quarta-feira, 25 de abril de 2012

OS MÁRTIRES DA IGREJA II - 2ª PARTE

3.11. Martírio de Santo Êuplio Diácono, sob Diocleciano, no ano 304
O martírio de Êuplio, diácono de Catânia, aconteceu em 304, como pode ser deduzido da indicação do consulado de Diocleciano e Maximiano, e do fato que o cristão é convidado a sacrificar aos deuses, conforme a ordem do IV edito imperial, emanado naquele ano.

Certamente ainda estava em vigor o edito contra a conservação dos livros sagrados, porque o ponto principal da acusação contra Êuplio refere-se ao evangelho, que o diácono tinha conservado e mostrava com orgulho.
Os Atos que nos chegaram, num breve texto latino, une a ata da prisão e da primeira confissão de Êuplio à do interrogatório pelo qual passou em meio às torturas.

Uma frase do capítulo I: “…estando fora da tenda do escritório do governador, o diácono Êuplio gritou: “Sou cristão e desejo morrer pelo nome de Cristo”", leva a crer que ele não tivesse sido preso, mas que se tivesse denunciado espontaneamente, talvez durante o interrogatório de outros fiéis; a hipótese é confirmada também pelas palavras do juiz que o entrega aos esbirros: “Como é evidente a tua confissão…” (c. I) e parece levado a proceder pela atitude do cristão, mais do que por uma vontade pessoal inquiridora.
Durante o nono consulado de Diocleciano e o oitavo de Maximiano, na vigília dos idos de agosto, na cidade de Catânia, estando fora da tenda do escritório do governador, o diácono Êuplio gritou: “Sou cristão e desejo morrer pelo nome de Cristo”.

Ouvindo isso, o procurador Calvisiano disse: “Que entre a pessoa que gritou”.
Tão logo Êuplio entrou no escritório do juiz, tendo os evangelhos nas mãos, um dos amigos de Calvisiano, que se chamava Máximo, disse: “Não é lícito ter estes livros, contra a ordem imperial”.
Calvisiano perguntou a Êuplio: “De onde vêm estes livros? Saíram da tua casa?”.
Êuplio respondeu: “Não tenho casa. Sabe-o também o meu Senhor, Jesus Cristo”.
O procurador Calvisiano retomou: “Foste tu quem os trouxestes aqui?”.
Êuplio respondeu: “Eu os trouxe, como tu mesmo vês. Fui encontrado com eles”.
Calvisiano ordenou: “Lê-os”.

Abrindo o evangelho, Êuplio leu: “Bem-aventurados os que sofrem perseguições por causa da justiça, pois deles é o reino dos céus”, e, numa outra passagem: “Quem quiser vir após mim, tome a sua cruz e siga-me”.Enquanto lia esses e outros passos, Calvisiano perguntou: “O que é isso tudo?”.Êuplio respondeu: “É a lei do meu Senhor, que me foi confiada”.
Calvisiano insistiu: “
Por quem?”.
Êuplio respondeu: “Por Jesus Cristo, Filho do Deus vivo”.
Calvisiano interveio novamente dizendo: “Como é evidente a tua confissão, sejas entregue ao ministro da tortura e interrogado em meio a suplícios”.

Quando foi-lhes entregue, começou o segundo interrogatório, em meio às torturas.
Durante o nono consulado de Diocleciano e o oitavo de Maximiano, na vigília dos idos de agosto, o procurador Calvisiano disse a Êuplio, em meio aos tormentos: “O que repetes agora daquilo que declaraste na tua confissão?”. 
Traçando o sinal da cruz sobre si com a mão livre, o mártir respondeu: “Aquilo que disse antes, confirmo-o agora: sou cristão e leio as divinas Escrituras”.
Calvisiano rebateu: “Por que não entregaste estes livros, cuja leitura os imperadores vetaram, mas os mantiveste contigo?”.
Êuplio disse: “Porque sou cristão e não me era lícito entregá-los. É melhor, para um cristão, morrer do que entregá-los; neles está a vida eterna. Quem os entrega perde a vida eterna e, para não perde-la, eu ofereço a minha”.
Calvisiano interveio dizendo: “Seja torturado Êuplio que, infringindo o edito dos príncipes, não entregou as Escrituras, mas leu-as ao povo”. Êuplio disse, em meio aos tormentos: “Agradeço-te, ó Cristo. Protege-me porque sofro tudo isso por ti!”.
Calvisiano exortou-o com estas palavras: “Desiste dessa loucura, Êuplio. Adora os deuses e serás libertado”.
 
Êuplio respondeu: “Adoro a Cristo, detesto os demônios. Faz de mim o que quiseres, sou cristão. Desejei isto por muito tempo. Faz o que quiseres. Aumenta os meus tormentos. Sou cristão”.
A tortura já durava muito tempo quando Calvisiano ordenou aos carnífices que parassem e disse ao mártir: “Adora os deuses, infeliz! Venera Marte, Apolo e Esculápio!”.
Êuplio respondeu: “Adoro o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Adoro a Santíssima Trindade, fora da qual não existe outro Deus. Pereçam os deuses que não criaram o céu, a terra e tudo o que neles existe. Eu sou cristão”.
 
O prefeito Calvisiano insistiu: “Sacrifica, se queres ser libertado!”.
Êuplio respondeu: “Justamente agora sacrifico-me a Cristo Deus. Não existe nenhum outro sacrifício que eu deva fazer. Tentas em vão fazer-me renegar a fé. Eu sou cristão”.
Calvisiano ordenou que fosse torturado mais violentamente ainda; durante os tormentos, Êuplio disse: “Rendo-te graças, ó Cristo, socorre-me; Cristo, sofro isto por ti, Cristo!”.
 
