quinta-feira, 5 de maio de 2011

O AMOR É PACIENTE.


Foi-me pedido hoje, aqui, que falasse sobre o amor. Este é um dos assuntos mais agradáveis de falar. Agradável, porém difícil, se o orador ou o pregador não souber transformar as palavras em atitudes. O amor é um sentimento. Mais que isto, talvez, um valor que não ocorre isoladamente, de forma espontânea ou acidental. É impossível dissociar a palavra “amor” da pessoa de Deus, afinal, “Deus é amor” (cf. 1Jo 4,8.16).

Certa vez me pegaram de surpresa, numa festa de casamento civil (os noivos optaram por não casar na Igreja) para dizer “algumas palavras” a respeito do amor de um homem e de uma mulher. Em face do desejo dos noivos, me foi recomendado que não fizesse nenhuma alusão a Deus, a amor eterno, ou “até que a morte os separe”. Confesso que, mesmo havendo prometido, me esforcei mas não consegui. Minha formação e minha fé cristã me traíram, e eu terminei dizendo que “o amor vem de Deus”, que foi o seu amor que uniu aqueles dois jovens que estavam ali, e que aqueles que escutam a Palavra de Deus (que recomenda o amor, a fidelidade, a partilha, o perdão, etc.) constroem uma “casa sobre a rocha” (cf. Mt 7, xx).

Um dos mais belos textos do Novo Testamento, junto, quem sabe, com as Bem-aventuranças, o diálogo com a mulher samaritana, a volta do “filho pródigo”, o milagre de Caná e o discurso sobre o “pão da vida” é, sem dúvidas, o conhecido “Hino ao Amor” de São Paulo, encontrado no capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios. No período 2008-2009 os católicos homenageiam São Paulo, na comemoração de seus 2000 anos de nascimento.

Nesse expressivo texto, escrito em grego, por volta do ano 55 de nossa era, o apóstolo dos gentios proclama a superveniência do amor sobre os demais dons, carismas e virtudes humanas. A comunidade cristã estava se dividindo, aderindo aos costumes dos pagãos, derivando para a licenciosidade e materialismo daquelas metrópoles helênicas, fugindo do espírito de amor, paz, solidariedade e pureza que deveria nortear os seguidores do Ressuscitado.

O primeiro objetivo de Paulo na carta é restabelecer a unidade entre os cristãos, uma vez que a divisão não é obra do Espírito, mas mera tentação da carne. Para concluir o assunto, o apóstolo discorre sobre os dons de Deus (Cap. 12), como preparação para o comentário posterior, onde aborda o “dom maior”: o amor (Cap. 13).

Uma das palavras mais pronunciadas por nossos lábios é amor. Hoje declaramos nosso amor por tudo e por todos. Será que amamos na mesma proporção em que mencionamos esse verbete? Hoje se usa a palavra amor e o verbo amar para muitas circunstâncias, que nem sempre indicam aquele sentimento profundo e transformador que caracteriza o sentimento verdadeiro.

Em um tempo tão carente de afeto, entristece a todos a verificação de que muitos falam em amor, mas não sabem amar. Apesar das inúmeras formas de se abordar o tema, o amor continua sendo uma questão de infinita busca pessoal. Por causa do materialismo, do egoísmo de muitos e da busca indiscriminada do prazer, amar continua sendo um desafio para a vida em sociedade.

Na parte final do capítulo 12, que trata especificamente dos carismas distribuídos à comunidade cristã, São Paulo como que prepara seus leitores para a compreensão e o emprego do dom mais precioso, que é o amor:

Procurem com zelo os dons maiores. Eu vou mostrar-lhes um caminho sobremodo excelente (1Cor 12, 31).

