Por
ocasião da visita do papa Francisco a Lund, Suécia, como parte das
comemorações dos 500 anos da dita "Reforma" protestante, num gesto que
–, como não poderia deixar de ser –, provocou perplexidade, confusão,
preocupação e mesmo indignação entre não poucos fiéis católicos
(divulgou o portal 'The Fatima Center' que na referida cidade um
pequeno grupo de católicos saiu em procissão com cartazes com dizeres
como: 'Como pode uma celebração da revolta trazer unidade?', 'A
verdadeira paz vem do Céu' e 'Não esconda a verdade católica', publicamos o excelente estudo do
Revmo. padre Javier O. Ravasi, com a autorização do autor e traduzido
por frei Zaqueu, que assim colabora com o nosso apostolado, no fito de
oferecer algum subsídio para a reflexão dos nossos leitores. Esperamos
em Nosso Senhor, humildemente, que a leitura seja útil.
Por Revmo padre Javier Olivera Ravasi
Tradução – Frei Zaqueu (freizaqueu@gmail.com)
Tradução – Frei Zaqueu (freizaqueu@gmail.com)
Lutero é o protótipo das
idades modernas (Fichte)
idades modernas (Fichte)
O PADRE CANTALAMESSA, pregador quaresmal e pontifício, neste ano de 2016 deixou-nos palavras que trouxeram, por um lado, entusiasmo, e, por outro, desconcerto:
“O mundo cristão nos prepara para celebrar o quinto centenário da "Reforma" em 2017. É vital para o futuro da Igreja não perder esta ocasião, permanecendo prisioneira do passado ou limitando-se a usar um tom mais conciliador no estabelecimento dos acertos e erros em ambos os lados. É o momento de dar, creio, um salto de qualidade, como quando uma barca chega à comporta de um rio ou de um canal que lhe permite prosseguir a navegação a um nível superior.”
Consideramos – há que dizê-lo – bastante
desafortunada a frase utilizada para referir-se à "Reforma". “Celebrar”
implica “festejar”, “recordar com alegria”, “elogiar”… E, assim como
ninguém em sã juízo “celebra” a morte de um ser querido, a separação de
um cônjuge ou a enfermidade de um amigo, tampouco deveria fazer-se o
mesmo com o episódio quiçá mais doloroso da História da Igreja, que não
somente quebrou a unidade da Cristandade mas que, segundo alguns,
arrastou as melhores de suas partes.
O cardeal Koch, presidente do
Conselho Pontifício para Unidade dos cristãos (alguém a quem não se pode
chamar de 'tradicionalista') já havia expressado em 2012 que não era
possível “celebrar um pecado” pois “os acontecimentos que dividem a
Igreja não podem ser chamados um dia de festa”[2]. Ao que tudo indica,
quatro anos depois, os ventos da mudança lograram reciclar o prelado
suíço, quem terminou promovendo a celebração de um ato ecumênico na
Suécia para “comemorar (...) não a divisão, mas a renovação da Igreja”
querida por Lutero[3].
Seja como for, consideramos
apropriado o convite de analisar “acertos e erros de ambos os lados”
como dizia o pregador Pontifício, a fim de compreender as consequências
que, de parte do luteranismo, afetam a cultura hodierna. Para isso
partimos da base de que a mal chamada “Reforma” protestante, vista já em
perspectiva histórica, não foi outra coisa que uma ruptura doutrinal no
seio mesmo da Igreja. E dizemos “ruptura doutrinal” porque, atualmente,
nenhum historiador sério, com os escritos de Lutero à vista, dirá que o
motivo da separação se baseou nos abusos do clero ou na pregação das
indulgências em ordem a construir a Basílica Vaticana; do contrário, o
mesmo Lutero estaria ali para desmenti-lo: “Eu não impugno a imoralidade e os abusos, mas a substância e a doutrina do Papado (…). Eu nunca deixei de atacar às duas colunas do Papado: os votos monásticos e o Sacrifício da Missa”[4].
A dita “Reforma” (em que pese o
termo equívoco), teve sua raiz na desbordante e avassaladora
personalidade de Martinho Lutero. Não é nosso propósito penetrar as
causas ou seu desenvolvimento; sequer as intenções do monge
agostiniano[5], às quais se referiu o atual Pontífice. Para isso existem
hoje magníficas obras de resumo e eruditos trabalhos[6]; nos
proporemos, sim, tentar ver em que medida o fenômeno protestante tem
influído na cultura contemporânea, para o qual, após analisar
sucintamente alguns princípios do protestantismo, veremos que
consequências trouxeram aquelas lamas para estes lodos.