Repetiu muitas vezes estas invocações e, quando faltaram-lhe as forças, já sem voz, dizia apenas com os lábios estas e outras orações.
Entrando no interior do seu escritório, Calvisiano ditou a sentença e, saindo, leu a ata que levara consigo: “Ordeno que Êuplio, cristão, que despreza os editos dos príncipes, blasfema contra os deuses e não se arrepende disso tudo, seja passado a fio de espada. Levai-o ao suplício”.
 
O evangelho com que fora encontrado no momento da prisão foi pendurado ao pescoço do mártir, e o pregoeiro ia dizendo: “Êuplio, cristão, inimigo dos deuses e dos soberanos”.
Alegre, Êuplio respondia sempre: “Graças a Cristo Deus!”.
Chegando ao lugar da execução, ajoelhou-se e orou longamente. Dando ainda graças ao Senhor, apresentou o pescoço e foi decapitado pelo carnífice.
O seu corpo foi depois recolhido pelos cristãos e embalsamado com perfumes, e sepultado”.
 
3.12. Os Quarenta Mártires de Sebástia (Armênia menor)
 
Temos, sobre estes mártires, alguns discursos dos capadócios Basílio e Gregório de Nissa e outros do sírio Efrém, todos de particular autoridade pela proximidade entre as regiões dos informantes e aquela onde aconteceu o martírio. A “Paixão” tem uma autoridade muito pequena, mas o “testamento” coletivo que redigiram, pouco antes de morrer, deve ser considerado autêntico. O martírio deu-se em 320, durante a perseguição de Licínio.
“Estavam alistados numa legião de guarda de fronteira: parece certo que fosse a XII legião, a Fulminada, que participara da conquista de Jerusalém no ano 70, e, em seguida, fora deslocada para o Oriente, com sede em Melitene, na Armênia Menor.
Existia uma espécie de tradição cristã no interior dessa Legião, porque ela tinha contado com cristãos em suas fileiras já no século III, e talvez antes; outras ligações com cristãos, através de amizades e parentela, deviam ter surgido durante a permanência na Armênia, onde eram muitos os cristãos.
 
O martírio aconteceu ao norte de Melitene, na cidade chamada Sebástia (mais exato do que Sebaste), onde talvez a legião mantivesse um grande destacamento. Os quarenta eram muito jovens, mais ou menos pelos vinte anos; em seu “testamento”, no qual enviam uma última saudação aos seus caros, só um saúda a mulher com o filhinho e apenas um, a noiva, enquanto os demais saúdam os pais vivos: deveriam estar ainda, em geral, na primeira juventude.

    Quando chegou ao acampamento a ordem de Licínio para que os soldados participassem dos sacrifícios idólatras, eles recusaram-se decididamente; foram presos uns aos outros por uma só corrente, muito longa, e, em seguida, fechados na prisão.
A prisão prolongou-se por muito tempo, provavelmente porque se esperavam ordens de comandantes superiores ou ainda – dada a gravidade do caso – do próprio Licínio. Os prisioneiros, à espera, prevendo o próprio fim, escreveram o seu “testamento” coletivo pela mão de um deles, um certo Melézio.

    Os destinados à morte exortam, no documento insigne, profundamente cristão, parentes e amigos a se despreocuparem dos bens caducos da terra para preferirem os bens ultra terrenos; cumprimentam em seguida as pessoas que lhes eram mais caras; enfim, prevendo que surgiram disputas entre os cristãos pela posse de seus corpos – como já acontecera no passado com as relíquias dos mártires – eles dispõem que seus restos sejam sepultados todos juntos na vila de Sarein, perto da cidade de Zela. O documento traz, como de costume, os nomes de todos os quarenta testadores, e de aqui os nomes foram recopiados em outros documentos, com pequenas divergências de grafia.
Chegada a sentença de condenação, os quarenta foram destinados à morte por assideração: deviam ser expostos nus durante a noite, no auge do inverno, sobre um reservatório gelado de água, e aí esperar o próprio fim. O lugar escolhido para a execução parece ter sido um amplo pátio diante das termas de Sebástia, onde os condenados seriam subtraídos à curiosidade e simpatia do público e, ao mesmo tempo, vigiados pelos funcionários das termas.

    Existia no pátio, um amplo reservatório d’água, uma espécie de charco, que estava em comunicação com as termas. Basílio disse que o lugar estava no centro da cidade, e que a cidade era próxima ao reservatório: talvez a reserva d’água a serviço das termas, não fosse senão uma derivação de um verdadeiro lago externo.
Mais tarde, foi construída uma igreja no lugar do martírio, e parece que justamente nessa igreja Gregório de Nissa tenha recitado os seus discursos em honra dos mártires.
Na camada gelada, numa temperatura baixíssima, os tormentos dos corpos nus deviam ser assustadores. Para aumentar os espasmos, fora deixada aberta a bela porta de ingresso às termas, por onde saiam, com a luz, os jatos de vapor do calidarium: tratava-se de uma poderosa visão para os que estavam sofrendo, porque bastariam poucos passos para sair dos tormentos e retomar aquela vida que saia aos poucos de seus corpos, minuto a minuto. Havia, porém, no meio, uma barreira insuperável: o Cristo invisível, que eles teriam que renegar.