O capítulo 13, objeto de nossa reflexão, começa, sintomaticamente, com o último versículo do 12. Tal construção nos leva a concluir que o amor é o primeiro dom de Deus e o somatório de todos os carismas. Como primícia dos dons maiores, os que mais edificam as pessoas e as comunidades, situa-se o amor. Há dons edificantes (que aproximam o homem de Deus) e dons de serviço (que realizam no mundo o projeto de Deus). O amor torna-se a síntese de todos eles. Talvez por isso os místicos da Idade Média chamavam o texto compreendido no capítulo 13 da Carta aos Coríntios como “o salmo do amor”, do qual Cristo é o modelo.

Voltando ainda ao Capítulo 12, vemos nele, como já foi dito, uma preparação ao seguinte. Lá o apóstolo fala em carisma, e no 13 em agápe, duas expressões gregas que a teologia bíblica apropriou, como dom, presente e atitude amorosa, respectivamente. O conselho de “aspirar aos dons mais elevados” (12, 31a) inflete na direção de uma fruição do maior dos dons de Deus, que é o amor.

Há quem afirme que o “Hino ao Amor” paulino não é criação do apóstolo, mas uma adaptação de um antigo texto grego, que circulava entre as diversas camadas da população, naquele tempo. Mesmo assim, e esta é a grande constatação, a grande verdade é que o hino em questão, da maneira em que foi colocado no contexto da epístola, preenche perfeitamente todas as características do amor cristão, suas exigências, doutrina e aplicabilidade prática. A construção que ora vamos estudar, traz consigo aspectos doutrinários, querigmáticos, morais, catequéticos, sociológicos e escatológicos.

Lembrando que “o amor é paciente” (v. 4), vamos mergulhar no Espírito de Deus, para buscar edificação espiritual, compreensão bíblica e iluminação teológica, para nossa vida cristã, ao mesmo tempo simples e misteriosa. Vamos ver o amor como essência.

Os dons de Deus, concedidos para a edificação espiritual do ser humano e social da comunidade, só serão plenamente desenvolvidos se ornados, colocados em ação, a partir de uma vivência humana totalmente enraizada em Deus e no seu amor. O amor nos dá sentido de vida, nessa e na outra. Se sabemos e professamos que “Deus é amor” (cf. 1Jo 4, 8.16), é impossível levarmos a efeito qualquer trabalho de instauração do Reino de Deus sem o amor, a essência da divindade, derramada sobre o gênero humano. O amor é força de Deus mas também força da pessoa que está aliada a ele. Por transcendente, como veremos mais adiante, o amor é maior que a esperança e a própria fé. No amor descobre-se a fonte da vida humana: fomos criados por amor e - sobretudo - para o amor. Autêntico dom de Deus, que governa o uso dos demais dons e carismas (cf. 1Cor 12-13), o amor pode ser visto em várias formas, modos e circunstâncias:

a) amor de Deus pelo homem
É sabido, e a Bíblia no-lo ensina, que Deus se fez homem por amor à humanidade (cf. Jo 3, 16) porque nos amou primeiro (cf. 1Jo 4, 19). Assim, o amor se resume no cumprimento de toda a lei divina (cf. Rm 13, 8ss). O próprio ato criacional não pode ser contemplado fora da ótica do amor: Deus nos criou porque nos ama. E nos criou para o amor;

b) amor dos homens por Deus
Esse sentimento só pode ser obtido através da ascese da alma, que elevando-se do material adentra no místico, na direção do mistério no qual Deus repousa. O primeiro mandamento requer essa ascensão mística: “Amarás o Senhor teu Deus sobre todas as coisas...”. O amor é encontrado na essência de Deus, afinal, e São João revela, “Deus é amor” (cf. 1Jo 4, 8.16);

c) amor-próprio
Visto pela psicologia moderna como “auto-estima”, esse tipo de amor é admissível se for igual ao amor ao próximo (cf. Mt 22, 39). Somos filhos e templos de Deus, por isso, na medida adequada, também se impõe o amor-próprio. Há o perigo, no entanto, de se cair em um individualismo egoísta;

d) amor ao próximo
Junto com o amor a Deus, resume toda a doutrina, a lei e os escritos proféticos (cf. Jo 13, 34s). Os demais dons dependem do amor, estão nele contidos e sem ele nada significam. Se somos filhos do mesmo Pai, unidos na remissão do mesmo Irmão, somos irmãos entre nós e - como tal - devedores de um amor recíproco, desinteressado e solidário.

