quarta-feira, 4 de maio de 2011

NO TOPO DO CALVÁRIO.


CORDEIRO DE DEUS (10)
(Ana Catarina Emmerich)

Chegamos ao topo do Calvário, mas não ao topo do sofrimento de Jesus. Sempre tenho me perguntando, o que aconteceria com Jesus se tivesse nascido em nossa época e hoje tivesse 33 anos. Sim, não existe hoje pena de morte por crucificação, entretanto, podem os leitores ter certeza, algum país do mundo, algum povo qualquer, cedo ou tarde acabaria por reinstituí-la, apenas para matar o Divino Cordeiro. Ou seja, podem ter toda a certeza de que, também hoje, o crucificaríamos mais uma vez.

As visões de Ana Catarina, entretanto, não só nos vem mostrar o grau da maldade humana, mas ainda mostrar um pouco da face horrenda do pecado. Porque de fato, não há linguagem humana para traduzir em palavras todos os efeitos e todos os sentimentos, desta suprema prova da bestialidade humana. É que, além do efeito externo que foi mostrado à esta mística singular, seria preciso traduzir em fortes verbos, todas as dores de Nosso Senhor Jesus Cristo. E isso é impossível. Entretanto, sem dúvida, as palavras que você lerá a seguir, produzem uma imagem de poderoso impacto, às quais, até as pedras, se tivessem almas, fariam chorar, e sofrer, junto com Jesus. Quanto a muitos homens, porque tem alma de pedra, estes jamais compreenderão algo sobre estes sofrimentos. Estes preferirão, com plena consciência de sua insensatez, buscar as trevas, rejeitando os méritos infinitos desta Paixão Redentora. Vamos aos textos.

Os carrascos despem Jesus para a crucificação e oferecem-Lhe vinagre

Dirigiram-se então quatro carrascos à masmorra subterrânea, situada a setenta passos ao norte; Jesus rezava todo o tempo a Deus, pedindo força e paciência e oferecendo-se mais uma vez em sacrifício expiatório, pelos pecados dos inimigos. Os carrascos arrancaram-nO para fora e, empurrando, batendo e insultando-O, levaram-nO para o suplício. O povo olhava e insultava; os soldados, frios e altivos, mantinham a ordem, dando-se ares de importância; os carrascos, cheios de raiva sanguinária, arrastaram Jesus brutalmente para o largo do suplício.(...)
Estavam no lugar do suplício dezoito carrascos; os seis que O tinham açoitado, quatro que O conduziram, dois que suspenderam a extremidade da cruz pelas cordas e seis que O deviam crucificar. Parte deles estavam ocupados com Jesus, outros com os ladrões, trabalhando e bebendo alternadamente. Eram homens baixos, robustos, sujos e meio nus, de feições estranhas, cabelo eriçado, barba rala: homens abomináveis e bestiais. Serviam a judeus e romanos por dinheiro.
O aspecto de tudo isso era mais terrível ainda, porque eu via o mal, em figuras visíveis para mim e invisíveis para os outros. Via grandes e hediondas figuras de demônios, agindo entre todos esses homens cruéis; era como se auxiliassem em tudo, aconselhando, passando as ferramentas; havia inúmeras aparições de figuras pequenas e medonhas, de sapos, serpentes e dragões de muitas garras, vi todas as espécies de insetos venenosos voarem em redor e escurecerem o ar.

Entravam na boca e no coração dos assistentes ou pousavam-lhes nos ombros; eram homens cujos corações estavam cheios de pensamentos de ódio e maldade ou que proferiam palavras de maldição e escárnio. Acima do Senhor, porém, vi várias vezes, durante a crucifixão, aparecerem grandes figuras angélicas, que choravam e aparições luminosas, nas quais distingui apenas pequenos rostos. Vi aparecer tais Anjos de compaixão e consolo também sobre a Santíssima Virgem e todos os bons, confortando e animando-os.
Os carrascos tiraram então o manto do Senhor, que lhe tinham antes enrolado em redor do peito; tiraram-Lhe o cinturão, com as cordas e o próprio cinto. Despiram-nO da longa veste de lã branca, passando-a pela cabeça, pois estava aberta no peito, ligada com correias. Depois lhe tiraram a longa faixa estreita, que caia do pescoço sobre os ombros e como não Lhe podiam tirar a túnica sem costuras, por causa da coroa de espinhos, arrancaram-Lhe a coroa da cabeça, reabrindo assim todas as feridas; arregaçando depois a túnica, puxaram-lha, com vis gracejos, pela cabeça ferida e sangrenta.

Lá estava o Filho do Homem, coberto de sangue, de contusões, de feridas fechadas ou outras ainda sangrentas, de pisaduras e manchas escuras. Estava apenas vestido ainda do curto escapulário de lã sobre o peito e costas e da faixa que cingia os rins. O escapulário de lã aderira às feridas secas e estava colado com sangue na nova ferida profunda, que o peso da cruz Lhe fizera no ombro e que Lhe causava um sofrimento indizível. Os carrascos arrancaram-lhe o escapulário impiedosamente do peito e assim ficou Jesus em sangrenta nudez, horrivelmente dilacerado e inchado, coberto de chagas. No ombro e nas costas se Lhe viam os ossos, através das feridas e a lã branca do escapulário ainda estava colada em algumas feridas e no sangue ressecado do peito.

Arrancaram-Lhe então a última faixa de pano da cintura e eis que ficou de todo nu e curvou-se, cheio de confusão e vergonha; e como estava a ponto de cair, sob as mãos dos carrascos, sentaram-nO sobre uma pedra, pondo-Lhe novamente a coroa de espinhos sobre a cabeça e ofereceram-Lhe a beber do outro vaso, que continha vinagre com fel; mas Jesus desviou a cabeça em silêncio.

Quando, porém, os carrascos O pegaram pelos braços, com que cobria a nudez e O levantaram, para estendê-Lo sobre a cruz, ouviram-se gritos de indignação e descontentamento e os lamentos dos amigos por essa vergonha e ignomínia. A Mãe Santíssima suplicou a Deus com ardor; já estava a ponto de tirar o véu da cabeça e, abrindo caminho por entre os carrascos, oferecê-lo ao Divino Filho. Mas Deus ouvira-lhe a oração; pois nesse momento um homem, vindo da porta e correndo todo o caminho com as vestes arregaçadas, atravessou o povo e precipitou-se ofegante entre os carrascos e entregou um pano a Jesus que, agradecendo-lhe, o aceitou e cobriu a nudez, cingindo-O à moda dos orientais, passando a parte mais comprida por entre as pernas e ligando-a com a outra em redor da cintura.

Esse benfeitor do Divino Redentor, enviado para atender à súplica da SS. Virgem, tinha na sua impetuosidade algo de imperioso; ameaçou os carrascos com o punho e disse apenas: “Tomem cuidado de não impedir este homem de cobrir-se”. Não falou com ninguém mais e retirou-se tão rapidamente como tinha vindo. Era Jonadab, sobrinho de São José, da região de Belém, filho daquele irmão a quem José, depois do nascimento de Jesus, empenhara o jumento. (...)

Sentia na alma uma viva indignação contra o ato ignominioso de Cam, que rira da nudez de Noé, embriagado pelo vinho e sentiu-se impelido a correr, como um novo Sem, para cobrir a nudez do lagareiro. Os crucificadores eram os Camitas e Jesus pisava as uvas no lagar, para o vinho novo, quando Jonadab veio cobri-Lo. Essa ação foi o cumprimento de uma figura simbólica do Antigo Testamento e foi mais tarde recompensada, como vi e hei de contar.

