Igreja Nascente - Algumas Heresias Cristológicas
D. Estevão Bettencourt, OSB
Após verificar que o Filho de Deus é verdadeiro Deus com o Pai e o Espírito Santo, a atenção dos teólogos devia voltar-se mais detidamente para a questão: como Jesus pode ser autêntico Deus e autêntico homem? Como se relacionam entre si a Divindade e a humanidade de Jesus? A resposta a estas perguntas exigiu grande esforço por parte dos estudiosos, que a formularam em quatro etapas:
1) a fase apolinarista;
2) a fase nestoriana;
3) a fase monofisita;
4) a fase monotelita.
A seguir, estudaremos as três primeiras destas etapas.
O Apolinarismo
Em plena controvérsia ariana, o Bispo Apolinário de Laodicéia (Síria), 310-390, mostrava-se fervoroso defensor do Credo niceno contra os arianos, mas afirmava que em Cristo a natureza humana carecia de alma humana; tomava ao pé da letra as palavras de S. João 1,14: “O Logos se fez carne”, entendendo carne no sentido estrito, com exclusão de alma. O Logos de Deus faria as vezes de alma humana em Jesus, isto é, seria responsável pelas funções vitais da natureza humana assumida pelo Logos.
Os argumentos em favor desta tese eram os seguintes: duas naturezas completas (Divindade e humanidade) não podem tornar-se um ser único; se Jesus as tivesse, Ele teria duas pessoas ou dois eu – o que seria monstruoso. Além disto, dizia, onde há um homem completo, há também o pecado; ora o pecado tem origem na vontade; por conseguinte, Jesus não podia ter vontade humana nem a alma espiritual, que é a sede da vontade.
Apolinário expôs suas ideias no livro “Encarnação do Verbo de Deus”, que ele apresentou ao Imperador Joviano e que os seus discípulos difundiram. – Foram condenadas num sínodo de Alexandria em 362; depois, pelo Papa S. Dâmaso em 377 e 382 e, especialmente, pelo Concílio de Constantinopla I (381). Verificando a oposição que lhe faziam bons teólogos, Apolinário limitou-se a negar a presença de mente (nous) humana em Jesus. S. Gregório de Nissa († 394) e outros autores lhe responderam mediante belo princípio: “O que não foi assumido pelo Verbo, não foi redimido” – o que quer dizer: Deus quer santificar e salvar a natureza humana pelo próprio mistério da Encarnação ou pela união da Divindade com a humanidade; se pois, a humanidade estava mutilada em Jesus, ela não foi inteiramente salva. Em Antioquia, fundou-se uma comunidade apolinarista, tendo à frente o Bispo Vital. Por volta de 420 esta foi reabsorvida pela Igreja ortodoxa, mas nem todos os seus membros abandonaram o erro, que reviveu, de certo modo, na heresia monofisita.
O Nestorianismo
Afirmada a existência da natureza humana completa em Jesus, os teólogos puderam estudar mais detidamente o modo como humanidade e Divindade se relacionaram em Cristo. Antes, porém, de entrar em particulares, devemos mencionar as duas principais escolas teológicas da antiguidade: a alexandrina e a antioquena, que muito influíram na elaboração da Cristologia. A escola alexandrina era herdeira de forte tendência mística; procurava exaltar o divino e o transcendental nos artigos da fé. Interpretava a S. Escritura em sentido alegórico, tentando desvendar os mistérios divinos contidos nas Sagradas Letras. Em assuntos cristológicos, portanto, era inclinada a realçar o divino, com detrimento do humano. Ao contrário, a escola antioquena era mais dada à filosofia e à razão: voltava-se mais para o humano, sem negar o divino. Interpretava a S. Escritura em sentido literal e tendia a salientar em Jesus os predicados humanos mais do que os atributos divinos.