Mas digamos, em primeiro lugar, o que entendemos pelo termo “cultura”.
A cultura
Remontando-nos à sabedoria greco-romana, os antigos faziam derivar a palavra cultura do verbo latino colo, colis, colere, colui, cultum,
que, etimologicamente, possui três acepções[7]: cultivar a terra,
habitá-la, e venerar os deuses. Os ditos significados, longe de se opor,
complementavam-se no mundo clássico, buscando sempre o aperfeiçoamento
da ordem natural: cultivava-se uma planta e brotava a flor; cultivava-se
o homem e surgia um herói ou o sábio que não esquecia os seus deuses.
Agora,
desde o ponto de vista filosófico, poderia se dizer que cultura é “o
conjunto de hábitos humanos que configuram uma sociedade enquanto
expressivos da racionalidade”[8].
Vejamos:
1) Conjunto: porque não se reduzem a uma só coisa, mas que são vários os hábitos que nele confluem.
2) De hábitos: tomados em
sua raiz subjetiva (modos de pensar, modos de conduzir-se, de
expressar-se etc.) e em sua repercussão objetiva (linguagem, arte,
música, construção, expressões religiosas, etc.).
3) Que configuram uma sociedade: ou seja, a mostram, lhe dão um “rosto” a um período, a uma civilização, a uma etapa, a um lugar etc.
4) Expressivos da racionalidade: é a raiz próxima que explica, por um lado, como a cultura é um proprium
do homem, ao plasmar o espírito no tempo e no espaço; por outro,
explica a possibilidade de transcender a cultura (inclusive de
modificá-la) justamente pela capacidade reflexiva da razão, daí que o
homem, ainda vivendo em determinado horizonte cultural, possa não estar
necessariamente absorvido por ela, podendo transcendê-la se logra
privilegiar em si a reflexão (não outra coisa sucedeu com Lot e sua
família em Sodoma).
Ou seja, a cultura é um efeito,
perdurável ou não no tempo e no espaço, que pode ir variando segundo a
perfeição ou não do homem mesmo. Daí que essa “cultura” possa possuir
gradações em um mais ou em um menos segundo aquele proprium racional.
Até aqui o âmbito estritamente filosófico.
Josef Pieper |
Há no entanto no
homem, apesar de sua natureza racional, essa necessidade de “tributar a
Deus o culto devido”, religando-se com Ele e restaurando a justiça
infringida, segundo a sentença de Santo Tomás[9]. É por isso que existe
uma relação íntima entre religião, cultura e culto, na qual a primeira é
fundante, as restantes fundadas. Segundo a religião que se possua (não
os atos externos, senão o conteúdo próprio da religião), haverá uma
cultura e, consequentemente, um culto. Neste sentido pode se dizer que o
culto depende da cultura de modo que, aqueles hábitos próprios dos
quais falávamos mais acima, se são elevados pela Graça e a virtude
teologal da Fé (da verdadeira Fé), produzirão não só uma cultura exímia,
mas um “culto verdadeiro”, como assinala de forma mui feliz John Senior
ao dizer: “A cultura cristã é essencialmente a Missa (…) e todo o
aparato que a protege e favorece”[10].
E, com palavras análogas, o grande Josef Pieper: “Não há nada por fundar. Para o cristão há algo que não oferece lugar a dúvidas: que depois de Cristo não há senão uma forma verdadeira e válida de celebração do culto: a Oferenda Sacramental da Igreja cristã”[11].
Mas não nos adiantemos. Vejamos
primeiro as teses fundamentais do protestantismo que, a nosso juízo,
hoje influem na cultura contemporânea. E estas são três: o princípio de
imanência, a fé pessoal e a predestinação fatalista.
O princípio de imanência ou a primazia do “Eu”
Sob o título de “Lutero ou o
advento do Eu”[12], Maritain iniciava seu já famoso livro intitulado
"Três Reformadores". A primazia do eu ou, dito em termos do padre
Cornélio Fabro “o princípio de imanência”, denota essa “mudança de
direção do objeto ao sujeito, do mundo ao eu, do exterior ao
interior”[13] pelo qual o homem se coloca em um lugar central, sendo
árbitro e medida de todas as coisas.