Jesus é pregado na cruz

Jesus, imagem viva da dor, foi estendido pelos carrascos sobre a cruz; Ele próprio se sentou sobre ela e eles brutalmente O deitaram de costas. Colocaram-Lhe a mão direita sobre o orifício do prego, no braço direito da cruz e aí lhe amarraram o braço. Um deles se ajoelhou sobre o santo peito, enquanto outro lhe segurava a mão, que se estava contraindo e um terceiro colocou o cravo grosso e comprido, com a ponta limada, sobre essa mão cheia de bênção e cravou-o nela, com violentas pancadas de um martelo de ferro. Doces, e claros gemidos ouviram-se da boca do Senhor; o sangue sagrado salpicou os braços dos carrascos; rasgaram-Lhe os tendões da mão, os quais foram arrastados, com o prego triangular, para dentro do estreito orifício. Contei as marteladas, mas esqueci, na minha dor, esse número. A Santíssima Virgem gemia baixinho e parecia estar sem sentidos exteriormente; Madalena estava desnorteada.
As verrumas eram grandes peças de ferro, da forma de um T; não havia nelas nada de madeira. Também os pesados martelos eram, como os cabos, de ferro e todos de uma peça inteiriça; tinham quase a forma dos martelos de pau que os marceneiros usam entre nós, trabalhando com formão.
Os cravos, cujo aspecto fizera tremer Jesus, eram de tal tamanho que, seguros pelo punho, excediam em baixo e em cima cerca de uma polegada. Tinham cabeça chata, da largura de uma moeda de cobre, com uma elevação cônica no meio. Tinham três gumes; na parte superior tinham a grossura de um polegar e na parte inferior a de um dedo pequeno; a ponta fora aguçada com uma lima; cravados na cruz, vi-lhes a ponta sair um pouco do outro lado dos braços da cruz.

Depois de terem pregado a mão direita de Nosso Senhor, viram os crucificadores que a mão esquerda, que tinham também amarrado ao braço da cruz, não chegava até o orifício do cravo, que tinham perfurado a duas polegadas distante das pontas dos dedos. Por isso ataram uma corda ao braço esquerdo do Salvador e, apoiando os pés sobre a cruz, puxaram a toda força, até que a mão chegou ao orifício do cravo. Jesus dava gemidos tocantes, pois deslocaram-Lhe inteiramente os braços das articulações; os ombros, violentamente distendidos, formavam grandes cavidades axilares, nos cotovelos se viam as junturas dos ossos.
O peito levantou-se-Lhe e as pernas encolheram-se sobre o corpo. Os carrascos ajoelharam-se sobre os braços e o peito, amarraram-lhe fortemente os braços e cravaram-Lhe então cruelmente o segundo prego na mão esquerda; jorrou alto o sangue e ouviram-se os agudos gemidos de Jesus, por entre as pancadas do pesado martelo. Os braços do Senhor estavam tão distendidos, que formavam uma linha reta e não cobriam mais os braços da cruz, que subiam em linha oblíqua; ficava um espaço livre entre esses e as axilas do Divino Mártir.(...)

Todo o corpo de nosso Salvador tinha-se contraído para o alto da cruz, pela violenta extensão dos braços e os joelhos tinham-se-Lhe dobrados. Os carrascos lançaram-se então sobre esses e, por meio de cordas, amarraram-nos ao tronco da cruz; mas pela posição errada dos orifícios dos cravos, os pés ficavam longe da peça de madeira que os devia suportar. Então começaram os carrascos a praguejar e insultar. Alguns julgavam que se deviam furar outros orifícios para os pregos das mãos; pois mudar o suporte dos pés era difícil.

Outros fizeram horrível troça de Jesus: “Ele não quer estender-se, disseram, mas nós Lhe ajudaremos”. Atando cordas à perna direita, puxaram-na com horrível violência, até o pé tocar no suporte e amarraram-na à cruz. Foi uma deslocação tão horrível, que se ouvia estalar o peito de Jesus, que gemia alto: “Ó meu Deus! Meu Deus!” Tinham-Lhe amarrado também o peito e os braços, para os pregos não rasgarem as mãos; o ventre encolheu-se-Lhe inteiramente, as costelas pareciam a ponto de destacar-se do esterno. Foi uma tortura horrorosa.

Amarraram depois o pé esquerdo com a mesma brutal violência, colocando-o sobre o pé direito e como os pés não repousavam com bastante firmeza sobre o suporte, para serem pregados juntos, perfuraram primeiro o peito do pé esquerdo com um prego mais fino e de cabeça mais chata do que os cravos, como se fura a sovela. Feito isso, tomaram o cravo mais comprido que o das mãos, o mais horrível de todos e, passando-o brutalmente pelo furo feito no pé esquerdo, atravessaram-lhe a marteladas o direito, cujos ossos estalavam, até o cravo entrar no orifício do suporte e, através desse, no tronco da cruz. Olhando de lado a cruz, vi como o prego atravessou os dois pés.

Essa tortura era a mais dolorosa de todas, por causa da distensão de todo o corpo. Contei 36 golpes de martelo, no meio dos gemidos claros e penetrantes do pobre Salvador; as vozes em redor, que proferiam insultos e maldições, pareciam-me sombrias e sinistras.
(...) Os gemidos que a dor arrancava de Jesus, misturavam-se com contínua oração; recitava trechos dos salmos e dos profetas, cujas predições nessa hora cumpria; em todo o caminho da cruz, até à morte, não cessava de rezar assim e de cumprir as profecias. Ouvi e rezei com Ele todas essas passagens e às vezes me lembro delas, quando rezo os salmos; mas fiquei tão acabrunhada com o martírio de meu Esposo celeste, que não sei mais juntá-las. - Durante esse horrível suplício, vi Anjos a chorar aparecerem acima de Jesus.
O comandante da guarda romana fizera pregar no alto da cruz a tábua, com o título que Pilatos escrevera. Os fariseus estavam indignados porque os romanos se riam alto do título “Rei dos judeus”. Por isso voltaram alguns fariseus à cidade, depois de ter tomado medida para uma outra inscrição, para pedir a Pilatos novamente outro título.

(...) Pela posição do sol era cerca de doze horas e um quarto, quando Jesus foi crucificado. No momento em que elevaram a cruz, ouviu-se do Templo o soar de muitas trombetas: Era a hora em que imolavam o cordeiro pascal.

Elevação da cruz

Depois de terem pregado Nosso Senhor à cruz, ataram cordas na parte superior da mesma, por meio de argolas, lançaram as cordas sobre o cavalete antes erigido no lado oposto e puxaram a cruz pelas cordas, de modo que a parte superior se lhe ergueu; alguns se dirigiram com paus munidos de ganchos, que fincaram no tronco e fizeram o pé da cruz entrar na cova. Quando o madeiro chegou à posição vertical, entrou na escavação com todo o peso e tocou no fundo com um terrível choque.
A cruz tremeu do abalo e Jesus soltou um grito de dor; pelo peso vertical desceu-lhe o corpo, as feridas alargaram-se-Lhe, o sangue corria mais abundantemente e os ossos deslocados entrechocaram-se. Os carrascos ainda sacudiram a cruz, para a por mais firme e fincaram cinco cunhas na cova, em redor da cruz: uma na frente, uma do lado direito, outra à esquerda e duas atrás, onde o madeiro estava um pouco arredondado.