Sendo o amor um dom essencial ao ser cristão, podemos concluir que, quanto maior for o dom recebido, maior a afronta a Deus quando se deixa de amar. Se o homem recusá-lo ou empregá-lo de forma indevida, diferente do que Deus projetou, sua atitude torna-se inócua, blasfema e herética. Vale o contrário: quanto mais bem empregado um dom divino, mais glória se estará dando ao Criador.

O mundo civilizado, no tempo de São Paulo, estava impregnado pela cultura greco-romana. Se de um lado se podia dizer que Roma adorava o poder, era lícito afirmar que os gregos haviam entronizado o saber. Esses dois ícones das culturas dominantes, conduziam-nas a outra forma de adoração: o prazer. Convertido ao Cristo, o apóstolo ensina a proeminência do amor, como síntese da nova cultura cristã, contra a força, a posse e o prazer. Para bem viver é preciso descobrir um sentido, e esse passa pelo amor. A partir de agora, valeria a força do amor, a posse do domínio sobre si próprio e o prazer de estar na comunhão com Deus. Por causa disso, no século VIII de nossa era, um poeta árabe afirmou que “o amor governa o mundo sem a lei e sem a espada”.

O ato de viver, por exemplo, é como escrever um livro. Trata-se de um risco enorme. O perigo não está no fato da obra não ser aceita pelos leitores, ou rejeitada pela crítica. O risco é outro. Atrás das letras, em geral frias, está um pedaço da vida e da história de quem escreveu a obra. Há sempre o perigo do testemunho, ou seja, não adianta escrever, temos que viver aquelas palavras, encampar as idéias e mostrarmo-nos coerentes com o que foi afirmado. Na vida ocorre fato análogo: há uma necessidade de compatibilizar as ações com as palavras, do vivido com o sonhado. Não adianta teorizar sobre o amor se eu não souber amar a Deus, a meu marido, meus filhos, minha neta, meus familiares, amigos, vizinhos, próximos e não-próximos.

Nós usamos a palavra amor para caracterizar sentimentos, gostos e aptidões superficiais e - não raro - contraditórios. Assim, há amor por pessoas, pelo nosso cão, pelos livros, por essa ou aquela comida. Os gregos usam, para caracterizar o ato de amar, três palavras: philia, agápe e éros.

No campo da philia, vemos um gosto, uma amizade. Assim, eu tenho philia por meus discos, livros e coisas materiais. Usa-se muito a expressão filo, na medicina, biologia e botânica, para caracterizar uma atitude de afinidade, ou relação. O verbete philia também se aplica à amizade.

O éros refere-se ao encontro conjugal, vivido na carne e na sexualidade, entre um homem e uma mulher. Em muitos casos, o éros pode não estar ligado ao amor, como o entendemos, mas restrito a uma mera atração física. Daí a expressão erótica.

O amor-agápe é o amor verdadeiro, contido na essência divina (cf. Jo 3, 16). Trata-se de afeto que Deus tem pelo homem, sentimento com que os Três Divinos, na comunhão trinitária, se amam. É também o amor-tipo a que os cristãos são chamados a experimentar, amando a Deus, ao próximo e a todos os membros da comunidade. O amor-agápe (o verbo grego é agapáo) é o autêntico amor cristão, e pode ser visto como

· modo de louvor, exaltação e adoração a Deus
· um desejo de servir (bem-estar dos outros)
· plenitude que ocorre no ser humano, repleto do Espírito de Deus (cf. Gl 5, 5)
· vida cristã totalmente assumida