Era mais racional, ao passo que a de Alexandria era mais mística. Dito isto, voltemos à história do dogma cristológico. A primeira tentativa de solução foi encabeçada por Nestório, elevado à cátedra episcopal de Constantinopla em 428. Afirmava que o Logos habitava na humanidade de Jesus como um homem se acha num templo ou numa veste; haveria duas pessoas, em Jesus “uma divina e outra humana” – unidas entre si por um vínculo afetivo ou moral. Por conseguinte, Maria não seria a Mãe de Deus (Theotókos), como diziam os antigos, mas apenas Mãe de Cristo (Christokós); ela teria gerado o homem Jesus, ao qual se uniu a segunda pessoa da SS. Trindade com a sua Divindade. Nestório propunha suas ideias em pregações ao povo, nas quais substituía o título “Mãe de Deus” por “Mãe de Cristo” As suas concepções suscitaram reação não só em Constantinopla, mas em outras regiões também, especialmente em Alexandria, onde S. Cirilo era Bispo ardoroso. Este escreveu em 429 aos bispos e aos monges do Egito, condenando a doutrina de Nestório. As duas correntes se dirigiram ao Papa Celestino I, que rejeitou a doutrina de Nestório num sínodo de 430. Deu ordem a S. Cirilo para que intimasse Nestório a retirar suas teorias no prazo de dez dias, sob pena de exílio; Cirilo enviou ao Patriarca de Constantinopla uma lista de doze anatematismos que condenavam o nestorianismo. Nestório não se quis dobrar, de mais a mais que podia contar com o apoio do Imperador; além do mais, tinha muitos seguidores na escola antioquena, entre os quais o próprio Bispo João de Antioquia.
Em 431, o Imperador Teodósio II, instado por Nestório, convocou para Éfeso o terceiro Concílio Ecumênico a fim de solucionar a questão discutida. S. Cirilo, como representante do Papa Celestino I, abriu a assembleia diante de 153 Bispos. Logo na primeira sessão, foram apresentados os argumentos da literatura antiga favoráveis ao título Theotókos, que acabou sendo solenemente proclamado; daí se seguia que em Jesus havia uma só pessoa (a Divina); Maria se tornara Mãe de Deus pelo fato de que Deus quisera assumir a natureza humana no seu seio. Quatro dias após esta sessão, isto é, a 26/06/431 chegou a Éfeso o Patriarca Jogo de Antioquia, com 43 Bispos seus seguidores, todos favoráveis a Nestório; não quiseram unir-se ao Concílio presidido por S. Cirilo, representante do Papa; por isto formaram um conciliábulo, no qual depôs Cirilo. O Imperador acompanhava tudo de perto e sentia-se indeciso. S. Cirilo então mobilizou todos os seus recursos, para mover Teodósio II em favor da reta doutrina; nisto foi ajudado por Pulquéria, piedosa e influente irmã mais velha do Imperador. Este finalmente apoiou a sentença de Cirilo e exilou Nestório. Todavia os antioquenos não se renderam de imediato; acusavam Cirilo de arianismo e apolinarismo.
Após dois anos de litígio, em 433 puseram-se de acordo sobre uma fórmula de fé que professava um só Cristo e Maria como Theotókos. O Nestorianismo, porém, não se extinguiu. Os seus adeptos, expulsos do Império Bizantino, foram procurar refúgio na Pérsia, onde fundaram a Igreja Nestoriana. Esta teve notável expansão até a China e a Índia Meridional; mas do século XIV em diante foi definhando por causa das incursões dos mongóis; em grande parte, os nestorianos voltaram à comunhão da Igreja universal (são hoje os cristãos caldeus e os cristãos de São Tomé). Em nossos dias muitos estudiosos têm procurado reabilitar a pessoa e a obra de Nestório, que parece ser autor de uma apologia intitulada “Tratado de Heraclides de Damasco”: pode-se crer que tenha tido reta intenção ; mas certamente sustentou posições errôneas por se ter apegado demasiadamente à Escola Antioquena.
O Monofisismo
A luta contra o Nestorianismo, que admitia em Jesus duas naturezas e duas pessoas, deu ocasião ao surto do extremo oposto, que é o monofisismo ou monofisitismo (“em Jesus há uma só natureza e uma só pessoa: a divina”).
O primeiro arauto desta tese foi Eutiques, arquimandrita de Constantinopla: reconhecia que Jesus constava originariamente da natureza divina e da humana, mas afirmava que a natureza divina absorveu a humana, divinizando-a; após a Encarnação, só se poderia falar de uma natureza em Jesus: a divina. Esta doutrina tornou-se a heresia mais popular e mais poderosa da antiguidade, pois, para os orientais, a divinização da humanidade em Cristo era o modelo do que deve acontecer com cada cristão.
Eutiques foi condenado como herege no Sínodo de Constantinopla em 448, sob o Patriarca Flaviano. Todavia não cedeu e reclamou contra uma pretensa injustiça, pois tencionava combater o Nestorianismo. Conseguiu assim ganhar os favores da corte.