    As horas passavam terrivelmente monótonas: nenhum dos condenados afastava-se da extensão gelada; o vigia das termas assistia à cena como que sonhando acordado. Num dado momento, um dos condenados, extremado pelos espasmos arrastou-se na direção da porta iluminada: aí, porém, por um normal fato fisiológico, morreu envolvido pelos vapores quentes. Àquela visão, o vigia, num ímpeto de entusiasmo, decidiu substituir o pusilânime, reintegrando o número dos quarenta: livrando-se das roupas, proclamou-se cristão e estendeu-se sobre o gelo entre os outros condenados.

    A manhã do dia seguinte iluminou uma extensão de cadáveres. Um só continuava vivo: era o mais jovem, um adolescente a quem algum documento dá o nome de Melitão. A tenacidade por viver assombrou sua mãe, cristã de fé admirável que esteve presente quando os cadáveres foram carregados sobre o carro para serem levados à cremação: ao ver seu filho deixado de lado porque ainda estava vivo, ela tomou-o entre os braços e levou-o por si mesma ao carro, para que a sua criatura não fosse defraudada do coro comum. Aqueles braços que alguns anos antes o tinham carregado como criança lactante, carregavam-no como agora atleta triunfante. Naquele amplexo materno, o adolescente expirou.
    O vigia convertido é chamado Agláios em alguns documentos. Comparações feitas, confrontando os vários testemunhos levaram a suspeitar que o pusilânime que abandonou o combate e morreu às portas das termas, fosse justamente Melézio, o escritor do “testamento”; mas isso é apenas conjectura.
A narração deixa lugar a dúvidas quanto a alguns particulares, mas em seu conjunto pode ser aceita com segurança.

A veneração dos Quarenta Mártires foi muito popular no oriente. Também no ocidente, no final do mesmo século, fala deles Gaudêncio de Bréscia, que era particularmente informado das coisas do oriente. Além disso, em Roma, cenas do martírios deles ainda são conservadas num afresco do século VII-VIII; o afresco está num oratório anexo à igreja de Santa Maria Antiga no Fórum Romano (de Giuseppe Ricciotti, L’Era dei Martiri, Coletti editore, Roma, 1953, pp. 268-70).
3.13. Crucificado também um ancião de 120 anos: martírio de São Simeão
 
O martírio de São Simeão, bispo de Jerusalém na Palestina, não se deve à aplicação das disposições do imperador Trajano (“rescrito” de Trajano a Plínio), mas à perseguição judaica. O historiador Hegesipo, testemunha bem informada das coisas da Palestina, informa-nos que, por volta de 117 d.C., o santo bispo foi acusado de pertencer à estirpe de Davi e ser cristão, para mal estar de judeus heréticos. Estes aproveitaram um momento crítico do império em luta contra os Partos, desfrutando o estado de espírito do imperador contrariado pelas veleidades das insurreições judaicas.
Segundo o testemunho de Eusébio, a perseguição causada sobretudo por tumultos populares atingiu Simeão, filho de Cléofas à idade de 120 anos. O parente do Senhor, como escreve Eusébio – “foi atormentado durante muitos dias com duríssimos tormentos, mas confessou sempre com firmeza a fé em Cristo; fê-lo com tal força que o próprio procônsul Ático e todos os presentes ficaram admirados ao ver como um velho de 120 anos pudesse resistir a tantos tormentos: por sentença do juiz, foi finalmente crucificado” (Eusébio, História eclesiástica, III, 3 2,1-6).
 
3.14.”Tenho prontas as feras…” – Martírio de São Policarpo
 
O martírio de São Policarpo é uma das mais antigas “paixões epistolares”. Discípulo do apóstolo João, Policarpo foi feito bispo de Esmirna, uma das mais importantes comunidades cristãs.
Em Esmirna (Turquia), no ano 155, a intolerância manifestou-se com o martírio do bispo Policarpo, provocado pela multidão enfurecida. O magistrado Herodes procedeu à prisão do bispo que, entretanto tinha deixado a cidade. Mandou-o levar ao estádio onde procurou convence-lo a renegar a fé:
- Pensa na tua idade e jura pelo gênio de César, convence-te uma vez por todas a gritar a morte dos ateus.
- Sim, morram os ateus!
- Jura e coloco-te em liberdade; amaldiçoa o Cristo.
- Fazem 86 anos que o sirvo, e ele nada fez de errado para comigo; como posso blasfemar contra o meu Rei e Salvador?
- Tenho prontas as feras; se não mudas de idéia lanço-te a elas.
- Chama-as! Nós cristãos não admitimos que se mude, passando do bem ao mal, mas acreditamos que é preciso converter-nos do pecado à justiça.
- Se não te importam as feras e se continuas a ter a mesma idéia fixa farei com que sejas consumido pelo fogo.

    - Ameaças-me com um fogo que queima por pouco e depois se apaga; vê-se que não conheces aquele do juízo futuro, da pena eterna reservada aos ímpios. Porque queres ser condescendente? Faz o que quiseres.
Dizia isso com coragem e serenidade, irradiando tal graça do seu rosto, que nem parecia que fosse ele o processado, mas sim o Procônsul. Quando a fogueira foi preparada, amarraram-no com as mãos às costas, como um carneiro de um grande rebanho escolhido para o sacrifício, holocausto aceito por Deus. Elevando os olhos, ele rezou:
- Eu te bendigo, Senhor Deus onipotente, porque me fizeste digno deste dia e desta hora, de ser enumerado entre os mártires, de compartilhar o cálice do teu Cristo, para ressuscitar à vida eterna da alma e do corpo na incorruptibilidade do Espírito Santo.
Concluída a oração, a fogueira foi acesa; as chamas, porém, dobrando-se em forma de abóbada, como se fosse uma vela inchada pelo vento, circundou o corpo do mártir como um muro. Estava no meio não como corpo que queima, mas como pão que se doura assando ou como ouro e prata que são refinados no cadinho; sentiu-se um perfume como de incenso ou outro aroma precioso. Afinal, um carnífice matou-o com a espada.
 