Guilherme de Ockham |
De onde um monge
agostiniano, conhecedor da Filosofia e da Teologia, podia pensar deste
modo? É que Lutero é filho de seu tempo: educado na universidade de
Erfurt primeiro, e, na vida religiosa depois, se viu empapado da “via modernorum” ('o caminho dos modernos'), um movimento consolidado por Guilherme de Ockham (o 'philosophus maximus' segundo
ele) o pai do nominalismo. A dita corrente, longe de ser um “sistema”
fechado, era mais uma atmosfera ou ar de repúdio contra o movimento
escolástico, que se encontrava por então perdido em fúteis
interpretações e distinções, que faziam da Filosofia e Teologia um
emaranhado labirinto de trocadilhos e símbolos.
Assim o assinala o dominicano Frei, um grande historiador da Filosofia:
“O nominalismo não é um sistema, nem sequer uma escola, é mais um sentimento, um espírito difuso, um pouco indefinido, mas que repercute em amplas ramificações que se estendem às manifestações mais diversas, à política, à teologia, à filosofia e à mística (…). Seu signo é essencialmente negativo e demolidor. Carece de soluções positivas. É mais um conjunto de problemas, uma atitude crítica e cética ante os aportes da escolástica anterior.” [14]
Daí que, ao descer aos grandes temas, o nominalismo caia em um certo ceticismo propondo, por exemplo, que,
“a teologia não é ciência, e não há possibilidade nenhuma de conciliação entre os dois campos, o da razão e o da fé (…). Assim se compreendem as múltiplas derivações, aparentemente contraditórias, que resultam simplesmente de se acentuar mais ou menos algum de seus princípios.”[15]
Ockham, afirmando também a
univocidade (e não a analogia) do ser, propunha que a realidade se
compõe de indivíduos particulares que só possuem em comum o nome, a
partir de –em última instância- uma mera convenção:
O universal não existe fora da
alma, nem como substância nem como acidente. Mas tampouco existe dentro
da alma como acidente de qualidade. Não tem mais que uma realidade
objetiva, isto é, que se identifica com a mesma alma ou entendimento. É
uma ficção (‘fictio’, ‘imago’, ‘exemplar’) cujo ser consiste somente em ser percebido (‘esse est percipi’).
“Os conceitos têm um esse subjetive[17] expressados por meio dos nomes (com o tempo, Heidegger dirá que as palavras são o veículo do ser) pelo que, dado que o homem é incapaz de alcançar a essência das coisas (e, por isso, a verdade) terminará fechando-se na intimidade de seu cogito-volo (penso-quero), que lhe impedirá transcender o âmbito da consciência pessoal.”[16]
É isto o que levará Ockham a adotar
“uma atitude de desdenhosa independência frente aos seus contemporâneos.
Não reconhece mais autoridades que a Sagrada Escritura, a Igreja e os
doutores aprovados por ela [citando] raras vezes a Santo Tomás, e com o
fim de rejeitar suas doutrinas”[18].
Pois bem, este princípio do permanecer na própria interioridade, de centrar a bússola no Eu, é um dos que Lutero receberá e projetará. Para o monge agostiniano, todo dado da inteligência será incerto (“a prostituta razão”, gostava de chamar à inteligência), tendo como única fonte de certeza a revelação bíblica lida segundo o espírito subjetivo de cada qual. Isto e não outra coisa será o motor do “livre examen” protestante. Nada de princípios exteriores, nada de dogmas, só uma experiência interior de “liberação espiritual” e uma percepção interior da realidade reduzida a sentimento pessoal: “O cristianismo não é mais que o exercício contínuo de sentir que não tens pecado ainda que peques”[19].
Sentimento a partir do Eu. É então, o primeiro princípio: a primazia do eu ou o princípio de imanência.
A salvação pela fé pessoal
A segunda tese do Protestantismo
que influirá em nossa cultura, é aquela que proporá a salvação a partir
de uma Fé separada de suas obras.
Dentre os inumeráveis escritos
do monge alemão, há um que, por sua brevidade e concisão nos dão uma
ideia de sua doutrina a respeito do intitulado “Da liberdade cristã”:
oferecendo ali uma síntese sobre sua doutrina acerca da justificação,
assinala o reformador que o homem não se encontra sujeito a preceito
algum, nem às obras externas, mas só à fé em Cristo, nosso Salvador. Em
sua concepção, o Filho de Deus, por haver sido ofendido, se entregou de
uma vez e para sempre em nosso lugar.