(...) Quando, porém, o madeiro erguido com estrondo, entrou na respectiva cova, houve um momento de silêncio solene; todo o mundo parecia experimentar uma sensação nova, nunca até então sentida. O próprio inferno sentiu assustado o choque do lenho sobre a rocha e levantou-se contra ele, redobrando nos seus instrumentos humanos o seu furor e os insultos. Nas almas do purgatório e do limbo, porém, causou alegria e esperança: soava-lhes como o bater do triunfador às portas da Redenção. A santa Cruz estava pela primeira vez plantada no meio da terra, como aquela árvore da vida no Paraíso, e das chagas dilatadas do Cristo corriam quatro rios santos sobre a terra, para expiar a maldição, que pesava sobre ela e para fertilizar e a tornar um paraíso do novo Adão.

Quando nosso Salvador foi elevado na cruz e os gritos de insulto foram interrompidos por alguns minutos de silencioso espanto, ouvia-se do Templo o som de muitas trombetas, que anunciavam o começo da imolação do cordeiro pascal, do símbolo, interrompendo de um modo solene e significativo os gritos de furor e de dor, em redor do verdadeiro Cordeiro de Deus, imolado na cruz. Muitos corações endurecidos foram abalados e pensaram nas palavras do precursor, João Batista: “Eis aí o Cordeiro de Deus, que tomou sobre si os pecados do mundo”.

O lugar onde fora plantada a cruz (1), estava elevado cerca de dois pés acima do terreno em redor. Quando a cruz ainda se achava fora da cova, estavam os pés de Jesus à altura de um homem, mas depois de introduzida na respectiva escavação, podiam os amigos chegar aos pés do Mestre, para os abraçar e beijar. Havia um caminho para essa elevação. O rosto de Jesus estava virado para nordeste.

(1) Aqui cabe uma outra explicação interessante, consta no Livro Mística Cidade de Deus de Madre Maria D’Agreda. Este exato local do buraco da Cruz foi exatamente o mesmo onde, há quase dois mil anos antes, Abraão havia erguido o altar para oferecer Isaac, em sacrifício, por obediência a Deus, conforme está em Gênesis 22,9.

A crucificação dos ladrões

Durante a crucifixão do Senhor jaziam os ladrões, de costas, com as mãos ainda amarradas aos madeiros transversais das cruzes, que tinham sobre a nuca, ao lado do caminho, na encosta oriental do Calvário; estava com eles uma guarda. (...) O ladrão do lado esquerdo era o mais velho e grande criminoso, o sedutor e mestre do outro. Geralmente são chamados Dimas e Gesmas; esqueci-lhes os nomes verdadeiros; vou chamar, por isso, ao bom Dimas e ao mau Gesmas.

Ambos pertenciam à quadrilha de salteadores que, nas fronteiras do Egito, tinham dado agasalho à Sagrada Família, com o menino Jesus, na fuga para o Egito. Dimas fora o menino morfético que, a conselho de Maria, fora lavado pela mãe na água em que o menino Jesus se tinha banhado e que ficara curado no mesmo instante. A caridade e a proteção que a mãe proporcionara à Sagrada Família, fora recompensada naquela ocasião pela cura simbólica, que se realizou na cruz, quando foi limpo pelo sangue de Jesus. Dimas caíra em muitos crimes, mas não era perverso; não conhecia Jesus, a paciência do Senhor comoveu-o. (...)
Os braços dos condenados foram amarrados aos madeiros transversais; ataram-lhes os pulsos e cotovelos, como também os joelhos e os pés à cruz e apertaram-nos com tanta violência, torcendo as cordas por meio de paus, que os ossos estalavam e o sangue lhes esguichou dos músculos. Os infelizes soltaram gritos horríveis e Dimas, o bom ladrão, disse: “Se nos tivésseis tratado como a este Galileu, não teríeis mais o trabalho de puxar-nos aqui para cima”.

Os carrascos tiram à sorte as vestes de Jesus

Os carrascos juntaram as vestes de Jesus no lugar onde tinham jazido os ladrões e fizeram delas vários lotes, para tirar à sorte. O manto era mais largo em baixo do que em cima e tinha várias pregas; sobre o peito estava dobrado e formava assim bolsos. Rasgaram-no em várias tiras, como também a longa veste branca, aberta no peito, onde havia correias para atá-la e distribuíram-nas pelos lotes; assim fizeram também várias partes da faixa de pano que vestia em volta do pescoço, do cinto, do escapulário e do pano com que cobria o corpo; todas essas vestes estavam ensopadas do sangue de Nosso Senhor.

Como, porém, não chegaram a um acordo a respeito da túnica sem costuras, que, rasgada em partes, não serviria mais para nada, tomaram uma tabuleta com algarismos e dados em forma de favas, com marcas, que trouxeram consigo e jogando esses dados, tiraram à sorte a túnica. Viu-lhes, porém, um mensageiro de Nicodemos e José de Arimatéia, dizendo-lhe que ao pé do Calvário havia quem quisesse comprar as vestes de Jesus; juntaram então depressa todas as vestes e, correndo para baixo, venderam-nas; assim ficaram essas relíquias com os cristãos.

Jesus crucificado e os ladrões

Depois do violento choque da cruz, a cabeça de Jesus, coroada de espinhos, foi fortemente abalada e derramou grande abundância de sangue; também das chagas das mãos e dos pés correu o sangue em torrentes. Os carrascos subiram então pelas escadas e desataram as cordas com que tinham amarrado o santo corpo, para que o abalo não o fizesse cair. O sangue, cuja circulação fora quase impedida pela forte pressão das cordas e pela posição horizontal, afluiu-Lhe então de novo por todo o corpo e as chagas, renovando todas as dores e causando-Lhe um forte atordoamento. Jesus deixou cair a cabeça sobre o peito e ficou suspenso como morto, cerca de sete minutos.

Houve um momento de calma. Os carrascos estavam ocupados em repartir as vestes de Jesus; o som das trombetas perdia-se no ar, todos os assistentes estavam exaustos de raiva ou de dor. Olhei, cheia de susto e compaixão, para meu Jesus, meu Salvador, a Salvação do mundo; vi-O imóvel, desfalecido de dor, como morto e eu também estava à morte; pensava antes morrer do que viver. (...)
A cabeça de Jesus, com a horrível coroa, com o sangue que Lhe enchia os olhos, os cabelos, a barba e a boca ardente, meio entreaberta, tinha caído sobre o peito e também mais tarde só podia levantar-se com indizível tortura, por causa da larga coroa de espinhos.

O peito do Divino Mártir estava violentamente dilatado e alçado; os ombros, os cotovelos e os pulsos distendidos até saírem fora das articulações; o sangue corria-Lhe das largas feridas das mãos sobre os braços; o peito levantado deixava em baixo uma cavidade profunda; o ventre estava encolhido e diminuído; como os braços, estavam também as coxas e pernas horrivelmente deslocadas.
Os membros estavam tão horrivelmente distendidos e os músculos e a pele a tal ponto esticados, que se podiam contar os ossos. O sangue escorria-Lhe em redor do enorme prego que Lhe traspassava os pés sagrados, regando a árvore da cruz.

O santo corpo estava todo coberto de chagas, pisaduras vermelhas, manchas amarelas, pardas e roxas, inchaços e lugares escoriados.
As feridas reabriram-se, pela violenta distensão dos músculos e sangravam em vários lugares; o sangue que corria, era a princípio ainda vermelho, mas pouco a pouco se tornou pálido e aquoso e o santo corpo cada vez mais branco; por fim. tomou a cor de carne sem sangue.