3.15. “Porque sorris?” – Martírio de Carpo, Papilo e Agatonice
 
Foram martirizados naquele tempo, na cidade de Pérgamo (Ásia Menor), o bispo Carpo, o diácono Papilo e a fiel Agatonice, mãe de família cheia do temor de Deus. Ao processo, Carpo declarou: “Sou cristão, não posso aderir às vossas práticas”
Disse o procônsul: “Sacrifica aos deuses, ou o que dizes?”
Carpo respondeu: “É impossível que eu sacrifique; realmente, jamais sacrifiquei aos ídolos”.
O procônsul, imediatamente, mandou suspende-lo num poste e esfolá-lo; o mártir gritou: “Sou cristão!”. Esfolado por muito tempo, ficou sem forças e não pode mais falar.
O procônsul, então, passou ao outro. Diante do convite a sacrificar, Papilo disse com orgulho: “Sempre servi a Deus, desde a juventude; jamais sacrifiquei aos ídolos porque sou cristão; nada existe para mim de maior e mais belo do que me oferecer como vítima ao Deus vivo e verdadeiro”.
Os tormentos ocupavam os carnífices por turno, mas ele não emitiu qualquer lamento: “Não sinto as torturas – disse -, não existem para mim porque há alguém que sofre em mim; tu não o podes ver”.
Enfim, tanto o bispo como o diácono foram condenados a queimar vivos. Os servos do mal despiram Papilo de suas roupas e crucificaram-no, depois elevaram o poste; a chama começou a subir, e o mártir rezando serenamente entregou a alma a Deus. Passaram depois a Carpio, e os presentes, vendo-o sorrir, perguntaram-lhe:
- Porque sorris?
- Vi a glória do Senhor e enchi-me de alegria. Bendito sejas tu, Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, porque fizeste de mim, pecador, digno da tua morte.
Havia entre os espectadores um mulher chamada Agatonice, que vendo Carpo em contemplação da glória do Senhor, compreendeu que era um chamado do céu e disse em voz alta:
- Este banquete está preparado também para mim; eu também devo participar dele; quero degustar esse alimento de glória.
Gritaram-lhe de todos os lados para que tivesse piedade do filho, mas a santa respondeu:
- Ele tem Deus que tomará conta dele.
Tirando o manto, chamou a atenção dos que a olhavam pela sua beleza e, alegre, estendeu-se sobre a fogueira. Os presentes não podiam segurar as lágrimas e diziam: “Terrível juízo e injustos decretos!”.
Agatonice, lambida pelas chamas, gritou três vezes:
- “Senhor, Senhor, Senhor, vem em meu auxílio; em ti eu me refugiei!”.
Em seguida, entregou a alma a Deus e consumou o martírio entre os santos. Os cristãos recolheram às escondidas os seus restos e conservaram-nos para a glória de Cristo e louvor dos mártires.
Foi também martirizado na Ásia naquele tempo, o bispo de Laodicéia, Sagaris. (Eusébio, História Eclesiástica, l. IV, 26,3.5).
 
3.16. “Gosto de viver” – Martírio de Apolônio, “santo e nobilíssimo apóstolo de Cristo”
 
Apolônio, senador romano, era conhecido entre os cristãos da Urbe pela elevada condição social e profunda cultura. Denunciado provavelmente por um escravo, o juiz convidou Apolônio a justificar-se diante do senado. Ele “apresentou – escreve Eusébio de Cesaréia – uma eloqüentíssima defesa da própria fé, mas foi igualmente condenado à morte.
O procônsul Perênio, em respeito à nobreza e fama de Apolônio, estava sinceramente desejoso de salvá-lo, mas foi obrigado a emitir a sentença de condenação devido ao decreto do imperador Cômodo (por volta do ano 185).

    Apresentamos algumas passagens do processo, no qual o mártir afirma o seu amor pela vida, recorda as normas dos Cristãos, recebidas do Senhor Jesus, e proclama a esperança de uma vida futura. Apolônio: Os decretos dos homens não podem suprimir o decreto de Deus; quantos mais crentes matareis, mais será multiplicado o seu número por obra de Deus. Não achamos difícil morrer pelo verdadeiro Deus, porque, por meio dele, somos o que somos; para não morrer de morte ruim, suportamos tudo com constância; vivos ou mortos, somos do Senhor.
Perênio: Com estas idéias, Apolônio, provas que gostas de morrer!
Apolônio: Eu gosto de viver, ma é só por amor à vida que não temo realmente a morte; não existe, sem dúvidas, nada mais precioso do que a vida, mas da vida eterna que é imortalidade da alma para quem viveu bem nesta vida terrena.
A palavra de Deus, o nosso Salvador Jesus Cristo, “ensinou-nos a deter a ira, a moderar o desejo, a mortificar a concupiscência, a superar as dores, a ser abertos e sociáveis, a aumentar a amizade, a destruir a vanglória, a não buscar a vingança contra os que nos fazem o mal, a desprezar a morte pela lei de Deus, a não trocar ofensa com ofensa, mas a suportá-la, a crer na lei que ele nos deu, a honrar o soberano, a venerar somente o Deus imortal, a crer na alma imortal, no juízo que virá depois da morte, a esperar no prêmio dos sacrifícios pela virtude, que o Senhor concederá após a ressurreição daqueles que viveram santamente.
 