Seu raciocínio é simples: o pecado do homem é uma ofensa infinita contra Deus que não pode ser apagada de modo algum (nem sequer pelo sacramento do batismo). Por que propõe isto? Porque o “comprova” a partir de nossa inclinação permanente ao pecado, como “se experimenta” na concupiscência. É o desejo desordenado o que, longe do que assinala a Igreja, nos demonstra esse estado permanente de pecado em que nos encontramos imersos, fazendo-nos, per se, enfadonhos a Deus e incapazes de justificar-nos por nossas ações.
Que fazer então? Somente
lançar-nos nos braços de Cristo, quem já pagou por nós, de uma vez e
para sempre... Acaso não é isso o que ensinam as Escrituras? “O justo
vive da Fé”– diz São Paulo (Rm 1,17), ao que Lutero com o tempo agregará
“só” da Fé. É crendo ou, melhor, “confiando interiormente”, que o homem
poderá salvar-se, inclusive sendo mau.
O monge agostiniano, tratando
acerca do tema, não hesitará em escrever a seu discípulo Melanchton:
“Deus não salva aos pecadores fingidos. Sê pecador e peca fortemente, mas ainda com mais força alegra-te de Cristo…”[20].
Deus sempre nos justificará
apesar de nossas obras[21]. Nada de tentar salvar-se pelas obras, nada
de sacramentos, nada da ação santificadora da Igreja, nem do sacerdócio,
a confissão, etc.
A negação de liberdade do homem e a predestinação
Já vimos a imanência e a não
necessidade – e mais ainda a impossibilidade – das obras para salvar-se;
só basta a Fé; há entretanto uma última tese protestante que não pode
deixar de nomear-se, e que se refere à perda da liberdade e à absoluta
predestinação do homem rumo ao céu ou ao inferno: “É terrível o decreto,
o confesso (dirá Calvino), mas ninguém poderá negar que Deus previu o
destino final do homem antes que o criasse (…). Sua natureza é má e
podre (…) não possuímos o arrependimento em nossas mãos”[22].
Nosso destino não está em nossas
mãos; ninguém pode agregar ou retirar nada à natureza humana,
absolutamente corrompida desde o princípio. O homem está predestinado
tanto ao céu como ao inferno independentemente do que faça; se trata de
um fatalismo teológico no qual não conta o livre arbítrio. Nada pode o
homem pensar, querer ou fazer que não tenha sido previamente determinado
por Deus desde toda a eternidade:
Chamamos predestinação –
assinala Lutero – ao eterno conselho de Deus, pelo que há decretado ou o
que há de fazer de cada homem. Porque Deus não os cria a todos nas
mesmas condições, mas ordena a uns para a vida eterna e a outros para a
eterna condenação (…). E segundo mostra claramente a Escritura,
afirmamos que o Senhor há determinado já em seu eterno imutável conselho
a quem salvar e a quem quer deixar na ruína[23].
Com estas palavras, afirma-se
uma heresia horrenda também sustentada por Lutero: “Deus é mau”. Em
efeito, se “não possuímos o arrependimento em nossas mãos” e a salvação é
possível só para alguns, então afirma-se que Deus cria algumas pessoas
predestinando-as ao inferno. Mas, se Deus predestina almas ao inferno,
então Deus é um tirano e, mais ainda, o pior deles, daí que, como a
moral divina se funda nas arbitrariedades divinas, é necessário
rejeitá-la como propunha o nominalismo: já não há mais princípios; só
sujeitos que propõem uma moral situacional.
Não importa o que o homem faça; não importa o que o homem pense; a vida, no dizer de Macbeth, será “um conto contado por um idiota, cheio de ruído e de fúria, que não tem nenhum sentido”.
Até aqui, algumas das teses protestantes. Tentemos agora ver como puderam ter influenciado na cultura atual.
A influência do Protestantismo na cultura atual
O padre Julio Meinvielle em sua obra
já clássica intitulada “O comunismo na revolução anticristã”[24],
assinala com precisão que, no homem coexistem quatro formalidades, isto
é, quatro constitutivos. O homem é, antes de tudo, um aliquid, ou seja,
um algo, uma coisa; mas ao mesmo tempo, o homem é também animal, quer
dizer, é um ser sensível, que segue o bem deleitável. Mas não só isso: o
homem é também homem, ou seja, é um ser racional que se guia pelo bem
honesto e pode alcançar e apreender a verdade; mas acima destas três
formalidades, o homem também é capaz de Deus, está chamado à vida em
comunhão com Ele, que é a vida sobrenatural.
