PEREGRINANDO COM VISÃO DE ETERNIDADE
A vida do homem neste mundo é passageira.
Experimentamos que este caminhar tem um limiar indubitável: a morte. Todavia, pela fé compreendemos que este trânsito marca o começo do destino definitivo: o encontro pleno com a Santíssima Trindade. Por isso a Carta aos Hebreus nos diz que «não temos aqui cidade permanente, mas estamos à procura da cidade que está para vir»1.
Quando o homem faz silêncio em seu interior percebe a nostalgia de infinito que leva gravada no mais profundo do coração, a qual aponta sempre como uma bússola para o norte de sua existência.
Precisamente a visão de eternidade é aquele olhar espiritual que nos leva a transcender a imagem deste mundo que passa e a fixar-nos no essencial; a descobrir a mediação das realidades cotidianas e seu verdadeiro sentido – que não se esgota em sua dinâmica imanente, puramente temporal –, a divisar como a natureza, o verdadeiro, o bom, o belo nos lançam ao encontro pessoal com Deus Amor.
A visão de eternidade está fundamentada firmemente na fé, é alentada pela esperança e nutrida constantemente pelo fogo da caridade derramada em nós pelo Espírito Santo2. É uma magnífica conselheira que nos faz crescer na paz interior e na prudência, evitando toda a afobação, indolência, triunfalismo ou pessimismo. É expressão da fé na mente e nos permite aproximar-nos da realidade para vê-la adequadamente sob sua luz. Por este motivo o olhar para a imortalidade pode ser chamado de “binóculo”, que permite ver bem longe, ou “colírio” que purifica os olhos. É também fonte de energia e de atividade, de esforço magnânimo e longânime por um ideal nobre, segundo a oração do Apóstolo: «... esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está diante, prossigo para o alvo, para o prêmio da vocação do alto, que vem de Deus em Cristo Jesus»3. Vem à nossa memória aquele lema em que tanto insiste nosso Fundador: “A medida da grandeza de tua vida é a medida da causa à qual serves”.
Embora devamos ter a visão de eternidade em todo instante, existem algumas circunstâncias especiais que a exigem com urgência singular. Ante as dificuldades da vida cotidiana, as incompreensões, o cansaço natural, as enfermidades e o sofrimento, os fracassos no trabalho ou no apostolado, a ruptura da solidariedade que se busca construir, a rotina em muitas responsabilidades, os trabalhos que às vezes parecem intermináveis, devemos considerar a glória escondida silenciosamente no reto obrar, fadigoso e alentador, repetindo-nos constantemente: “Por Quem fazemos tudo isto? Por ti, Senhor! Para que teu Plano se realize!”. Como nos diz São Paulo, «Pois nossas tribulações momentâneas são leves em relação ao peso eterno da glória que elas nos preparam até o excesso. Não olhamos para as coisas que se vêem, mas para as que não se vêem; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno »4.
Chegados a este ponto podemos concluir: Necessitamos ter visão de eternidade! Mas, como ou de quem aprender a vivê-la?
O Senhor Jesus e a visão de eternidade
O Senhor Jesus sempre teve uma visão de eternidade que moldava toda a sua vida cotidiana. Percebemos isso contemplando com profundidade algumas passagens dos Santos Evangelhos: o chamado aos Apóstolos5, o discurso do Pão de vida6, das bem-aventuranças7, seu encontro com a Samaritana8 e com Nicodemos9, a ressurreição de Lázaro10, a Transfiguração11, o anúncio de sua Paixão12, de sua Ressurreição13, da vinda do Espírito Santo14 e a aparição aos discípulos de Emaús15.
Também na sua oração o Senhor Jesus rezava contemplando o eterno: «... e erguendo os olhos ao céu, disse: “Pai, chegou a hora; glorifica teu Filho, para que teu Filho te glorifique”»16.
É necessário estudar e rezar cada uma destas passagens com uma perspectiva especial: com visão de eternidade, que é justamente participação e reflexo da visão de Deus. Como nos recomenda nosso Fundador, «contemplemos cada episódio [do Evangelho] sob a ótica de Jesus, com os olhos de Jesus»17.