Mas, apesar de toda essa cruel desfiguração, o corpo de Nosso Senhor na cruz tinha um aspecto extremamente nobre e comovedor; na verdade, o Filho de Deus, o Amor Eterno, que se sacrificou no tempo, permaneceu belo, puro e santo nesse corpo do Cordeiro pascal moribundo, esmagado pelo peso dos pecados de toda a humanidade.
(...) Agora, porém, o cabelo fora arrancado em grande parte, o resto colado com sangue; o corpo era uma só chaga, o peito estava como que despedaçado, o ventre escavado e encolhido; em vários lugares se viam as costelas, através da pele lacerada; todo o corpo estava de tal modo distendido e alongado, que não cobria mais inteiramente o tronco da cruz.

(...) Um dos ladrões rezava, o outro insultava Jesus que, olhando para baixo, disse algo a Dimas. O aspecto dos ladrões na cruz era horrendo, especialmente o do que ficava à esquerda, criminoso enraivecido, embriagado, de cuja boca só saiam insultos e maldições. Os corpos, pendentes da cruz, estavam horrivelmente deslocados, inchados e cruelmente amarrados. Os rostos tornaram-se-lhes roxos e pardos, os lábios escuros, tanto da bebida, como da pressão do sangue; os olhos inchados e vermelhos, quase a sair das órbitas. Soltavam gritos e uivos de dor, que lhes causavam as cordas; Gesmas praguejava e blasfemava. (...)

Primeira palavra de Jesus na cruz

Depois de crucificar os ladrões e de repartir as vestes do Senhor, juntaram os carrascos todos os instrumentos e ferramentas e, insultando e escarnecendo mais uma vez a Jesus, foram-se embora. Também os fariseus, que ainda estavam, montaram nos cavalos e passando diante de Jesus, dirigiram-lhe muitas palavras insultuosas e seguiram para a cidade. (...)
Quando Jesus ainda pendia desmaiado, disse Gesmas, o ladrão à esquerda: “O demônio abandonou-O”. Um soldado fincou então uma esponja embebida em vinagre sobre a ponta de uma vara e chegou-a aos lábios de Jesus, que pareceu chupar um pouco. As zombarias continuavam. O soldado disse: “Se és o rei dos judeus, salva-te”. Tudo isso se deu enquanto o destacamento anterior era substituído pelo de Abenadar.
Jesus levantou um pouco a cabeça e disse: “Meu Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem”; depois continuou a rezar em silêncio. Então gritou Gesmas: “Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós”. Escarneciam-nO sem cessar; mas Dimas, o ladrão da direita, ficou muito comovido, ouvindo Jesus rezar pelos inimigos. (...)
Dimas, o bom ladrão, obteve pela oração de Jesus uma Iluminação Interior, no momento em que a Santíssima Virgem se aproximou. Reconheceu em Jesus e em Maria as pessoas que o tinham curado, quando era criança e exclamou em voz forte e distinta: “O que? É possível que insulteis Àquele que reza por vós? Ele se cala, sofre com paciência, reza por vós e vós o cobris de escárnio? Ele é um profeta, é nosso rei, é o Filho de Deus”. A essa inesperada repreensão da boca de um miserável assassino, suspenso na cruz, deu-se um tumulto entre os escarnecedores; apanhando pedras, quiseram apedrejá-lo ali mesmo. Mas o centurião Abenadar não o permitiu; mandou dispersá-los e restabeleceu a ordem.

(...) Tudo que acabo de contar agora, se deu pela maior parte ao mesmo tempo ou sucessivamente, entre as doze horas e doze e meia, pelo sol, alguns minutos depois da exaltação da cruz. Mas daí a pouco mudaram rapidamente os sentimentos nos corações da maior parte dos assistentes; pois enquanto o bom ladrão ainda estava falando, eis que se deu na natureza um fenômeno extraordinário, que encheu de pavor todos os corações.

Eclipse do sol. Segunda e terceira palavra de Jesus na cruz

Até pelas 10 horas, quando Pilatos pronunciou a sentença, caíra várias vezes chuva de pedra; depois, até às 12 horas, o céu estava claro e havia sol; mas depois do meio dia, apareceu uma neblina vermelha, sombria, diante do sol. Pela sexta hora, porém, ou como vi pelo sol, mais ou menos às doze e meia, (a maneira dos judeus de contar as horas é diferente da nossa) houve um eclipse milagroso do sol.
Vi como isso se deu, mas infelizmente não pude guardá-lo na memória e não tenho palavras para o exprimir. A princípio fui transportada como para fora da terra; vi muitas divisões no firmamento e os caminhos dos astros, que se cruzavam de modo maravilhoso. Vi a lua do outro lado da terra; vi-a voar rapidamente ou dar um salto, como um globo de fogo; depois me achei novamente em Jerusalém e vi a lua aparecer sobre o monte das Oliveiras, cheia e pálida, - o sol estava velado pelo nevoeiro, - e ela se moveu rapidamente do oriente, para se colocar diante do sol.

No começo vi, no lado oriental do sol, uma lista escura, que tomou em pouco tempo a forma de uma montanha, cobrindo-o depois inteiramente. O disco do sol parecia cinzento escuro, rodeado de um círculo vermelho, como uma argola de ferro em brasa. O céu tornou-se escuro; as estrelas tinham um brilho vermelho.
Um pavor geral apoderou-se dos homens e dos animais, o gado fugiu mugindo, as aves procuravam um esconderijo e caiam em bandos sobre as colinas em redor do Calvário; podiam-se apanhá-las com as mãos. Os zombadores começaram a calar-se; os fariseus tentavam explicar tudo como fenômeno natural, mas não conseguiram acalmar o povo e eles mesmos ficaram interiormente apavorados. Todo o mundo olhava para o céu; muitos batiam no peito e, torcendo as mãos, exclamavam: “Que o seu sangue caia sobre os seus assassinos”. Muitos, de perto e de longe, caíram de joelhos, pedindo perdão a Jesus, que no meio das dores volvia os olhos para eles.

A escuridão aumentava, todos olhavam para o céu e o Calvário estava deserto; ali permaneciam apenas a Mãe de Jesus e os mais íntimos amigos; Dimas, que estivera mergulhado em profundo arrependimento, levantou com humilde esperança o rosto para o Salvador e disse: “Senhor, fazei-me entrar num lugar onde me possais salvar; lembrai-vos de mim, quando estiverdes no vosso reino”. Jesus respondeu-lhe: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso”.
A Mãe de Jesus, Madalena, Maria de Cléofas, Maria Helí e João estavam entre as cruzes dos ladrões, em redor da cruz de Jesus, olhando para Nosso Senhor. A Santíssima Virgem, em seu amor de mãe, suplicava interiormente a Jesus que a deixasse morrer com Ele. Então olhou o Senhor com inefável ternura para a Mãe querida e, volvendo os olhos para João, disse à Maria: “Mulher, eis aí o teu filho; será mais teu filho do que se tivesse nascido de ti”. Elogiou ainda João, dizendo: “Ele teve sempre uma fé sincera e nunca se escandalizou, a não ser quando a mãe quis que fosse elevado acima dos outros”. A João, porém, disse: “Eis aí tua Mãe!” João abraçou com muito respeito, como um filho piedoso, a Mãe de Jesus, que se tinha tornado também sua Mãe, sob a cruz do Redentor moribundo. (...)