Quando o juiz pronunciou a sentença de morte, Apolônio disse: “Dou graças ao meu Deus, procônsul Perênio, junto com todos os que reconhecem como Deus o seu onipotente e unigênito Filho Jesus Cristo e o Espírito Santo, também por esta tua sentença que é, para mim, fonte de salvação”.
Apolônio morreu decapitado em Roma no dia 21 de abril de 183. Eusébio comenta assim a morte de Apolônio: ”O mártir, muito amado por Deus, um santíssimo lutador de Cristo, foi ao encontro do martírio com alma pura e coração fervoroso. Seguindo o seu fúlgido exemplo, vivificamos a nossa alma com a fé”. Sabemos ainda do mesmo Eusébio que o acusador de Apolônio – como mais tarde o do futuro Papa Calisto – foi condenado a ter as pernas despedaçadas. De fato, segundo uma disposição imperial, trazida por Tertuliano (Ad Scap. IV, 3), atribuída a Marco Aurélio, os acusadores dos cristãos deviam ser condenados à morte. Os Atos do martírio de Apolônio, descobertos no século passado, existem também em versão armênia e grega, e em várias traduções modernas.
 
3.17. As pérolas da Igreja pisadas pelos porcos. Martírio de Piônio
 
Em Esmirna (Turquia), Piônio foi preso, com Sabina, Asclepíade, Macedônia e Lino, quando celebrava o aniversário de Policarpo. Estavam concluindo as orações e tinham acabado de tomar o pão consagrado, quando apresentou-se Polemone, guarda dos templos, com os esbirros encarregados de prender os cristãos e levá-los a sacrificar aos ídolos e comer as carnes imoladas.
- Conheceis sem dúvida – acusou-os Polemone – o decreto do imperador que vos ordena sacrificar aos deuses.
Piônio respondeu:
- Nós conhecemos o mandamento de Deus que nos ordena adorar somente a ele. Homens de Esmirna, que, orgulhosos da vossa cidade, vos gloriais de serem incluídos entre os concidadãos de Homero, rides dos Apóstolos, escarneceis dos que espontaneamente vão sacrificar ou não recusam de o fazer porque obrigados, mas deveríeis seguir o conselho de vosso Homero que diz ser uma coisa ímpia burlar de quem está para morrer. É doce viver, mas nós estamos em busca de uma vida melhor. É bela a luz, mas nós desejamos a verdadeira luz! Sei que a terra é bela, mas ela é obra de Deus. Nós não renunciamos a ela por desgosto ou desprezo, mas porque preferimos bens melhores.
 
Sabina sorria e, à pergunta de Polemone e de seu séquito, se estava contente, respondeu:
- Sim, somos cristãos por graça de Deus; aqueles que acreditam em Cristo estão certos de ir para a felicidade eterna.
E eles: – As mulheres que se recusam a sacrificar devem preparar-se para a casa de prostituição; isso não te desagrada?
- O Deus de santidade velará por mim – respondeu Sabina.
Aos que, depois de terem apostatado, foram vê-los na prisão, disse Piônio:
- Tenho uma tristeza que me destroça o coração, ao ver pisadas pelos porcos as pérolas da Igreja, caídas por terra as estrelas do céu, destruída pelo javali a vinha plantada pela mão direita do Senhor; a Satanás foi permitido abanar-nos como o trigo na peneira, e o Verbo de Deus tem nas mãos um tridente de fogo para limpar a eira; em sua misericórdia, está pronto a acolher-vos novamente.
Foi levada a lenha, e foram amontoados os feixes ao redor dos condenados; Piônio fechou os olhos, e a multidão pensou que tivesse morrido, mas ele rezava em silêncio; concluída a oração, reabriu os olhos, enquanto a chama subia. Com intensa alegria nos olhos, disse:
- Amém, Senhor, recebe a minha alma.
Um leve estertor, e depois expirou sem dor.
 
3.18. Mártires a não mais acabar Martiri a non finire
 
No mesmo ano 250, na Ásia Menor, foi martirizado Acácio, bispo de Antioquia da Psídia, que teria sido enganado pelo legado do imperador Décio:
- Vives sob a lei romana; amas, então, os nossos príncipes.
- Ninguém ama o imperador mais do que nós - respondeu Acácio – que dirigimos a Deus constantes orações pela sua longa vida de governo justo dos povos na paz; oramos também pela salvação dos saldados e pela prosperidade do império e do mundo, mas o imperador não pode exigir que nós sacrifiquemos.
Máximo, homem do povo, que exercia o pequeno comércio, preso e lavado diante do procônsul da Ásia, suportou as torturas em nome do Senhor, achando-as doces como bálsamo em relação às eternas:
- Se fosse infiel aos mandamentos do meu Senhor – dizia – se não seguisse o Evangelho, perderia a minha vida… não sinto nem as chicotadas nem as unhas de ferro nem o fogo, pois está em mim a graça de Cristo.
Em Nicomédia (ainda na Ásia Menor) entre 250 e 251 foram queimados vivos São Luciano, que, de antigo “perseguidor”, tornara-se “pregador”, e São Marciano, que já havia adorado deuses falsos e se tinha convertido ao culto do Deus verdadeiro.
 
