixões, senão à desordem das mesmas.

Chesterton o retratou com estas inesquecíveis palavras:

É impossível adorar à humanidade, do mesmo modo como é impossível adorar (…) (um) clube; ambas são instituições extraordinárias às quais podemos eventualmente pertencer. (…). Suprimindo o sobrenatural, o que nos restará é o antinatural.[28]

A que se refere o escritor inglês ao dizer, “nos restará o antinatural”? A que, abdicando da primazia de Deus, não se volta ao homem, mas se cai ainda mais.

Vejamos em palavras de Lutero como, voltando-se a si mesmo, despreciava a realidade anterior a ele, como querendo inventar a roda:

Lutero o quer, Lutero assim o diz. Lutero é um doutor acima de todos os doutores de todo o papismo (…)[29]. “Ainda que os santos Cipriano, Ambrósio e Agostinho; ainda que São Pedro, São Paulo e São João; ainda que os anjos do céu te ensinem outra coisa, isto é o que sei de correto: que não ensino coisas humanas, senão divinas; ou seja, que tudo o atribuo a Deus, aos homens nada (…). Os Santos Padres, os doutores, os concílios, a mesma Virgem Maria e São José e todos os santos juntos podem equivocar-se (ele não, claro)[30]

A primazia do EU pessoal fará que a mesma concepção de verdade se veja afetada. Já não será, por certo, a conformidade do intelecto à coisa, mas simplesmente um produto da vontade:

O que mais chama a atenção na fisionomia de Lutero, é o egocentrismo: algo muito mais sutil, mais profundo e mais grave que o egoísmo; o egoísmo metafísico. O eu de Lutero se converte praticamente no centro de gravidade de todas as coisas (…). “Não admito, escrevia em junho de 1522, que minha doutrina possa ser julgada por ninguém, nem sequer pelos anjos. Quem não receber a minha doutrina não pode chegar a salvar-se” (…). O eu de Lutero, era segundo ele, o centro em torno ao qual devia gravitar a humanidade inteira; se converteu a si mesmo no homem universal em quem todos deviam encontrar seu modelo. Resumindo, se colocou em lugar de Jesus Cristo.[31]

Ao que arremata:

Mas o caso de Lutero – pergunta-se Maritain – não nos mostra na realidade um dos problemas contra os quais se debate em vão o homem moderno? Me refiro ao problema do individualismo e da personalidade[32] (…). Chegamos aqui ao fundo do erro imanentista. Consiste este em crer que a liberdade, a interioridade, o espírito, residem essencialmente em uma oposição ao não-Eu, em uma ruptura do adentro com o afora: verdade e vida serão, pois, unicamente buscadas no interior do sujeito humano; tudo o que provém em nós do que não é nós, ou seja, o que provém de outro, é um atentado contra o espírito e contra a sinceridade. E tudo o que é extrínseco a nós, significa a destruição e a morte de nosso interior (…). Por conseguinte, para o individualismo protestante moderno, a Igreja e os sacramentos nos separam de Deus; para o subjetivismo filosófico moderno a sensação e a ideia nos separam do real.[33]

Fazendo do homem o centro da realidade e, melhor dito, a única “realidade real”, é absolutamente necessária a caída na isolada interioridade. Para a cultura moderna, só existe o eu, e é ele quem possui os critérios de bem e de verdade. A norma da verdade já não é o objeto sobre o qual se emite um juízo, senão a psicologia do sujeito, ou o que se afirma no ambiente, as condições culturais de uma sociedade, etc. Toda verdade é relativa, pois só é válida em relação com o sujeito que a pensa: o bem, a ética, a religião, etc., só valem o que o homem ou o grupo de homens queira pagar por elas, segundo seus diversos condicionamentos; “nesta perspectiva, tudo se reduz a opinião”, como disse João Paulo II.

Lewis, em uma pérola literária intitulada “O veneno do subjetivismo” assinala que na modernidade o homem “não crê que os juízos de valor sejam sequer realmente juízos. São sentimentos, ou complexos, ou atitudes, produzidas em uma comunidade pela pressão de seu ambiente e de suas tradições, e diferem de uma comunidade a outra. Dizer que uma coisa é boa é simplesmente expressar nosso sentimento rumo a ela”.