Não sei se Jesus pronunciou alto todas essas palavras; percebi-as interiormente, quando, antes de morrer, entregou Maria Santíssima, como Mãe, ao Apóstolo querido e este, como filho, a sua Mãe. Em tais contemplações se percebem muitas coisas, que não foram escritas; é pouco apenas o que pode exprimir a língua humana. (...)

Estado da cidade e do Templo durante o eclipse do sol

Eram mais ou menos duas horas e meia, quando fui conduzida à cidade, para ver o que lá se passava. Encontrei-a cheia de pavor e consternação; as ruas em trevas, cobertas de nevoeiro; os homens erravam cá e lá, às apalpadelas; muitos estavam prostrados por terra, nos cantos, com a cabeça coberta, batendo no peito; outros olhavam para o céu ou estavam sobre os telhados, lamentando-se.
Os animais mugiam e escondiam-se, os pássaros voavam baixo e caiam. Vi que Pilatos fizera uma visita a Herodes e que estavam consternados, no mesmo terraço do qual Herodes, de manhã, assistira ao escárnio de que Jesus fora alvo. “Isto não é natural”, disseram, “excederam-se nos maus tratos infligidos ao Nazareno”. Vi-os depois irem juntos ao palácio de Pilatos, atravessando o fórum; ambos estavam muito assustados, indo a passos apressados e cercados de soldados.
Pilatos não ousou olhar para o lado do Gábata, o tribunal donde tinha pronunciado a sentença contra Jesus. O fórum estava deserto; aqui e acolá alguns homens voltavam apressadamente para casa, outros passavam chorando.
Juntavam-se também alguns grupos de povo nas praças públicas. Pilatos mandou chamar os anciãos do povo ao palácio e perguntou-lhes o que significavam aquelas trevas; disse-lhes que as tomava por um sinal de desgraça iminente; o Deus dos judeus parecia estar irado porque haviam exigido à força a morte do galileu, que certamente era profeta e rei dos judeus; enquanto ele, Pilatos, não tinha culpa, lavara, as mãos, etc.
Os judeus, porém, ficaram endurecidos, queriam explicar tudo como fenômeno comum e não se converteram. Converteu-se, contudo, muita gente, entre outros também todos os soldados que, na véspera, tinham caído por terra e se levantado, quando prenderam Jesus no monte das Oliveiras.

No entanto juntou-se uma multidão de povo diante do palácio de Pilatos e onde de manhã tinham gritado: “Crucifica-o! crucifica-o!”, gritavam agora: “Fora o juiz injusto! Que o sangue do Crucificado caia sobre os seus assassinos!”. Pilatos viu-se obrigado a rodear-se de guardas. Zodóc, que, de manhã, quando Jesus fora conduzido ao pretório, lhe proclamara alto a inocência, agitou-se e falou com tal energia diante do palácio, que Pilatos esteve a ponto de mandá-lo prender. Pilatos, o miserável desalmado, atribuiu toda a culpa aos judeus: disse que não tinha nada com isso, que Jesus era o rei, o profeta, o Santo dos judeus, a quem estes tinham levado à morte e nada tinha com Ele, nem lhe cabia culpa; os próprios judeus é que lhe tinham exigido a morte, etc”..

No Templo reinava extremo susto e terror. Estavam ocupados na imolação do cordeiro pascal, quando veio de repente a escuridão. Tudo estava em confusão e aqui e acolá se ouviam gritos angustiantes. Os príncipes dos sacerdotes fizeram tudo para conservar a calma e a ordem: fizeram acender todas as lâmpadas, apesar de ser meio dia, mas a confusão crescia cada vez mais.
Vi Anás preso de susto e terror; corria de um canto a outro, para se esconder. Quando tornei a sair da cidade, ouvi as grades das janelas das casas tremerem, sem haver tempestade. A escuridão crescia cada vez mais. Na parte exterior da cidade, ao noroeste, perto do muro, onde havia muitos jardins e sepulturas, desabaram algumas entradas de sepulcros, como se houvesse um tremor de terra.

Abandono de Jesus. A quarta palavra de Jesus na cruz

Sobre o Gólgota fizeram as trevas uma impressão terrível. A horrorosa fúria dos carrascos, os gritos e maldições na elevação da cruz, os uivos dos ladrões ao serem amarrados ao madeiro, os insultos dos fariseus a cavalo, o revezar dos soldados, a barulhenta partida dos carrascos embriagados, tudo isso diminuíra a princípio um pouco o efeito das trevas. (...)

Os fariseus, ocultando o terror, ainda procuravam explicar tudo pelas leis naturais, mas baixavam cada vez mais a voz e afinal quase não ousavam mais falar; de vez em quando ainda proferiam uma palavra insolente, mas soava um tanto forçada. O disco do sol estava meio escuro, como uma montanha ao luar; estava rodeado de um anel vermelho. As estrelas tinham um brilho rubro; os pássaros caiam sobre o Calvário e nas vinhas vizinhas entre os homens e deixavam-se pegar com a mão; os animais dos arredores mugiam e tremiam; os cavalos e jumentos dos fariseus apertavam-se uns de encontro aos outros, baixando as cabeças. O nevoeiro úmido envolvia tudo.
Em redor da cruz reinava silêncio; todos se tinham afastado, muitos fugiram para a cidade. O Salvador, naquele infinito martírio, mergulhado no mais profundo abandono, dirigindo-se ao Pai celestial, rezava pelos inimigos, impelido pelo amor. Rezava, como durante toda a Paixão, recitando versos de salmos que nEle se cumpriam. Vi figuras de Anjos em redor dEle.

Quando, porém, a escuridão cresceu e o terror pesava sobre todas as consciências e todo o povo estava em sombrio silêncio, ficou Jesus abandonado de todos e privado de toda a consolação. Sofria tudo quanto sofre um pobre homem, aflito e esmagado pelo absoluto abandono, sem consolação divina ou humana, quando a fé, a esperança e a caridade, privadas de iluminação e consolo, de visível assistência, ficam sozinhas no deserto da provação, vivendo de si mesmas, num infinito martírio. Tal sofrimento não se pode exprimir.
Nessa tortura moral, Jesus nos alcançou a força de resistirmos na extrema miséria do abandono, quando se rompem todos os laços e relações com a existência e a vida terrena com o mundo e a natureza em que vivemos, quando se desfazem também as perspectivas que esta vida em si nos abre, para outra existência; nessa provação venceremos, se unirmos nosso abandono com os merecimentos do abandono de Jesus na cruz. (...)

Jesus, inteiramente desamparado e abandonado, ofereceu-se, como faz o amor, a si mesmo por nós, fez até do abandono um riquíssimo tesouro; pois se ofereceu, com toda sua vida, seus trabalhos, amor e sofrimento e a dolorosa experiência de nossa ingratidão, ao Pai celestial, por nossa fraqueza e pobreza. Fez testamento diante de Deus e ofereceu todos os seus merecimentos à Igreja e aos pecadores. (...)
E testemunhou por um grito a dor do abandono, dando assim a todos os aflitos, que reconhecem a Deus por Pai, a liberdade de uma queixa cheia de confiança filial. Pelas três horas, Jesus exclamou em alta voz: “Eli, Eli, lama Sabachtani!”, o que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”

Quando esse grito de Nosso Senhor interrompeu o angustiante silêncio que reinava em redor da cruz, os escarnecedores se voltaram novamente para Ele e um deles disse: “Ele chama Elias”, e outro: “Vamos ver, se Elias vem ajudá-Lo a descer da cruz”. Quando, porém, Maria ouviu a voz do Filho, nada mais pôde retê-la; voltou para junto da cruz, seguida por João, Maria, filha de Cleofas, Madalena e Salomé.