3.19. Fez sobre si o Sinal da Cruz e entregou a alma a Deus. Martírio de Conão
 
Na Panfília (Ásia Menor) foi martirizado o velho Conão, “servo de Cristo, sem malícia, alma simples”.
O governador: Diz-me, grande homem, de onde és? Quem são os teus pais, e qual o teu nome?
Conão: Sou de Nazaré da Galiléia, mas não tenho parentela com o Cristo, que nós reconhecemos como Deus do universo e a quem servimos de pai para filho. O tirano: Se reconheces o Cristo, porque não reconhecer os nossos deuses?
Conão: Que descaramento blasfemar assim contra o Deus do universo!
O tirano, então, ordenou que o fizessem correr com os pés presos ao seu carro, enquanto era chicoteado por dois soldados; ele, porém, não opunha resistência, mas cantava as palavras do salmo:
- Coloquei toda a minha esperança no senhor, que se curva para mim e escuta a minha oração.
Perdidas as forças, caiu elevando os olhos ao Mestre, enquanto rezava:
- Senhor Jesus Cristo, recebe a minha alma…
Depois, fazendo sobre si o Sinal da Cruz, entregou a alma a Deus.
 
3.20. Martírio dos ascetas Xiamuna e Gurias
 
Diocleciano não perturbou a paz da Igreja nos primeiros 19 anos de governo; por instigação de Galério, enfim, decretou que o exército fosse depurado dos cristãos (ano 297), fossem destruídas e queimadas as igrejas e as Escrituras, fossem destituídos dos cargos públicos os nobres cristãos e privados da liberdade os cristãos plebeus (ano 303).
Houve mártires, porém, desde o ano 289. Os dois ascetasXiamuna e Gurias tiveram que responder em Edessa (Ásia Menor):
- Obedeceremos ao Rei dos reis que está nos céus e ao seu Cristo, e não faremos a vontade dos pecadores; nãomorreremos mas viveremos se fizermos a vontade daquele que nos criou; se obedecêssemos aos teus príncipes seríamos precipitados na morte… Poucos dias depois, em Antioquia, o governador Misiano de Urai transmitiu ordens precisas:
- Ordenam os nossos príncipes que deveis sacrificar aos deuses, queimar incenso, derramar vinho diante de Zeus; não vos oponhais à vontade deles porque não tereis força para resistir às torturas que vos esperam.
Como eles estavam irredutíveis, ordenou a Leôncio que os dependurassem pelos braços e os puxassem cruelmente, deixando-os ali das nove às duas da tarde. Era surpreendente a resistência deles. Uma vez que os próprios carnífices ficaram cansados, o governador ordenou-lhes que parassem e os levassem à prisão chamada “buraco escuro”, onde ficaram de agosto a meados de novembro.
O governador, então, mandou-os comparecer à sua presença, mas eles insistiam: – Já confessamos a nossa fé, estamos inabaláveis e, quanto a ti, faz o que te foi ordenado; tens poder sobre nossos corpos, não, porém, sobre nossas almas.
Visto que o governador estava disposto a condená-los à morte, foram invadidos pela alegria e disseram:
- Seja louvado Aquele que nos julgou dignos de suportar todo tormento pelo nome de Jesus Cristo. Chegando a uma colina, o carnífice mandou-os descer do carro; estavam cheios de alegria ao verem finalmente chegado o dia da coroa. Pediram um pouco de tempo para rezar, e o carnífice permitiu-o dizendo:
- Rezai também por mim, pelo mal que faço diante de Deus.
Ambos rezaram enquanto o carrasco e os soldados imploravam a misericórdia do Senhor.
 
4.Quantos foram os Martires?
 
Qual o número dos mártires? È impossível precisá-lo. Foram muitos, antes e depois de Constantino, para que a palavra de Cristo fosse salva ou não fosse dita em vão. Estavam já às portas as perseguições dos persas, que de 309 a 438 fizeram outros mártires, sob Sapor II e Baram V.

Poderíamos acrescentar aos mártires já nomeados dos três primeiros séculos, os que, no ocidente e no oriente, marcaram de maneira particular a história da cruz de Cristo, e poderiam ser propostos como modelo da sua vitória sobre o mundo pagão ou paganizante: as sete virgens da Galácia; Judite, viúva da Capadócia; Zenóbio, médico e sacerdote; Pânfilo, douto e santo; Cassiano, humilde mestre de escola; o homem do povo Taraco e o nobre Próbo; a cortesã convertida Afra e o pobre taberneiro Teódoto de Ancira, etc.
O exemplo deles sirva-nos de estímulo a viver cristãmente a vida, usando dos bens terrenos sem perder de vista os bens celestes, orando pelos perseguidores e irradiando a alegria do Ressuscitado enquanto ainda estão no corpo mortal. Somos chamados a testemunhar o Evangelho, no calvário da doença ou entre as outras cruzes quotidianas.

Em certo sentido, a perseguição sempre esteva ativa. Seja-o também o nosso testemunho de fidelidade a Cristo e à sua Igreja.
5. Conclusão
 
Concluindo, e como comentário à leitura dos Atos dos Mártires, apresentamos alguns pensamentos do Papa João Paulo II sobre o significado e o valor do martírio como “testemunho coerente do amor de Cristo e da Igreja e como prova eloqüente da verdade da fé”, e uma reflexão sobre a radicalidade e atualidade do martírio na Igreja das origens e do nosso tempo.
 
A MEMÓRIA DOS MÁRTIRES
testemunho perene do amor de Cristo e da Igreja
 
”A Igreja do primeiro milênio – escreveu o Papa João Paulo II na “Tertio Millennio Adveniente” (“Ao aproximar-se do terceiro milênio” – carta apostólica sobre a preparação do Jubileu, 10.11.1994, n. 43) nasce do sangue dos mártires: ‘Sanguis martyrum – semen christianorum… Ao término do segundo milênio, a Igreja tornou-se novamente Igreja de Mártires. É um testemunho que não se deve esquecer”.