Esquematizando então, poderia se dizer que quatro são as formalidades:
a. A formalidade sobrenatural ou divina.
b. A formalidade humana ou racional.
c. A formalidade animal ou sensitiva.
d. A formalidade da mera realidade ou da mera coisa.
Seguindo este mesmo esquema
tentaremos ver como as teses protestantes que temos selecionado têm
podido influir em nossos hábitos culturais. Mas antes uma objeção:
poderia se dizer que o Protestantismo como tal, isto é, como religião,
parece estar extinto em sua raiz mais acabada; e no entanto, a forma
mentis, os hábitos que ela engendrou, inclusive em ambientes católicos,
esteja muito viva. Porque uma heresia pode morrer como confissão
religiosa mas suas consequências culturais podem perdurar no tempo.
Mas vejamos as revoluções possíveis.
a. Em primeiro lugar, a revolução do eu contra Deus: relativismo subjetivista
Como podemos ver, o princípio de
imanência ou o “advento do Eu” não só tem sido o princípio, mas a causa
do resto das teses protestantes. Esse giro rumo à subjetividade e rumo à
interioridade se disparará poucos anos depois da “Reforma” tanto em sua
vertente racionalista, fideísta como empirista. Se trata, nas
memoráveis palavras de Fabro, de um “subjetivismo dogmático” pelo qual
“o Protestantismo terminará inevitavelmente no anarquismo”[25] a partir
do qual “o ato de fé que termina por tragar ou sufocar o elemento
dogmático”[26].
Já o denunciava em palavras
também memoráveis Pio XII: “Nestes últimos séculos... quiseram a
natureza sem a graça… Cristo sim e a Igreja não (Revolução humanista e
protestante)... depois Deus sim e Cristo não (Revolução liberal)... ao
fim, o grito ímpio: Deus está morto (Revolução comunista)”[27].
Esse culto pelo EU, fará do
homem um Deus-para-si que, longe de regressar a sua formalidade
“natural”, ou “racional” o desbarrancará a um lodaçal sem limites. Quer
dizer, o culto pessoal, não o levará novamente a um âmbito “natural” mas
a um afastamento deste. Mas, por quê? –poderíamos nos perguntar
licitamente- não torna o homem, abandonando a graça, à ordem natural
existente prévia ao cristianismo, por exemplo? por que não torna à
sabedoria dos gregos ou à ordem romana?
A razão parece encontrar-se na
mesma ideia de redenção. Em efeito, quando Deus quis irromper
agressivamente na história, chegada a plenitudo temporum (Gal 4,4) a
inteligência humana foi elevada pela graça tornando o homem “mais homem”
(se se nos permite a expressão). Agora, ao retroceder à própria
interioridade subjetiva, o homem volta a ser uma espécie de Prometeu
desacorrentado não ao manejo de suas paixões, senão à desordem das
mesmas.
Chesterton o retratou com estas inesquecíveis palavras:
“É impossível adorar à humanidade, do mesmo modo como é impossível adorar (…) (um) clube; ambas são instituições extraordinárias às quais podemos eventualmente pertencer. (…). Suprimindo o sobrenatural, o que nos restará é o antinatural.”[28]
A que se refere o escritor inglês ao
dizer, “nos restará o antinatural”? A que, abdicando da primazia de
Deus, não se volta ao homem, mas se cai ainda mais.