O mesmo conceito de “afirmação” por si só, de “definição” pode ser para o homem atual considerado obtuso; o sim, sim; não, não evangélico resulta para a cultura moderna como fascista e intolerante. “Tudo é negociável”, afirma Rojas, pois não existe mais “a verdade”, mas “minha verdade”, “tua verdade”, segundo as próprias preferências; “uma verdade à la carte”. Se trata de um novo código ético onde tudo pode ser, alternativamente, positivo ou negativo, tornando impossível todo diálogo por não existir um ponto de encontro com a coisa.


b. Segunda caída: revolução da sensibilidade contra a inteligência

A segunda revolução se dará, segundo o esquema traçado, da formalidade sensível à racional. Lutero –já o dissemos– desconfiava do papel da inteligência para além do âmbito prático. Nada de contemplação, nada de vida segundo as potências superiores. As frases ilustrativas são inumeráveis; vejamos algumas delas:

A razão se opõe diretamente à Fé, e deveriam deixá-la que se vá; nos crentes há que matá-la e enterrá-la (…). Deves abandonar tua razão, não saber nada dela, aniquilá-la completamente; sem isso não entrarás nunca no céu (…). Há que deixar a razão em sua casa, pois é a inimiga nata da Fé. Nada há tão contrário à Fé, como a lei e a razão. Precisamos vencê-las, se queremos alcançar a bem-aventurança.[37]
(A razão) quando trata de imiscuir-se nas coisas espirituais, é cegueira e trevas (…) só pode blasfemar e desonrar tudo o que Deus tem dito e feito (…) a razão é a prostituta do diabo, por sua essência e maneira de ser, é uma prostituta daninha (…) que deveria ser pisoteada e destruída.[38]

Um detalhe a ressaltar é o curioso fato de que Lutero chame prostituta à razão e que logo, a Revolução Francesa, filha da luterana, a entronize exaltando-a a seguir na catedral de Notre Dame de Paris. É que, como dizia Frei mais acima, apenas se trata de acentuar um e outro princípio (a fé ou a razão) desde a mesma subjetividade.

De Aristóteles, talvez o maior pensador da Antiguidade e “maestro di color che sanno” se dizia:

Aristóteles é o ímpio baluarte dos papistas. É à teologia o que as trevas são à luz. Sua ética é inimiga da graça; é um filósofo arcaico, um canalha que deveriam meter no chiqueiro ou na pocilga dos asnos… um caluniador sem vergonha, um comediante, o mais artimanhoso e astuto corruptor dos espíritos. Se não tivesse realmente existido em carne e em osso, se poderia tê-lo, sem nenhum escrúpulo, pelo diabo em pessoa (…). É impossível reformar a Igreja se antes a teologia e a filosofia escolástica não são arrancadas pela raiz.[39]

Se a razão não serve, só resta a sensibilidade. É o homem de pernas para o ar de que falava o padre Alberto Ezcurra seguindo a Ovidio:

Quando Deus cria ao homem o cria vertical (…). Essa criação do corpo do homem vertical é um signo do que tem que ser o homem por dentro, em sua alma (…). Deus o criou com a cabeça acima do coração, com o coração acima do estômago, do sexo e dos pés. E essa hierarquia do homem vertical nos está indicando também o que o homem tem que ser por dentro:
Acima de tudo está a cabeça; quer dizer, a inteligência que me faz conhecer a realidade e conhecer a verdade. E essa verdade que a inteligência conhece se mostra ao coração, isto é, à vontade; para que a vontade ame o que é verdadeiro e o que é bom. E depois vêm também as paixões, os sentimentos e os instintos que, iluminados pela inteligência e governados pela vontade, servem para que o homem seja capaz de entusiasmar-se por tudo o que é verdadeiro e por tudo o que é bom.
Essa é a imagem do homem como Deus o criou: inteligência que conhece a verdade, se a mostra à vontade como algo bom sendo as paixões e os sentimentos governados pela vontade e dominados pela inteligência. Agora bem, o homem moderno é um homem posto “de pernas para o ar”. Ao homem vertical que Deus criou se lhe opõe um homem invertido. O que está acima? Acima de tudo estão as paixões, estão os instintos, estão os sentimentos. Pelo que se guia o homem? “Eu gosto”, “eu não gosto”; “tenho desejos”, “não tenho desejos”; “que lindo!”, “que feio!”. Nos guiamos pelos instintos. E depois vem a vontade. A vontade para satisfazer todos os caprichos dos instintos; e ao final, bem abaixo de tudo, vem a pobre inteligência. Para quê? Para justificar-me e dizer que tudo o que eu gosto está bem.[40]

Ao ter abdicado da inteligência, o que resta é que esta sirva de serva das paixões, ficando o homem impossibilitado do livre arbítrio nas mãos de um Deus predestinador. Max Weber explicou com maestria como esta concepção determinista do protestantismo levará necessariamente ao capitalismo moderno: se Deus dispôs desde toda a eternidade que algumas pessoas se salvem e outras se condenem, independentemente do que façam, não poderá se descobrir desde agora qual é sua vontade? Ou seja, como saber se alguém se encontra no estado de condenação ou de salvação eterna? Pois bem: dado que Deus não muda, não cambia, deve existir algum indício que nos indique quais são os signos da predileção divina em seus elegidos. Quais serão? Simples: a prosperidade econômica; o triunfo nesta vida: a prosperidade, assim como se ensinava no Antigo Testamento:

Fui jovem, já sou velho / nunca vi a um justo abandonado, nem a sua linhagem mendigando o pão. / Diariamente se compadece e dá emprestado; bendita será a sua descendência (…). Os justos possuirão a terra, a habitarão pelos séculos dos séculos.[41]

Calvino, o grande teórico do protestantismo (e seu verdadeiro criador, segundo Belloc), instaurará este princípio: os homens devem tentar enriquecer-se e, se o fazem, é porque foram eleitos por Deus; do contrário, é signo de que estão condenados para toda a eternidade[42].