Enquanto o povo tremia e gemia, vinha passando perto um grupo de cerca de trinta homens a cavalo, notáveis da Judéia e da região de Jope, que tinham vindo para a festa; e quando viram Jesus tão horrivelmente tratado e os sinais ameaçadores que se mostravam na natureza, exprimiram em alta voz o horror que sentiam, exclamando: “Ai! desta cidade abominável! Se nela não estivesse o Templo, devia-se destruí-la a fogo, por se ter tornado culpada de tanta iniqüidade”. (...)
Logo depois das três horas, o céu começou a clarear-se; a lua afastou-se gradualmente do sol, para o lado oposto àquele de que viera. O sol reapareceu, sem brilho, ainda vedado pelo nevoeiro vermelho e a lua ia descendo rapidamente para o outro lado, como se caísse. Pouco a pouco o sol readquiriu mais claridade e as estrelas desapareceram; contudo o dia ainda permanecia sombrio. A medida que reaparecia a luz, tornavam-se os inimigos escarnecedores mais arrogantes; foi nessa ocasião que disseram: “Ele chama Elias”. Abenadar, porém, impôs-lhes silêncio e manteve a ordem.

Quinta, Sexta e Sétima palavras de Jesus na cruz. Morte de Jesus

Quando a luz voltou, surgiu o corpo de Nosso Senhor, pálido, extenuado, como que inteiramente desfalecido, mais branco do que antes, por causa da grande perda de sangue. Jesus disse ainda, não sei se o percebi só interiormente ou se Ele o disse a meia voz: “Sou espremido como as uvas, que foram pisadas aqui pela primeira vez; devo dar todo o meu sangue, até sair água e o bagaço ficar branco; mas não se fará mais vinho neste lugar”.
Mais tarde vi, numa visão a respeito dessas palavras, que foi nesse lugar que Jafé pela primeira vez pisou as uvas, para fazer vinho, como hei de contar mais tarde.
Jesus consumia-se de sede e disse com a língua seca: “Tenho sede”. E como os amigos o olhassem com tristeza,disse-lhes: “Não me podíeis dar um gole de água?” Queria dizer que durante a escuridão ninguém os teria impedido. João, muito incomodado, respondeu: “Senhor, esquecemo-lo mesmo”. Jesus disse ainda algumas palavras, cujo sentido era: “Também os amigos mais íntimos deviam esquecer-se e não me dar a beber, para que se cumprisse a Escritura”. Mas esse esquecimento Lhe doeu amargamente. (...)
Nosso Senhor ainda disse algumas palavras de exortação ao povo; lembro-me apenas que disse: “Quando minha voz não se fizer mais ouvir, falará a boca dos mortos”; ao que alguns gritaram: “Ainda continua blasfemando”. Abenadar, porém, os mandou calar.

Tendo chegado a hora da agonia, Nosso Senhor lutou com a morte e um suor frio cobriu-lhe os membros. João estava sob a cruz e enxugou-Lhe os pés com o sudário. (...)
Então disse Jesus: “Tudo está consumado!” e, levantando a cabeça, exclamou em alta voz: “Meu Pai, em vossas mãos entrego o meu espírito”. Foi um grito doce e forte, que penetrou o Céu e a terra; depois inclinou a cabeça e expirou. Vi a alma de Jesus, em forma luminosa, entrar na terra, ao pé da cruz e descer ao Limbo. João e as santas mulheres prostraram-se com a face na terra.

O centurião Abenadar, árabe de nascimento, depois, como discípulo, batizado com o nome de Ctesifon, desde que oferecera o vinagre a Jesus, ficara a cavalo junto à elevação onde estavam erigidas as cruzes, de modo que o cavalo tinha as patas dianteiras mais no alto. Profundamente abalado, entregue à sérias reflexões, contemplava incessantemente o semblante de Nosso Senhor, coroado de espinhos. O cavalo baixara assustado a cabeça e Abenadar, cujo orgulho estava domado, não puxava mais as rédeas.

Nesse momento pronunciou o Senhor as últimas palavras, em voz alta e forte e morreu dando um grito, que penetrou o Céu, a terra e o inferno. A terra tremeu e o rochedo fendeu-se, deixando uma larga abertura entre a cruz do Senhor e a do ladrão à esquerda. O testemunho que Deus deu de seu Filho, abalou com susto e terror a natureza enlutada. Estava consumado! A alma de Nosso Senhor separou-se do corpo e ao grito de morte do Redentor moribundo estremeceram todos que O ouviram, junto com a terra que, tremendo, reconheceu o Salvador; os corações amigos, porém, foram transpassados pela espada da dor.
Foi então que a graça desceu à alma de Abenadar; estremeceu emocionado, cederam-lhe as paixões e o coração orgulhoso e duro, fendeu-se-lhe como o rochedo do Calvário. Lançou longe de si a lança, bateu no peito com força e exclamou alto, com a voz de um homem novo: “Louvado seja Deus, Todo-poderoso, o Deus de Abraão e Jacó! Este era um homem justo; em verdade, Ele é o Filho de Deus!”. E muitos dos soldados, tocados pela palavra do centurião, fizeram o mesmo.

(...) Grande espanto apoderou-se dos assistentes, ante o grito de morte de Jesus, quando a terra tremeu e o rochedo do Calvário se fendeu. - Esse terror fez-se sentir em toda a natureza; pois rasgou-se o véu do Templo, muitos mortos saíram das sepulturas, desabaram algumas paredes do Templo, ruíram muitos edifícios e desmoronaram montes em muitas regiões da terra.
(...) Quando Jesus, cheio de amor, Senhor de toda a vida, pagou pelos pecadores a dolorosa dívida da morte; quando entregou, como homem, a alma a Deus seu Pai e abandonou o corpo, tomou esse santo vaso esmagado a fria e pálida cor da morte; o corpo tremeu-Lhe convulsivamente nas últimas dores e tornou-se lívido e os vestígios do sangue derramado das chagas ficaram mais escuros e distintos. O rosto alongou-se, as faces encolheram-se, o nariz ficou mais delgado e pontiagudo, o queixo caiu, os olhos, cheios de sangue e fechados, abriram-se, meio envidraçados.

O Senhor levantou pela última vez e por poucos momentos a cabeça, coroada de espinhos e deixou-a depois cair sobre o peito, sob o peso dos sofrimentos. Os lábios lívidos e contraídos entreabriram-se, deixando ver a língua ensangüentada. As mãos, antes fechadas sobre a cabeça dos cravos, abriram-se; estenderam-se os braços, as costas entesaram-se ao longo da cruz e todo o peso do santo corpo desceu sobre os pés. Os joelhos curvaram-se, tornando para um lado e os pés viraram-se um pouco em redor do prego que os trespassara. (...)

A luz do sol ainda era sombria e nebulosa. O tremor de terra foi acompanhado de calor sufocante; mas seguiu-se-lhe depois um frio sensível. O corpo de Nosso Senhor morto, na cruz, causava um sentimento de respeito e estranha comoção. Os ladrões pendiam em horríveis contorções, como embriagados. Ambos estavam no fim calados; Dimas rezava.
Era pouco depois das três horas, quando Jesus expirou. Passado o primeiro terror causado pelo tremor de terra, alguns dos fariseus recobraram a anterior arrogância. Aproximando-se da fenda no rochedo do Calvário, jogaram-lhe pedras e atando várias cordas, amarraram uma pedra, fizeram-na entrar na fenda, para medir-lhe a profundidade; quando, porém, não tocaram no fundo, tornaram-se mais pensativos. (...)