Vejamos em palavras de Lutero
como, voltando-se a si mesmo, despreciava a realidade anterior a ele,
como querendo inventar a roda:
“Lutero o quer, Lutero assim o diz. Lutero é um doutor acima de todos os doutores de todo o papismo (…)[29]. “Ainda que os santos Cipriano, Ambrósio e Agostinho; ainda que São Pedro, São Paulo e São João; ainda que os anjos do céu te ensinem outra coisa, isto é o que sei de correto: que não ensino coisas humanas, senão divinas; ou seja, que tudo o atribuo a Deus, aos homens nada (…). Os Santos Padres, os doutores, os concílios, a mesma Virgem Maria e São José e todos os santos juntos podem equivocar-se (ele não, claro)”[30]
A primazia do EU pessoal fará que a
mesma concepção de verdade se veja afetada. Já não será, por certo, a
conformidade do intelecto à coisa, mas simplesmente um produto da
vontade:
“O que mais chama a atenção na fisionomia de Lutero, é o egocentrismo: algo muito mais sutil, mais profundo e mais grave que o egoísmo; o egoísmo metafísico. O eu de Lutero se converte praticamente no centro de gravidade de todas as coisas (…). “Não admito, escrevia em junho de 1522, que minha doutrina possa ser julgada por ninguém, nem sequer pelos anjos. Quem não receber a minha doutrina não pode chegar a salvar-se” (…). O eu de Lutero, era segundo ele, o centro em torno ao qual devia gravitar a humanidade inteira; se converteu a si mesmo no homem universal em quem todos deviam encontrar seu modelo. Resumindo, se colocou em lugar de Jesus Cristo.”[31]
Ao que arremata:
“Mas o caso de Lutero – pergunta-se Maritain – não nos mostra na realidade um dos problemas contra os quais se debate em vão o homem moderno? Me refiro ao problema do individualismo e da personalidade[32] (…). Chegamos aqui ao fundo do erro imanentista. Consiste este em crer que a liberdade, a interioridade, o espírito, residem essencialmente em uma oposição ao não-Eu, em uma ruptura do adentro com o afora: verdade e vida serão, pois, unicamente buscadas no interior do sujeito humano; tudo o que provém em nós do que não é nós, ou seja, o que provém de outro, é um atentado contra o espírito e contra a sinceridade. E tudo o que é extrínseco a nós, significa a destruição e a morte de nosso interior (…). Por conseguinte, para o individualismo protestante moderno, a Igreja e os sacramentos nos separam de Deus; para o subjetivismo filosófico moderno a sensação e a ideia nos separam do real”.[33]
Fazendo do homem o centro da
realidade e, melhor dito, a única “realidade real”, é absolutamente
necessária a caída na isolada interioridade. Para a cultura moderna, só
existe o eu, e é ele quem possui os critérios de bem e de verdade. A
norma da verdade já não é o objeto sobre o qual se emite um juízo, senão
a psicologia do sujeito, ou o que se afirma no ambiente, as condições
culturais de uma sociedade, etc. Toda verdade é relativa, pois só é
válida em relação com o sujeito que a pensa: o bem, a ética, a religião,
etc., só valem o que o homem ou o grupo de homens queira pagar por
elas, segundo seus diversos condicionamentos; “nesta perspectiva, tudo
se reduz a opinião”, como disse João Paulo II.
Lewis, em uma pérola literária
intitulada “O veneno do subjetivismo” assinala que na modernidade o
homem “não crê que os juízos de valor sejam sequer realmente juízos. São
sentimentos, ou complexos, ou atitudes, produzidas em uma comunidade
pela pressão de seu ambiente e de suas tradições, e diferem de uma
comunidade a outra. Dizer que uma coisa é boa é simplesmente expressar
nosso sentimento rumo a ela”.
O mesmo conceito de “afirmação”
por si só, de “definição” pode ser para o homem atual considerado
obtuso; o sim, sim; não, não evangélico resulta para a cultura moderna
como fascista e intolerante. “Tudo é negociável”, afirma Rojas, pois não
existe mais “a verdade”, mas “minha verdade”, “tua verdade”, segundo as
próprias preferências; “uma verdade à la carte”. Se trata de um novo
código ético onde tudo pode ser, alternativamente, positivo ou negativo,
tornando impossível todo diálogo por não existir um ponto de encontro
com a coisa.
b. Segunda caída: revolução da sensibilidade contra a inteligência
A segunda revolução se dará, segundo o
esquema traçado, da formalidade sensível à racional. Lutero –já o
dissemos– desconfiava do papel da inteligência para além do âmbito
prático. Nada de contemplação, nada de vida segundo as potências
superiores. As frases ilustrativas são inumeráveis; vejamos algumas
delas:
“A razão se opõe diretamente à Fé, e deveriam deixá-la que se vá; nos crentes há que matá-la e enterrá-la (…). Deves abandonar tua razão, não saber nada dela, aniquilá-la completamente; sem isso não entrarás nunca no céu (…). Há que deixar a razão em sua casa, pois é a inimiga nata da Fé. Nada há tão contrário à Fé, como a lei e a razão. Precisamos vencê-las, se queremos alcançar a bem-aventurança.[37]
(A razão) quando trata de imiscuir-se nas coisas espirituais, é cegueira e trevas (…) só pode blasfemar e desonrar tudo o que Deus tem dito e feito (…) a razão é a prostituta do diabo, por sua essência e maneira de ser, é uma prostituta daninha (…) que deveria ser pisoteada e destruída.”[38]
Um detalhe a ressaltar é o curioso
fato de que Lutero chame prostituta à razão e que logo, a Revolução
Francesa, filha da luterana, a entronize exaltando-a a seguir na
catedral de Notre Dame de Paris. É que, como dizia Frei mais acima,
apenas se trata de acentuar um e outro princípio (a fé ou a razão) desde
a mesma subjetividade.