Santa Maria e a visão de eternidade
A Mãe do Senhor, conformada plenamente com seu Filho, também participava de sua visão de eternidade, confiando firmemente nas promessas divinas. Podemos descobrir isso em diversas passagens da Sagrada Escritura: na Anunciação-Encarnação vêmo-la perguntando confiante ao Anjo do Senhor, ante o que estava por vir: «Como é que vai ser isto, se eu não conheço homem algum?»18 e respondendo «Faça-se»19 agora e para sempre; na Visitação vêmo-la saudando gozosa e com olhar expectante sua prima Isabel: «Doravante as gerações todas me chamarão de bem aventurada, pois o Todo-poderoso fez grandes coisas a meu favor»20; em Caná, diante das dificuldades das bodas pela falta de vinho, confia solícita em que seu Filho solucionará o aperto, e diz aos serventes: «Fazei tudo o que ele vos disser»21; em meio à dor pela morte de seu Filho na cruz vemo-la de pé e vislumbrando a ressurreição à luz da fé, confiante na promessa de Jesus: «Depois de três dias ressuscitarei»22.
Nosso Fundador nos diz em Maria desde Puebla: «...a humilde donzela de Nazaré simboliza a opção fundamental pela realidade concreta do ser humano, onde as medidas usuais como o poder, o ter, o possuir-prazer, próprias de toda cultura de morte, ficam fora de questão. Na visão de eternidade que Ela expressa em sua vida e em seus atos, o interior aparece como essencial, mostrando que Deus “exalta os humildes” e, se é o caso, “derruba os poderosos de seus tronos”»23.
Meios concretos
A consciência de que somos peregrinos e que nosso destino é eterno deve acompanhar nossa vida em todo momento. A memória contínua da “irmã morte” nos faz valorizar mais nosso peregrinar neste mundo. A Sagrada Escritura nos diz que se tivéssemos a morte sempre diante de nossos olhos, não pecaríamos e faríamos o bem em todo momento: «Em tudo o que fazes, lembra-te de teu fim e jamais pecarás»24. Isto, longe de fazer-nos prescindir de nossa vida no aqui e agora, pelo contrário nos leva a ter muito seriamente nossas responsabilidades pessoais e sociais.
Contemplar fixamente o horizonte, especialmente o mar ou o céu com todas as suas estrelas. Relacioná-lo com nossa limitação e pequenez... mas também com a semente de eternidade que levamos no coração e que nos faz seres especialmente abençoados pelo amor de Deus.
Quando visitamos o Senhor Jesus Sacramentado, devemos considerar que não somente vamos para vê-lO, mas também para que Ele nos veja: contemplamo-lO e Ele nos contempla. Devemos enriquecer a perspectiva à que estamos acostumados e ver-nos como Ele nos vê, com seus olhos. Por isso a visão de eternidade é, enquanto participação do olhar de Deus, uma visão ao futuro e uma visão a partir do futuro. Como nos diz o Salmo: «Com tua luz nós vemos a luz»25.
Comungar com freqüência o “Pão de vida eterna”, alimento do peregrino, da mesma maneira acudir com freqüência ao sacramento da reconciliação, por meio do qual Deus nos perdoa e por sua vez nos prepara para o juízo final, fazendo com que demos peso de eternidade a nossas obras.
Ler as vidas dos santos e dos mártires: considerar particularmente como a visão de sua ressurreição futura, sua experiência antecipada da vida eterna em Cristo ressuscitado, os levava a assumir com valor e perfeição a dor, porque os sofrimentos de sua vida presente não eram nada em comparação à gloria que haveria de manifestar-se neles26. Como diz belamente Santo Atanásio: «... eles, pelo mérito de suas obras, alcançaram a liberdade, e agora celebram no céu a festa eterna, se alegram de sua antiga peregrinação, realizada em meio de trevas, e já contemplam a verdade que antes somente haviam vislumbrado»27. Para a maioria de nós não será um martírio cruento, mas uma entrega radical por amor , cotidiana, que deve ser assumida com disposições semelhantes.