Como na Antigüidade, a expressão amor era um tanto quanto ambígua, pois tendia ao material (amor pelo dinheiro) e ao sensual (amor carnal), na tradução da Bíblia, São Jerônimo († 430) fez inserir em sua vulgata a expressão dilligere, como sinônimo do amor cristão, no que foi seguido, posteriormente, por Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. A expressão, utilizada pelos motivos acima, não é totalmente adequada, uma vez que ser diligente é estar a serviço, interessar-se. Sabemos que amar, na legítima acepção é bem mais que isto. A maioria das traduções aos vernáculos, após 1970 adotou a palavra amor.
A despeito de algumas disputas exegéticas a respeito da conceituação e diferenciação entre amor e caridade, a grande constatação é que a palavra agápe tanto pode ser traduzida por amor como por caridade. Caridade e amor são juízos que se interpenetram em um mesmo sentido. Amor é mistério, é dom, é essência de Deus, é vida de onde brota a justiça, a paz e a libertação. Caridade é praticamente a mesma coisa, desde que o amor-agápe não seja confundido com mera amizade, erotismo, e se soubermos distinguir a diferença entre caridade e assistencialismo descompromissado, ou uma barganha interesseira para “limpar o carma” como querem nos impingir os postulados reencarnacionistas. A pujança e a gratuidade do verdadeiro amor vêm descritas desde a antiga cultura sapiencial judaica. Enquanto a paixão “é cruel como o abismo”(v. 6),

As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quem quisesse dar tudo o que tem para comprar o amor, seria tratado com desprezo (Ct 8, 7).

O amor humano decorre do amor de Deus. O uso do amor, sem o propósito de buscar a salvação, própria e dos outros, é uma simples auto-glorificação, e não passa de um ruído, repetitivo e monótono. Certos crentes daquela época usavam o dom das línguas para se exaltarem a si próprios. Usar um dom em exclusivo proveito próprio, equivale a enterrá-lo (cf. Mt 25, 24-29). Ainda com relação ao “falar em línguas”, segundo Orígenes, os anjos adoram a Deus em língua própria (que os rabinos diziam ser hebraico).

Talvez por isso, algumas pessoas que dizem “falar em línguas” emitem sons semelhantes ao hebraico ou aramaico. Fiel à idéia de superveniência do amor sobre os demais sentimentos e circunstâncias da vida humana, a palavra de São Paulo retrata a nulidade de toda a grandeza humana: os valores humanos, por mais úteis que possam parecer, sem o amor, de nada valem. O amor-ágape, com sua presença ou sua ausência, determina o ser ou o não ser cristão.

Os chamados “dons de socorro” referem-se à doação dos bens materiais, ajudar, minorar carências, resgatar excluídos, alimentar, vestir, etc. A questão da esmola e da caridade tem suscitado debates e controvérsias. A esmola pode ser vista como um ato isolado, em que se minora temporariamente a carência de alguém em necessidade. Era, como vimos, uma tradicional imposição do legalismo judaico desde o êxodo. Às vezes as pessoas dão esmolas para parecer benfeitores, em outras para se livrar de alguns objetos sem serventia, ou para um resguardo provisório dos reclamos de suas consciências.

se não tivesse o amor, eu não seria nada... se não tivesse o amor, nada disso me adiantaria (cf. vv. 2-3)

Doar bens supérfluos ou abundantes é dar esmola; doar-se a si próprio, ou dar aquilo que nos faz falta - e a doação da viúva pobre que doou tudo o que possuía é um gesto temático de amor (cf. Mc 12, 42) - é caridade, é graça, é dom de Deus. Mesmo o ascetismo (vender todos os bens e doar o dinheiro aos pobres) antigo e moderno não tem valor em si se outro for o motivo que não o amor.
A dedicação a Deus ou ao próximo, sem amor, perde a consistência e cai no costume das orações decoradas, das práticas de costume ou das atitudes postiças daquele assistencialismo que quer passar uma imagem de piedoso. Nos primeiros tempos do cristianismo, alguns fiéis imolavam-se, imaginando entrar na glória. A Igreja condenou esses suicídios, pois via, em muitos deles, meros atos de orgulho, atitudes de escape com a missão temporal, despidas de amor a Deus. Se não houver amor nos atos das pessoas, não há em sua conduta o verdadeiro amor a Deus nem o salutar interesse pelo próximo e, sendo assim, esvai-se a sinceridade.