O tremor de terra, aparição de mortos em Jerusalém

Quando Jesus, com um grito forte, entregou o espírito nas mãos do Pai celestial, a alma do Salvador, qual forma luminosa, acompanhada de brilhante cortejo de Anjos, entrou na terra, ao pé da cruz; entre os Anjos estava também S. Gabriel. Vi esses Anjos expulsarem grande número de espíritos maus da terra para o abismo. Jesus, porém, mandou muitas almas do limbo para que, retomando os corpos, assustassem os impenitentes, os exortassem a converter-se e dessem testemunho dEle.
O tremor de terra, na hora da morte do Redentor, quando o rochedo do Calvário se fendeu, causou muitos desmoronamentos e desabamentos em todo o mundo, especialmente na Palestina e em Jerusalém. Mal o povo na cidade e no Templo sossegara um pouco, ao desaparecer a escuridão, eis que os abalos do solo e o estrondo do desabamento dos edifícios, em muitos lugares, espalharam um terror geral e ainda maior do que dantes. O pavor chegou ao extremo, quando apareceram os mortos ressuscitados, andando pelas ruas e admoestando com voz rouca o povo, que fugia, chorando, em todas as direções.

No Templo, os príncipes dos sacerdotes acabavam justamente de restabelecer a ordem e recomeçar os sacrifícios, suspensos pelo terror das trevas e triunfavam com a volta da luz, quando de repente tremeu o solo, ouvindo-se um estrondo de muros a desabar, acompanhado de ruído sibilante do véu do Templo, que se rasgou de alto a baixo, causando um momento de mudo terror na imensa multidão, interrompido em diversos lugares por gritos e lamentos. (...)
Pode-se fazer uma idéia da desordem e confusão que reinava, imaginando um grande formigueiro, de tranqüilo movimento, em que se jogam pedras ou se remexe com um pau; enquanto reina confusão num ponto, em outro ainda continua o movimento e a atividade toda regular e mesmo no lugar onde houve desarranjo, logo começa a restabelecer-se a ordem.

O sumo sacerdote Caifás e seu partido, com audácia desesperada, não perderam a cabeça. Como um hábil governador de uma cidade revoltada, afastou a confusão, ameaçando aqui, exortando ali, desunindo os partidos, atraindo outros com muitas promessas. Devido ao seu endurecimento diabólico e aparente calma, conseguiu impedir uma perigosa perturbação geral, fazendo com que a massa do povo não visse nesses acontecimentos assustadores um testemunho da morte inocente de Jesus.
A guarnição do forte Antônia também fez tudo para conservar a ordem; deste modo era o terror e a confusão grande, é verdade, mas cessou a celebração da festa, sem que houvesse tumulto. O povo dispersou-se, ficando ainda com um oculto pavor, que também foi pouco a pouco abafado pela ação dos fariseus.

Essa era a situação geral da cidade; seguem-se agora alguns incidentes particulares, de que ainda me lembro: As duas grandes colunas situadas à entrada do Santuário do Templo e entre as quais estava suspensa a magnífica cortina, afastaram-se no alto, a da esquerda para o sul, a da direita para o norte; a verga que suportavam, abaixou-se e a grande cortina partiu-se em duas, de alto a baixo, com um som sibilante e, caindo as duas partes para os lados, abriu-se o santuário.
Essa cortina era vermelha, azul, branca e amarela; trazia o desenho de muitas constelações dos astros e também figuras, como, por exemplo, a da serpente de bronze. O santuário estava aberto a todos os olhares. Perto da cela onde Simeão costumava rezar, no muro ao norte, ao lado do santuário, tombou uma pedra grande e a abóbada da cela desabou; em várias salas se afundou o solo, umbrais deslocaram-se e colunas cederam para os lados.

No santuário apareceu, proferindo palavras de ameaça, o Sumo Sacerdote Zacarias, que fora assassinado entre o Templo e o altar; falou também da morte do outro Zacarias e de João Batista, como em geral da morte dos profetas. Ele saiu pela abertura que ficara, onde caiu a pedra na cela de Simeão e falou aos sacerdotes que estavam no Santo.
Dois filhos do piedoso Sumo Sacerdote Simão o Justo, bisavô do velho sacerdote Simeão que profetizara na apresentação de Jesus no Templo, apareceram como espíritos grandes, perto da grande cátedra (cadeira dos doutores), proferindo palavras severas sobre a morte dos profetas e sobre o sacrifício que ia cessar; exortaram a todos a que seguissem a doutrina de Jesus crucificado.

Perto do altar apareceu o profeta Jeremias, proclamando em voz ameaçadora o fim do sacrifício antigo e o começo do novo. Essas aparições e palavras, em lugares onde só Caifás e os sacerdotes as ouviram, foram negadas ou ocultadas e foi proibido falar nisso, sob pena de grande excomunhão. Mas ouviu-se ainda um grande ruído; abriram-se as portas do santo e uma voz gritou: “Saiamos daqui!”. Vi então Anjos, que se retiraram do Templo. O altar do incenso tremeu e caiu um dos vasos de incenso; o armário que continha os rolos da Escritura tombou e os rolos caíram fora, em desordem; a confusão aumentou, não sabiam mais que hora do dia era.

Nicodemos, José de Arimatéia e muitos outros abandonaram o Templo e foram-se embora. Jaziam corpos de mortos, em vários lugares; outros mortos ressuscitados andavam no meio do povo, exortando-o com palavras severas; à voz dos Anjos que se afastaram do Templo, também eles voltaram às sepulturas. A grande cátedra, no átrio do Templo, caiu. Vários dos 32 fariseus que tinham ido ao Calvário, mais tarde voltaram, durante essa confusão e, como se tinham convertido ao pé da cruz, ficaram ainda mais comovidos com esses sinais, de modo que censuraram com grande energia a Anás e Caifás, retirando-se depois do Templo.

Anás, o verdadeiro chefe dos inimigos de Jesus, que desde muito tempo dirigira todas as intrigas secretas contra o Salvador e os discípulos e que também instruíra os acusadores, estava quase doido de terror; fugia de um canto para outro das salas secretas do Templo; vi-o gritando e torcendo-se em convulsões; levaram-no a um quarto secreto, rodeado de alguns dos partidários. Caifás deu-lhe uma vez um forte abraço, para o reanimar; mas em vão; a aparição dos mortos tinha-o levado ao desespero.
Caifás, apesar de estar também cheio de pavor, estava de tal modo possesso do demônio do orgulho e da obstinação, que não deixava perceber nada do susto que sentia. Cheio de raiva e orgulho, ocultava o medo e mostrava uma testa de bronze aos sinais ameaçadores da cólera divina. (...)

O túmulo de Zacarias, sob o muro do Templo, desabara, arrastando consigo as pedras do muro; Zacarias saiu do túmulo, mas não voltou mais para lá, não sei onde depositou de novo os restos mortais. Os filhos ressuscitados de Simeão o Justo, depositaram os corpos novamente, no túmulo, ao pé do monte do Templo, na hora em que o corpo de Jesus foi preparado para a sepultura.
Enquanto tudo isso se passava no Templo, reinava o mesmo espanto em muitas partes de Jerusalém. Logo depois das três horas, ruíram muitos túmulos, particularmente na região dos jardins, ao noroeste, dentro da cidade. Vi lá, nos túmulos, mortos ainda envoltos em panos; em outros jaziam esqueletos, com farrapos apodrecidos, de muitos saia um mau cheiro insuportável.