Ainda na Bula de proclamação do Grande Jubileu do ano 2000 “Incarnationis mysterium” (“O mistério da Encarnação”), o Papa recorda que “a história da Igreja é uma história de santidade e de martírio... por isso a Igreja em todos os ângulos da terra deverá permanecer ancorada no testemunho dos mártires e defender ciosamente a memória deles”. Apresentamos aqui a passagem da Bula que fala do martírio da Igreja das origens e do nosso século.
”Um sinal perene, e hoje particularmente eloqüente, da verdade do amor cristão é a memória dos mártires. O seu testemunho não fique esquecido. Eles anunciaram o Evangelho, dando a vida por amor. Sobretudo nos nossos dias, o mártir é sinal daquele amor maior que contém em si todos os outros valores. A sua existência reflete aquela palavra suprema, pronunciada por Cristo na cruz:
“Perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). O fiel que tenha considerado seriamente a sua vocação cristã, dentro da qual o martírio aparece como uma possibilidade preanunciada na Revelação, não pode excluir esta perspetiva do horizonte da própria vida. Estes dois mil anos depois do nascimento de Cristo estão marcados pelo persistente testemunho dos mártires.
 
Também este século, que caminha para o seu ocaso, conheceu numerosíssimos mártires, sobretudo por causa do nazismo, do comunismo e das lutas raciais ou tribais. Sofreram pela sua fé pessoas das diversas condições sociais, pagando com o sangue a sua adesão a Cristo e à Igreja ou enfrentando corajosamente infindáveis anos de prisão e de privações de todo o gênero, para não cederem a uma ideologia que se transformou num regime de cruel ditadura. Do ponto de vista psicológico, o martírio é a prova mais eloqüente da verdade da fé, que consegue dar um rosto humano inclusive à morte mais violenta e manifestar a sua beleza mesmo nas perseguições mais atrozes.
Inundados pela graça no próximo ano jubilar, poderemos mais vigorosamente erguer ao Pai o nosso hino de gratidão, cantando: Te martyrum candidatus laudat exercitus (o exército resplandecente dos mártires canta os vossos louvores). Sim, é o exército daqueles que “lavaram as suas vestes e as tornaram cândidas no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14). Por isso, a Igreja espalhada por toda a terra deverá permanecer ancorada ao seu testemunho e defender zelosamente a sua memória.
Possa o povo de Deus, revigorado na fé pelos exemplos destes autênticos campeões de diversa idade, língua e nação, cruzar com confiança o limiar do terceiro milênio. À admiração pelo seu martírio associe-se, no coração dos fiéis, o desejo de poderem, com a graça de Deus, seguir o seu exemplo, caso o exijam as circunstâncias”. (Incarnationis mysterium 13)
 
6.Os mártires, testemunhas radicais
 
“Ser mártir é uma vocação. O Espírito Santo, não o juiz ou carnífice, faz os mártires, isto é, as grandes testemunhas. É o modo como cada vocação exprime uma dimensão da existência cristã que é comum a todos”. É esse o fio condutor da reflexão que segue sobre a necessidade, atualidade e radicalidade do martírio e sobre a sua força de atração, sobretudo para os jovens de hoje. O Papa associou, numa única lembrança, no dia da Páscoa de 1998, as testemunhas evangélicas da ressurreição e os mártires do nosso tempo. Uma das iniciativas para o jubileu é o martirológio do século XX, isto é, o catálogo daqueles que, de 1900 aos nossos dias, foram mortos pela fé. Os Sínodos da África, da América e da Ásia enumeraram o martírio e a memória dos mártires entre os pontos mais importantes da vida cristã atual e da nova evangelização. Da vida e não da história cristã! Os mártires não são apenas “glórias” ou “exemplos”, mas revelação viva de uma dimensão do ser cristão: o testemunho de Cristo e da verdadeira vida.
 
Martírio, no sentido original do termo, indicava a deposição de uma testemunha, por escrito e sob juramento, com valor de prova: o máximo, portanto, que se podia pedir de credibilidade, de garantia de verdade.
O Evangelho aplica a palavra a Jesus que dá testemunho do Pai e da verdadeira vida com a palavra e a ação; mas sobretudo, com a paixão e morte. Ele é a testemunha, o mártir por excelência.
Aplica-a depois àqueles que narraram a ressurreição de Jesus ou, em seguida, a anunciavam. Isso comportava expor-se à falência e à derisão e também ao risco de morte, como verificou-se já no início da Igreja com o martírio de Santo Estêvão.
O próprio Jesus associa a confissão de seus discípulos à assistência do Espírito Santo. “Sereis levados aos tribunais… e haverão de torturar-vos… sereis minhas testemunhas diante deles e diante dos pagãos… Não vos preocupeis com o que devereis dizer ou como o direis. Não sereis vós a falar, mas será o Espírito do vosso Pai que falará por vós” (Mt 10,17-18.20).
 
Logo e para sempre na história, o martírio tomou o sentido de oferta da vida em morte cruenta como testemunho da fé. O mártir não se defendia com argumentos para demonstrar a própria inocência diante de quem o acusava. Aproveitava para falar de Jesus, declarava o quanto fosse importante para si a fé em Cristo, confessava a sua pertença ao grupo cristão. Tinha até mesmo a coragem de exortar juizes e carnífices a mudar de opinião e ser sensatos.
 