Madre Teresa sempre dizia que os pobres precisam mais se sentir queridos do que terem alimento, abrigo e roupas, embora precisem disso desesperadamente. O mais torturante aspecto de sua pobreza é a situação de execração que lhes é imposta. Segundo a religiosa, deve haver no coração de todo o cristão um lugar privilegiado para os pobres de Deus, por quem Cristo morreu e, portanto, merecedores de todo o amor.

O amor que Madre Teresa deu aos pobres, fazendo refletir neles o amor de Deus, tornou-os mais irmãos, mais gente, membros de uma mesma família, que tem Deus como Pai. Nós podemos dar sem amar, mas jamais sermos capazes de amar sem partilhar. No entanto, sempre que se fala em partilha, surgem debates, pois muitos, como vimos, confundem-na com a esmola ou o mero assistencialismo.

Se a antiga concepção judaica podia dar margens a interpretações distorcidas, tais como aquela em que o amor fraterno pudesse se situar no mesmo plano dos demais mandamentos, a visão cristã, a partir do mandamento novo (c. J0 13, 34s) assume o agápe como o lugar central do pensar e do agir cristão. Nesse particular, o amor cristão, especificamente o que se traduz em partilha, é dom de Deus, e como tal deve ser expectado e buscado. Com relação à partilha é salutar, quando passamos ao tópico seguinte, nos iluminarmos pelo sol dos clássicos:

Nosso Senhor não leva em conta o valor de nossas obras, mas o amor com que são feitas (Teresa de Ávila);

É a intenção amorosa que torna a obra valiosa aos olhos de Deus (Santo Ambrósio).

Quando se fala no amor, muitos exclamam “ah, o amor!”, imaginando-o apenas revestido da roupagem brilhante do amor romântico. Há também o amor que é praticado no meio do sofrimento e da doação, como ensinou Madre Tereza. Este é o amor mais difícil de ser praticado. É desse sentimento que nasce a santidade... O amor quebra barreiras, une facções, destrói preconceitos, cura doenças... Não há vida decente sem amor! E é certo: quem ama, é muito amado. E vive a vida mais alegremente.

A busca da justiça do Reino dos céus não está em fazer negócios com Deus ou estabelecer com ele algum processo de troca, do tipo “eu faço isto e você me dá aquilo...”. Trata-se de uma relação gratuita e confiante. Ao buscarmos viver de acordo com a justiça de Deus, mesmo não tendo direito algum, ganharemos tudo o que precisamos. Até com acréscimo. A doutrina utilitarista que influenciou o pensamento de Kardec revela que só aquilo que serve a um determinado propósito é que tem valor. Que satisfação teria uma mãe que só recebesse carinhos de sua filha quando esta precisasse alguma coisa dela? Ficaria feliz o pai cujo filho só estudasse para ganhar uma bicicleta no fim do ano?

No processo do carma, é bem assim. O próximo, o outro, fica deformado por aquela atitude muitas vezes funcionalista. Faz-se um provável bem, não por caridade em si, mas – como os clubes de serviço – para “ganhar pontos”. O outro se torna um instrumento, uma mera ponte para meu progresso espiritual. Nesse processo, Deus pouco interfere. Vale o progresso que cada um fizer pela soma de mais gestos de “caridade”. Deste modo, os arquétipos mais acentuados da doutrina espírita, fundamentais até, tornam-se frágeis diante de uma crítica mais consistente. É uma visão distorcida da divindade, do amor e da alteridade. Cria-se a distorção da caridade pela caridade, e não por causa do amor.