Solicitado pelo Patriarca Dióscoro de Alexandria, Teodósio II Imperador convocou em 449 novo Concílio Ecumênico para Éfeso, confiando a presidência do mesmo a Dióscoro, que era partidário de Estiques. Dióscoro, tendo aberto o Concílio negou a presidência aos legados papais; não permitiu que fosse lida a Carta do Papa S. Leão Magno, que propunha a reta doutrina: as duas naturezas em Cristo não se misturam nem confundem, mas cada qual exerce a sua atividade própria em comunhão com a outra; assim Cristo teve realmente fome, sede e cansaço, como homem, e pode ressuscitar mortos como Deus. Esse Concílio de Éfeso proclamou a ortodoxia de Eutiques; depôs Flaviano, Patriarca de Constantinopla, e outros Bispos contrários à tese monofisita... Todavia os seus decretos foram de curta duração. Os Bispos de diversas regiões o repudiaram como ilegítimo ou, segundo a expressão do Papa São Leão Magno, como “latrocínio de Éfeso”; pediam novo Concílio que de fato foi convocado após a morte de Teodósio II pela Imperatriz Pulquéria (irmã de Teodósio) e pelo general Marcião, que em 450 foi feito Imperador e se casou com Pulquéria.
O novo Concílio, desta vez legítimo, reuniu-se em Calcedônia, diante de Constantinopla, em 451; foi o mais concorrido da antiguidade, pois dele participaram mais de 600 membros, entre os quais três legados papais. A assembleia rejeitou o “latrocínio de Éfeso”; depôs Dióscoro e aclamou solenemente a Epístola Dogmática do Papa São Leão a Flaviano; esta serviu de base a uma confissão de fé, que rejeitava os extremos do Nestorianismo e do Monofisismo, propondo em Cristo uma só pessoa e duas naturezas:
“Ensinamos e professamos um Único e idêntico Cristo... em duas naturezas, não confusas e não transformadas, não divididas, não separadas, pois a união das naturezas não suprimiu as diferenças; antes, cada uma das naturezas conservou as suas propriedades e se uniu com a outra numa Única pessoa e numa Única hipóstase”.
Assim terminou a fase principal das disputas cristológicas: em Cristo não há duas naturezas e duas pessoas, pois isto destruiria a realidade da Encarnação e da obra redentora de Cristo; mas também não há uma só natureza e uma só pessoa, pois Cristo agiu como verdadeiro homem, sujeito à dor e à morte para transfigurar estas nossas realidades. Havia, pois, uma só pessoa (um só eu) divina, que, além de dispor da natureza divina desde toda a eternidade, assumiu a natureza humana no seio de Maria Virgem e viveu na terra agindo ora como Deus, ora como homem, mas sempre e somente com o seu eu divino.
O encerramento do Concílio de Calcedônia não significou a extinção do monofisismo. Além da atração que esta doutrina exercia sobre os fiéis (especialmente os monges), propondo-lhes a humanidade divinizada de Cristo como modelo, motivos políticos explicam essa persistência da heresia; com efeito, na Síria e no Egito certos cristãos viam no Monofisismo a expressão de suas tendências nacionalistas, opostas ao helenismo e à dominação bizantina. Por isto os monofisitas continuaram a lutar contra o Imperador, que havia exilado Dióscoro e Eutiques e ameaçado de punição os adeptos destes: ocuparam sedes episcopais; inclusive a de Jerusalém (ao menos temporariamente). No século VII a situação se agravou, pois os muçulmanos ocuparam a Palestina, a Síria e o Egito, impedindo a ação de Bizâncio em prol da ortodoxia nesses países. Em consequência, os monofisitas foram constituindo Igrejas nacionais: a armena, a síria, a mesopotâmica, a egípcia e a etíope, que subsistem até hoje com cerca de 10 milhões de fiéis.
No Egito, os monofisitas tomaram o nome de coptas, nome que guarda as três consoantes da palavra grega Aigyptos (g ou k, p, t ); são os antigos egípcios. Os ortodoxos se chamam melquitas (de melek, Imperador), pois guardam a doutrina ortodoxa patrocinada pelo Imperador em Calcedônia. Há coptas que se uniram a Roma em 1742, enquanto os outros permanecem monofisitas, mas professam quase o mesmo Credo que os católicos. Na Abissínia os monofisitas também são chamados coptas pois receberam forte influência do Egito. – Dentre os melquitas, grande parte aderiu ao cisma bizantino, separando-se de Roma em 1054; certos grupos, porém, estão hoje unidos à Igreja universal.
Na Síria e nos países vizinhos, os monofisitas foram chamados jacobitas, nome derivado de um dos seus primeiros chefes: Jacó Baradai (= o homem da coberta de cavalo, alusão às suas vestes maltrapilhas). Jacó, bispo de Edessa (541-578), trabalhou com zelo e êxito para consolidar as Comunidades monofisitas, às quais deu por cabeça o Patriarca Sérgio de Antioquia (544).
por Dom Estêvão Bettencourt, monge beneditino *
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