Ainda hoje, mata-se por motivo de fé. Prova disso são os sete monges da Argélia e tantos outros, religiosos, religiosas e fiéis leigos, caídos onde grassavam o integralismo ou formas mágicas de religiosidade. Outros morreram e morrem no exercício da caridade ou no esforço de reconciliação durante conflitos étnicos, guerras civis e situações de insegurança geral.
É mais freqüente, porém, uma razão “humana”, ligada profundamente à fé. Assim, os regimes ideológicos do século XX fizeram massacres de crentes, católicos, protestantes, ortodoxos sob a acusação de oposição ao bem do povo, de subversão, de favorecimento dos inimigos do Estado. Não perguntavam nem sequer se o acusado queria renunciar à fé. Eliminavam-no sem processo. Difamavam-no, muitas vezes, através de uma imprensa poderosa e encenavam tribunais fantoches.
 
É interessante ver como realiza-se a palavra de Jesus: esquecemo-nos das montagens acusatórias. Recordamo-nos e somos beneficiados daquilo que os mártires proclamaram com o próprio sofrimento e silêncio: o valor da vida, a dignidade da pessoa chamada à comunhão com Deus e à responsabilidade diante dele, a liberdade de consciência, a crítica contra desvios trágico como o racismo, o integralismo, o poder absoluto do Estado, a discriminação, a exploração dos pobres. Diz-se que nenhuma causa vai adiante sem os seus mártires, sem aqueles que acreditam nela a ponto de dar a vida pelo que crêem. A fé comporta sempre uma certa violência. Jesus ensina que se chega à vida plena através da morte. Ele chegou à glória através da paixão. Quem quiser a coroa, diz São Paulo, deve suportar a luta, e quem quiser a meta deve agarrar-se à corrida; e treinar com sacrifício.
Hoje, este pensamento não nos é muito congenial. Há um dom do Espírito Santo que no-lo faz entender e assumir: a fortaleza. Todos precisamos dela. Ninguém, provavelmente, quererá matar-nos em vista da nossa crença religiosa. Existe, porém, toda uma concepção cristã da existência a ser sustentada e opções de vida que exigem lucidez e resistência. E há circunstâncias pessoais, doenças, situações de família e de trabalho, que exigem uma sólida ancoragem na esperança.
 
Ser mártir é uma vocação. O Espírito, não o juiz ou o carnífice, faz os mártires, isto é, as grandes testemunhas. E como toda vocação, exprime uma dimensão da existência cristã que é comum a todos. Em Roma, a lembrança dos mártires é familiar. Tem-na viva muitas igrejas, mas sobretudo as catacumbas, que fazem referência às condições precárias da comunidade cristã nos tempos de perseguição, aos acontecimentos nos quais se viram envolvidos indivíduos cristãos por acusações que se referiam à sua religião.
Pinturas, desenhos, incisões, sarcófagos e ambientes são uma verdadeira catequese, uma reflexão sobre a fé feita em “tempos” de martírio: tempos de minoria, significatividade provocadora, provações, adesões e amor.
Em outros contextos é uma realidade atual, mas nem sempre se encontra a meditação intensa, rica e articulada que nos impressiona nesses lugares clássicos. Os pressupostos, as implicações, aquilo que está à base do martírio, é parte não prescindível da formação na fé. Ela é fonte de alegria e de luz, mas não é oferecida de modo “barato”. Isso é-nos recordado pela parábola do “tesouro escondido”, pelo qual o comprador deve vender tudo o que possuía.
 
O martírio está relacionado com uma das notas sem as quais o Evangelho perde o seu colorido, o seu sabor, o seu fio, a radicalidade. É uma espécie de dinamismo interno pelo qual se almeja o máximo possível e é típico da fé. Não é integralismo, adesão cega à materialidade das proposições; não é maximização, pretensão e ostentação de coerência nas idéias e exigências. É “gosto” e conhecimento da verdade, adesão de amor à pessoa de Cristo.
João Paulo II apoiava o seu discurso numa constatação: o nosso tempo escuta mais as testemunhas do que os “mestres”. Existe nos jovens uma fibra que acolhe o convite à radicalidade. Façamo-la vibrar!” (Juan Edmundo Vecchi, Dire Dio ai giovani, LDC, 1999, p. 84-87).
Fim
 
Reconhecimentos
  1. Os números 1-11 dos Atos dos mártires são tirados, por gentil concessão do Editor, de “Atti dei Martiri”, cuidado por Giuliana Caldarelli, Edizioni Paoline, 1983, p. 783, 2ª ed., reimpressão 1996. Coleta de Atos dos Mártires. Tem um valor particular a ampla introdução sobre as perseguições e os Atos. Estes, mais de cinqüenta, são subdivididos por séculos, enquadrados historicamente e traduzidos dos textos latinos e gregos..
  2. O número 12, de Giuseppe Ricciotti, “L’Era dei Martiri”, Coletti editore, Roma, 1953, p. 398. Obra clássica do douto biblista e historiador da Igreja.
  3. A premissa e os números 13-20, de Calogero Riggi, “Il messaggio dei primi martiri”, Elledici, Leumann-Torino, 1978, p. 33. Libreto de divulgação popular.
  4. “Incarnationis Mysterium”, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 1998, n. 13.
  5. “Os mártires, testemunhas radicais”, de Juan Edmundo Vecchi, “Dire Dio ai giovani”. Elledici, Leumann-Gorino, p. 1999, p. 140.




Repórter de Cristo 

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