A partir dos postulados interesseiros de alguns, caridade passou a ser sinônimo de esmola. Vemos aqui e acolá, pessoas que dão meras esmolas serem chamadas de benfeitoras ou caridosas. Caridade e amor podem ser sinônimos, sim, desde que tenham origem na graça de Deus, funcionando como uma iluminação que ele nos concede para levarmos adiante nosso ser-cristão.

Na carta de São Paulo ressalta-se para nós a afirmação de que o amor é paciente .Há um antigo provérbio alemão, enfatizando o valor dessa virtude, que afirma que “paciência é uma planta amarga, mas que dá frutos muito doces”. No grego, o verbete paciência é encontrado como makrothimêi, a macrotimia, onde macro significa maior (ou melhor), e thimei, timía, refere-se a ânimo. Nessa linha de raciocínio, na antítese, surge a ciclotimia, em que o ânimo da pessoa vai da euforia à profunda depressão em poucos minutos.

Sendo paciente (antigas traduções, com ranço lusitano dizem longânime), o amor é lento para irar-se e não se ofende ante o primeiro insulto. Recebe ofensas e injúrias sem buscar retaliação. Ao contrário, a impaciência está sempre “de pé atrás”, pronta a revidar ou vingar-se de algum agressor. Como diz T. de Kempis, o autor de “A Imitação de Cristo”: “Todos os homens recomendam a paciência, embora muito poucos sejam os que a praticam”.

O amor que é paciente torna-se semelhante àquele com que Cristo nos amou (e ama). É um amor multidimensional, voltado ao Infinito, à alteridade, à natureza e - em último lugar - a nós mesmos. Assim, ele é paciente com todos, suporta toda a fraqueza, ignorância, erros, insubordinação e pequenez na fé. Nessa visão observa-se que paciente é o amor que suporta toda a maldade e crueldade dos filhos do mundo. E suporta tudo isso não algum tempo, por uma curta duração, mas até o fim. Alimenta o inimigo quando este tem fome, oferece-lhe água se tem sede e, deste modo, está sempre “cumulando brasas” sobre sua cabeça. Pois a paciência se poderia traduzir como “o melhor do ânimo” que pode ocorrer na pessoa humana. Filosoficamente é uma virtude que consiste em suportar as dores, incômodos, infortúnios, etc., sem queixas e com resignação. A paciência, como atributo do amor, suporta deslizes e negligências do outro, sem buscar vingança ou represália. Como disse São Francisco de Assis, “Onde há paciência e humildade, não há nem raiva nem humilhação”. No anúncio do mistério da ressurreição, ponto convergente e referencial de nossa fé cristã, escutamos Jesus dizer que,

Se o grão de trigo não morrer... (cf. Jo 12, 24).

Ora, tal afirmação equivale a dizer que se a semente não tiver paciência de esperar o kairós, o momento oportuno, não haverá vida. Na pregação paulina, dirigida à Igreja primitiva, há vários trechos que dão ênfase a essa virtude:

(o caminho está) na pureza, na ciência, na paciência, na bondade, no Espírito Santo, no amor não fingido (2Cor 6, 6).

Quando ocorre um infortúnio, de nada resolve perder a cabeça e desesperar, blasfemando contra Deus e o mundo. Mesmo algumas pessoas religiosas, julgam-se, por causa desse estado, imunes à dor e ao sofrimento, e quando este surge, se desesperam e se enchem de questões que, via-de-regra, ficam sem respostas, pois aquelas coisas são inerentes à vida humana. Com vistas à fortaleza da paciência nesses momentos, São Paulo ensina:

Alegrem-se na esperança, sejam pacientes na tribulação e perseverem na oração (Rm 12, 12).