A cruz é o símbolo mais eloqüente da visão de eternidade porque nela está latente a ressurreição.
Por isso devemos fixar o olhar constantemente no crucifixo, no Filho eterno de Deus morto por amor aos homens: «Deus amou tanto ao mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna»28. Unidos a Ele na cruz escutemos como o “bom ladrão”: «Eu te digo, hoje estarás comigo no Paraíso»29.
Acolhamos as palavras do saudodo beato Santo Padre João Paulo II que nos exorta a “lançar as redes” e “remar mar adentro” interiormente e na missão apostólica: «Agora, devemos olhar para a frente, temos que “fazer-nos ao largo”, confiados na palavra de Cristo: Duc in altum!»30.
CITAÇÕES PARA A ORAÇÃO
- Deus, em Cristo Jesus, promete a vida eterna aos que crêem nEle: Jo 3,16; 1Cor 2,9; 1Pe 1,3-5; 1Jo 2,25.
- Quem alcança a vida eterna?: Mt 16,25-26; Lc 9,25; Jo 12,25-26; Eclo 16,12-14.
- Nossas obras na vida presente têm peso de eternidade: Lc 20,34-36; Rm 2,6-10; Mt 25,46.
- A visão de eternidade nos leva a valorizar em sua justa medida as coisas passageiras, a não apegar-nos ao passageiro e a apostar no que não passa: Cl 3,1-4; 1Jo 2,15-17.
- A visão de eternidade nos leva a considerar com realismo a fugacidade da vida presente, e assim saber andar por ela com tino e sabedoria: Sl 38,5-7; 88,48-49; 89,5-6.9-10.12; 102,15-17; 144,3-4; Eclo 10,9-11, 14,17-19; 17,1-2; 18,8-10; Jó 7,1.6-7.
- A memória da morte é boa conselheira: Eclo 7,36; 8,7; 14,12; 14,17.
- A visão de eternidade nos ajuda a superar com paciência os sofrimentos da vida presente: Rm 8,18; 1Pe 1,6-9; Hb 11,25-26.
- A visão de eternidade leva a ansiar vivamente a vida eterna: Sl 72, 23-26.
- A visão de eternidade nos anima a despojar-nos de todo o lastro de pecado, a privar-nos de todo apego vão, para lançar-nos a conquistar o “prêmio” prometido, a vida eterna: Hb 12,1-3; Fl 3,13-14; 1Cor 9,24-25.
- A visão de eternidade é alentada pela esperança: Rm 8,24-25
Notas
- 1 Hb 13,14.
- 2 Ver Rm 5,5.
- 3 Fl 3,13-14.
- 4 2Cor 4,17-18.
- 5 Ver Jo 1,35-51.
- 6 Ver Jo 6.
- 7 Ver Mt 5,1-12.
- 8 Ver Jo 4,1-42.
- 9 Ver Jo 3,1-21.
- 10 Ver Jo 11,1-43.
- 11 Ver Mt 17,1-13.
- 12 Ver Jo 12,20-36.
- 13 Ver Mc 8,31.
- 14 Ver Jo 14,13-17.
- 15 Ver Lc 24,13-35.
- 16 Jo 17,1.
- 17 Luis Fernando Figari, Em Companhia de Maria, Loyola, São Paulo 1989, p. 19.
- 18 Lc 1,34.
- 19 Lc 1,38.
- 20 Lc 1,48b-49a.
- 21 Jo 2,5.
- 22 Mt 27,63.
- 23 Luis Fernando Figari, Maria desde Puebla, FE, Lima 1992, pp. 46-47.
- 24 Eclo 7,36.
- 25 Sl 36,10.
- 26 Ver Rm 8,18.
- 27 Das Cartas pascais de Santo Atanásio, Carta 14, 1-2: PG 26, 1419.
- 28 Jo 3,16.
- 29 Lc 23,43.
- 30 S.S. João Paulo II, Novo millennio ineunte, 15.
A†Ω
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