De Aristóteles, talvez o maior pensador da Antiguidade e “maestro di color che sanno” se dizia:
“Aristóteles é o ímpio baluarte dos papistas. É à teologia o que as trevas são à luz. Sua ética é inimiga da graça; é um filósofo arcaico, um canalha que deveriam meter no chiqueiro ou na pocilga dos asnos… um caluniador sem vergonha, um comediante, o mais artimanhoso e astuto corruptor dos espíritos. Se não tivesse realmente existido em carne e em osso, se poderia tê-lo, sem nenhum escrúpulo, pelo diabo em pessoa (…). É impossível reformar a Igreja se antes a teologia e a filosofia escolástica não são arrancadas pela raiz.”[39]
Se a razão não serve, só resta a
sensibilidade. É o homem de pernas para o ar de que falava o padre
Alberto Ezcurra seguindo a Ovidio:
“Quando Deus cria ao homem o cria vertical (…). Essa criação do corpo do homem vertical é um signo do que tem que ser o homem por dentro, em sua alma (…). Deus o criou com a cabeça acima do coração, com o coração acima do estômago, do sexo e dos pés. E essa hierarquia do homem vertical nos está indicando também o que o homem tem que ser por dentro:
Acima de tudo está a cabeça; quer dizer, a inteligência que me faz conhecer a realidade e conhecer a verdade. E essa verdade que a inteligência conhece se mostra ao coração, isto é, à vontade; para que a vontade ame o que é verdadeiro e o que é bom. E depois vêm também as paixões, os sentimentos e os instintos que, iluminados pela inteligência e governados pela vontade, servem para que o homem seja capaz de entusiasmar-se por tudo o que é verdadeiro e por tudo o que é bom.
Essa é a imagem do homem como Deus o criou: inteligência que conhece a verdade, se a mostra à vontade como algo bom sendo as paixões e os sentimentos governados pela vontade e dominados pela inteligência. Agora bem, o homem moderno é um homem posto “de pernas para o ar”. Ao homem vertical que Deus criou se lhe opõe um homem invertido. O que está acima? Acima de tudo estão as paixões, estão os instintos, estão os sentimentos. Pelo que se guia o homem? “Eu gosto”, “eu não gosto”; “tenho desejos”, “não tenho desejos”; “que lindo!”, “que feio!”. Nos guiamos pelos instintos. E depois vem a vontade. A vontade para satisfazer todos os caprichos dos instintos; e ao final, bem abaixo de tudo, vem a pobre inteligência. Para quê? Para justificar-me e dizer que tudo o que eu gosto está bem.”[40]
Ao ter abdicado da inteligência, o que
resta é que esta sirva de serva das paixões, ficando o homem
impossibilitado do livre arbítrio nas mãos de um Deus predestinador. Max
Weber explicou com maestria como esta concepção determinista do
protestantismo levará necessariamente ao capitalismo moderno: se Deus
dispôs desde toda a eternidade que algumas pessoas se salvem e outras se
condenem, independentemente do que façam, não poderá se descobrir desde
agora qual é sua vontade? Ou seja, como saber se alguém se encontra no
estado de condenação ou de salvação eterna? Pois bem: dado que Deus não
muda, não cambia, deve existir algum indício que nos indique quais são
os signos da predileção divina em seus elegidos. Quais serão? Simples: a
prosperidade econômica; o triunfo nesta vida: a prosperidade, assim
como se ensinava no Antigo Testamento:
“Fui jovem, já sou velho / nunca vi a um justo abandonado, nem a sua linhagem mendigando o pão. / Diariamente se compadece e dá emprestado; bendita será a sua descendência (…). Os justos possuirão a terra, a habitarão pelos séculos dos séculos.”[41]
Calvino, o grande teórico do
protestantismo (e seu verdadeiro criador, segundo Belloc), instaurará
este princípio: os homens devem tentar enriquecer-se e, se o fazem, é
porque foram eleitos por Deus; do contrário, é signo de que estão
condenados para toda a eternidade[42].