Os escritos de São Paulo são riquíssimos em doutrina cristã. Eles funcionam como que uma interpretação, uma tradução para a linguagem popular, do que preconiza a Palavra de Deus. Eu sempre costumo dizer, em escritos, aulas, cursos e conferências, o quanto seria difícil expor a mensagem cristã se não tivéssemos a vigorosa alavancagem dos textos paulinos. Deste modo, podemos, com um aleatório resumo do capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios, estabelecer alguns tópicos para um estudo sistemático:

a) a superioridade do amor (vv. 1-3)
b) a natureza do amor (vv. 4-7)
c) a permanência do amor (vv. 8-13).

O fio condutor da mensagem escatológica de São Paulo é o amor de Deus, e o amor-agápe entre os homens. O amor torna-se, deste modo, o fato gerador de toda a atividade cristã. É por esta razão que ele deve sempre agir de acordo com a inspiração divina. O apóstolo nos revela, em muito de sua pregação e atividade pastoral, que esse princípio organizador, o amor cristão, deve ampliar-se, transcender horizontes, insuflando nas pessoas desejos de acolhida, serviço e salvação.

São João evangelista, no crepúsculo do primeiro século, nos fala da superveniência e atualidade do amor, no capítulo 4 de sua Primeira Carta, endereçada aos partos:

· amor vem de Deus (v. 7a)
· Deus é amor (vv. 8.16)
· quem ama nasceu de Deus e conhece a Deus (v. 7b)
· no amor não existe medo, pois amar dissipa quaisquer temores (v. 18)

O amor, como já falamos, é o único bem espiritual que transcende e perpassa o fim de nossa vida terrena. A fé e a esperança, por satisfeitas, deixam de existir na eternidade. O amor não! Lá amamos mais e seremos igualmente amados. Os demais dons e carismas, por servirem à causa humana e terrena, com a passagem para a outra vida deixam de existir e de ter sua utilidade. Afinal, sabemos que,

quando vier a perfeição, desaparecerá o que é limitado (v. 10)

A perfeição é o amor que vai subsistir acima de todas as virtudes, por humanas, limitadas. Só o amor, por ser oriundo de Deus, que nos é conferido como sinal distintivo do “ser cristão” é capaz de nos conferir a perfeição que erradica tudo que é limitado, sectário, finito, inferior. Seria incoerente afirmarmos amor a Deus sem amar o irmão.

Se nos amamos uns aos outros, Deus está conosco e seu amor em nós se torna perfeito (1Jo 4, 12).

No mistério do Deus-amor que se faz carne e se entrega ao sacrifício e à morte para que tenhamos vida (cf. Jo 10, 10), precisamos ver o amor em sua demonstração máxima e insuperável. Ao dizer que “ninguém tem mais amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (cf. Jo 15, 13) Jesus mostra até que ponto ele é capaz de amar. E nós, cristãos de hoje, enxergamos na cruz um gesto de amor?

Nessa pedagogia de amor e cruz, Deus nos mostra, pelo despojamento de Jesus, que o amor, para ser eficaz, não pode medir conseqüências nem estabelecer limites. Amar é sempre ir mais além... O cristianismo impõe à Igreja a necessidade de um amor consistente, a Deus e ao próximo como ao rol dos que vão se salvar.

Amar é dar-se, continuamente, sem jamais, em momento algum, exigir nada em troca. É querer – nunca é demais repetir – e realizar o bem do outro, mesmo expondo-se a um sacrifício. O amor verdadeiro se regozija com a Verdade, que é o próprio Cristo, nossa paz. Amar, ser justo e ter paz são juízos convergentes. Quando constatamos que efetivamente o amor é paciente, adquirimos a certeza de que amar é estar a serviço, é crer e esperar.


Até mesmo contra toda a esperança...

Antônio Mesquita Galvão
Doutor em Teologia Moral
Adital
[Meditação levada a efeito em São Paulo, a um grupo de vocacionados].

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