Mas ainda resta uma caída; a caída na formalidade “coisa”.


c. Terceira caída: a pessoa como objeto

As raízes filosóficas e teológicas do Protestantismo, com seu voluntarismo irracional, levarão a que o homem seja considerado simplesmente um objeto, uma coisa que, como tal, não dependa mais que do arbítrio de outro mais poderoso que ditem as leis.

A ordem da lei eterna, lei divina, lei natural e lei positiva tem sido alterado ou negado, admitindo somente a última como válida e fraturando a objetividade do Direito não restando mais que a vontade do legislador, daí que um filósofo do direito como Kelsen termine por aceitar que não exista mais lei que a positiva, inclusive quando não fossem de seu agrado, como as do regime nazi.

Com peculiar estilo o expressa Lewis:

Qualquer um se indignaria ao ouvir um alemão [nazi] dizer que justiça era “o que convinha aos interesses do terceiro Reich”. Mas nem sempre se recorda que essa indignação careceria totalmente de fundamento se um mesmo considerasse a moralidade como um sentimento subjetivo que pode ser alterado à vontade. A menos que se tenha algum padrão objetivo do bem, que abarque igualmente aos alemães, aos japoneses, e à nós mesmos —o obedeça ou não qualquer de nós—, por suposto que esses alemães estarão tão autorizados para criar sua ideologia como o estamos nós para criar a nossa.[43]

Se a única regra do bem agir é a vontade política, longe da razão e dominada por caprichos positivos, o que hoje possa ser bom ou verdadeiro, amanhã poderá ser mau e falso e a política, no melhor dos casos, ficará governada por princípios ideológicos sujeitos ao governante de turno. Por outra parte, o súdito, não alcançará seu próprio bem, senão em vistas do Estado, do qual será uma parte quase acidental do todo e em lugar de ordenação do bem próprio ao bem comum haverá subordinação -ontológica- da parte ao todo, assim como a mão se subordina ao corpo e o ramo à árvore. O indivíduo “será” para o Estado porque só nele encontrará sua essência, liberdade e verdade (como indivíduo)[44], como um momento que encontra sua concreção. A pessoa em quanto tal ficará convertida a objeto, e ela mesma por sua vez, a simples referência a objetos (de prazer, de estudo etc).

Da formalidade sobrenatural, então à mera formalidade de coisa.


Conclusão

Dizia Belloc na introdução que dedicou a Chesterton em “Assim ocorreu a Reforma”:

(A reforma) não foi o incêndio intencional de um nobre edifício; menos ainda a meritória demolição de um ignóbil. Se pareceu mais a um grande fogo destruidor aceso por homens que habitavam uma casa e que, empenhados em um experimento violento que requeria uso de chamas, se achavam demasiado excitados para perceber o risco que corriam. O experimento se realizou mal, e a metade das habitações da casa restaram queimadas até seus cimentos, e as demais se salvaram, mas chamuscadas e enegrecidas.[45]

Isso foi o protestantismo: uma heresia que, como confissão religiosa se encontra em clara extinção (inclusive mais que a católica), mas que engendrou uma cultura que hoje subsiste em muitos aspectos.

Nos coube habitar essa “metade das habitações” das que falava Belloc; habitações chamuscadas, enegrecidas e até abandonadas por seus proprietários; mas habitações de uma casa fundada sobre Rocha, que deve ser reconstruída e restaurada desde a verdadeira religião que engendrará uma verdadeira cultura cristã.

Como reformar nossa cultura ante este barbarismo? Como não dobrar-nos a ela? Há apenas umas semanas lhe perguntaram o mesmo ao cardeal Cafarra, ao que respondeu –e nós com ele, para terminar- o que cremos ser o início da solução:

Direi com toda a franqueza: eu não vejo nenhum outro lugar fora da família, onde a fé que há que crer e viver possa ser suficientemente transmitida. Por outra parte, na Europa durante o colapso do Império Romano e durante as invasões bárbaras posteriores, o que fizeram os monastérios beneditinos naquele momento, do mesmo modo pode ser feito agora pelas famílias dos que creem, no reinado atual de uma nova barbárie espiritual (que é uma) barbárie antropológica.[46]


Pe. Javier Olivera Ravasi

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