Mas ainda resta uma caída; a caída na formalidade “coisa”.
c. Terceira caída: a pessoa como objeto
As raízes filosóficas e
teológicas do Protestantismo, com seu voluntarismo irracional, levarão a
que o homem seja considerado simplesmente um objeto, uma coisa que,
como tal, não dependa mais que do arbítrio de outro mais poderoso que
ditem as leis.
A ordem da lei eterna, lei
divina, lei natural e lei positiva tem sido alterado ou negado,
admitindo somente a última como válida e fraturando a objetividade do
Direito não restando mais que a vontade do legislador, daí que um
filósofo do direito como Kelsen termine por aceitar que não exista mais
lei que a positiva, inclusive quando não fossem de seu agrado, como as
do regime nazi.
Com peculiar estilo o expressa Lewis:
“Qualquer um se indignaria ao ouvir um alemão [nazi] dizer que justiça era “o que convinha aos interesses do terceiro Reich”. Mas nem sempre se recorda que essa indignação careceria totalmente de fundamento se um mesmo considerasse a moralidade como um sentimento subjetivo que pode ser alterado à vontade. A menos que se tenha algum padrão objetivo do bem, que abarque igualmente aos alemães, aos japoneses, e à nós mesmos —o obedeça ou não qualquer de nós—, por suposto que esses alemães estarão tão autorizados para criar sua ideologia como o estamos nós para criar a nossa.”[43]
Se a única regra do bem agir é a
vontade política, longe da razão e dominada por caprichos positivos, o
que hoje possa ser bom ou verdadeiro, amanhã poderá ser mau e falso e a
política, no melhor dos casos, ficará governada por princípios
ideológicos sujeitos ao governante de turno. Por outra parte, o súdito,
não alcançará seu próprio bem, senão em vistas do Estado, do qual será
uma parte quase acidental do todo e em lugar de ordenação do bem próprio
ao bem comum haverá subordinação -ontológica- da parte ao todo, assim
como a mão se subordina ao corpo e o ramo à árvore. O indivíduo “será”
para o Estado porque só nele encontrará sua essência, liberdade e
verdade (como indivíduo)[44], como um momento que encontra sua
concreção. A pessoa em quanto tal ficará convertida a objeto, e ela
mesma por sua vez, a simples referência a objetos (de prazer, de estudo
etc).
Da formalidade sobrenatural, então à mera formalidade de coisa.
Conclusão
Dizia Belloc na introdução que dedicou a Chesterton em “Assim ocorreu a Reforma”:
“(A reforma) não foi o incêndio intencional de um nobre edifício; menos ainda a meritória demolição de um ignóbil. Se pareceu mais a um grande fogo destruidor aceso por homens que habitavam uma casa e que, empenhados em um experimento violento que requeria uso de chamas, se achavam demasiado excitados para perceber o risco que corriam. O experimento se realizou mal, e a metade das habitações da casa restaram queimadas até seus cimentos, e as demais se salvaram, mas chamuscadas e enegrecidas.”[45]
Isso foi o protestantismo: uma heresia
que, como confissão religiosa se encontra em clara extinção (inclusive
mais que a católica), mas que engendrou uma cultura que hoje subsiste em
muitos aspectos.
Nos coube habitar essa “metade
das habitações” das que falava Belloc; habitações chamuscadas,
enegrecidas e até abandonadas por seus proprietários; mas habitações de
uma casa fundada sobre Rocha, que deve ser reconstruída e restaurada
desde a verdadeira religião que engendrará uma verdadeira cultura
cristã.
Como reformar nossa cultura ante
este barbarismo? Como não dobrar-nos a ela? Há apenas umas semanas lhe
perguntaram o mesmo ao cardeal Cafarra, ao que respondeu –e nós com ele,
para terminar- o que cremos ser o início da solução:
“Direi com toda a franqueza: eu não vejo nenhum outro lugar fora da família, onde a fé que há que crer e viver possa ser suficientemente transmitida. Por outra parte, na Europa durante o colapso do Império Romano e durante as invasões bárbaras posteriores, o que fizeram os monastérios beneditinos naquele momento, do mesmo modo pode ser feito agora pelas famílias dos que creem, no reinado atual de uma nova barbárie espiritual (que é uma) barbárie antropológica.”[46]
Pe. Javier Olivera Ravasi
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