No tribunal de Caifás desabaram as escadas em que Jesus fora escarnecido, também parte do fogão do átrio, onde Pedro começara a negar Jesus. A destruição era tal, que era preciso procurar outra entrada. Ali apareceu o corpo do Sumo Sacerdote Simão o Justo, a cuja descendência pertencia Simeão, que proferiu a profecia, na apresentação do Menino Jesus no Templo. Esse falou algumas palavras ameaçadoras, a respeito do julgamento injusto que se fizera ali. (...)
No palácio de Pilatos se fendeu a pedra e afundou-se o solo onde Jesus fora apresentado ao povo por Pilatos. Todo o edifício tremeu e vacilou; no pátio do tribunal vizinho se afundou todo o lugar onde estavam sepultados os corpos das inocentes crianças que Herodes mandara assassinar. Em vários outros lugares da cidade se fenderam muros, caíram paredes; mas nenhum edifício foi totalmente destruído.

Pilatos, supersticioso e confuso, estava preso de terror e incapaz de desempenhar o cargo; o terremoto abalou-lhe o palácio, o solo tremia-lhe debaixo dos pés, fugia de uma sala para outra. Os mortos mostravam-se-lhe no átrio do palácio, lançando-lhe em rosto o julgamento iníquo e a sentença contraditória. Julgando que fossem os deuses do profeta Jesus, encerrou-se num quarto secreto do palácio, onde ofereceu incenso e sacrifícios aos deuses pagãos, fazendo promessas, para que os ídolos impedissem os deuses do Galileu de fazer-lhe mal. Herodes estava no palácio, desvairado de pavor e mandara fechar todas as portas.(...)(1)

(1) Aqui suprimimos um capítulo inteiro, onde dava conta das imensas destruições que houve em muitos lugares da terra, especialmente as regiões próximas a Jerusalém e mais em alguns lugares onde, na sua vida pública, Jesus fora mal recebido. Prédios desabaram, sinagogas também, o rio Jordão e o Lago de Genesaré tiveram modificações drásticas. Esta destruição por toda a parte foi a principal responsável pelo fato de os perseguidores de Jesus não haverem logo iniciado a caça aos seguidores dele, pois meditavam estas coisas. A perseguição só reiniciou após o pentecostes

José de Arimatéia pede a Pilatos o corpo de Jesus

Mal se tinha restabelecido um pouco a calma em Jerusalém, depois de tantos acontecimentos assustadores, quando Pilatos, tão consternado, foi importunado de todos os lados com narrativas do que sucedera. Também o Supremo Conselho lhe mandou, como já resolvera de manhã, um requerimento, pedindo que mandasse esmagar as pernas dos sacrificados, para que morressem mais depressa e tirá-los depois da cruz, para que não ficassem pendurados durante o Sábado. Pilatos enviou, pois, os carrascos para esse fim ao Calvário.
Pouco depois vi José de Arimatéia entrar no palácio de Pilatos. Já recebera a notícia da morte de Jesus e resolvera, com Nicodemos, sepultar o corpo do Senhor no sepulcro novo que escavara na rocha do seu jardim, não longe do monte Calvário. (...)Nicodemos também foi a diversos lugares, para comprar panos e especiarias para o embalsamamento do corpo; depois esperou a volta de José.
Esse encontrou Pilatos muito assustado e incomodado; pediu-lhe francamente e sem hesitação licença para tirar da cruz o corpo de Jesus, rei dos judeus, porque queria sepultá-Lo no seu próprio sepulcro.(...)
Exteriormente parecia Pilatos admirar-se apenas que tivesse morrido tão cedo, porque os crucificados em geral viviam mais tempo; mas interiormente estava assustado e amedrontado, pela coincidência desses sinais com a morte de Jesus. Queria talvez disfarçar um pouco a crueldade com que procedera; pois despachou imediatamente uma ordem escrita, entregando a José de Arimatéia o corpo do rei dos judeus, com a licença de tirá-Lo da cruz e sepultá-Lo.

Estava satisfeito de poder assim pregar uma peça aos príncipes dos sacerdotes, que teriam visto com prazer Jesus ser enterrado ignominiosamente com os dois ladrões. Mandou também alguém ao Calvário, para fazer executar essa ordem. Creio que foi o mesmo Abenadar; pois que o vi tomar parte no descimento de Jesus da cruz.
Saindo do palácio de Pilatos, foi José de Arimatéia encontrar-se com Nicodemos, que o estava esperando na casa de uma boa mulher, situada numa rua larga, próxima do beco em que Jesus, logo no começo do doloroso caminho da cruz, fora tão vilmente ultrajado. Nicodemos tinha comprado muitas ervas e especiarias para o embalsamamento, em parte da mesma mulher, que vendia ervas aromáticas, em parte em outros negócios, onde a própria mulher fora comprar as especiarias que não tinha, como também vários panos e faixas, necessárias para o embalsamamento. De todos esses objetos fez-lhe um pacote que pudesse comodamente transportar. José de Arimatéia também foi ainda a outro lugar, para comprar um pano grande de algodão, muito bonito e fino, com seis côvados de comprimento e vários côvados de largura. (...)

O coração de Jesus trespassado por uma lança. Esmagamento das pernas e morte dos ladrões

Durante todo esse tempo reinava silêncio e tristeza sobre o Gólgota. O povo assustado dispersara-se, indo esconder-se em casa. A Mãe de Jesus e João, Madalena, Maria, filha de Cleofas e Salomé estavam, em pé ou sentados, em frente à cruz, com as cabeças veladas, chorando. Alguns soldados estavam sentados no barranco, com as lanças fincadas no chão. Cássio, a cavalo, ia de um lado para outro. Os soldados conversavam do alto do Calvário com outros que estavam mais em baixo. O céu estava nublado e toda a natureza parecia abatida e de luto. Vieram então seis carrascos, subindo o monte Calvário; trouxeram escadas, pás e cordas, como também pesadas maças de ferro de três gumes, para esmagar as pernas dos executados.
(...) Subiram então pelas escadas nas cruzes dos ladrões; dois esmagaram, com as maças cortantes, os ossos dos braços acima e abaixo do cotovelo, um terceiro fez o mesmo acima e nas canelas, abaixo dos joelhos. Gesmas soltou gritos horríveis. Esmagaram-lhe em três golpes o peito, para acabar de matá-lo. Dimas gemeu com a tortura e morreu; foi o primeiro mortal que tornou a ver o Redentor. Os carrascos desataram então as cordas, deixando cair os corpos no chão e arrastando-os depois com cordas, para o vale entre o Calvário e o muro da cidade, onde os enterraram.

Os carrascos ainda pareciam duvidar da morte do Senhor e os parentes de Jesus estavam ainda mais assustados, pela brutalidade com que haviam procedido e com medo de que pudessem voltar. Mas Cássio, oficial subalterno, homem de 25 anos, ativo e um pouco precipitado, cuja vista curta e cujos olhos tortos, juntamente com os ares de importância que se dava, provocavam freqüentemente a troça dos subordinados, recebeu de repente uma inspiração sobrenatural.
A crueldade e vil brutalidade dos carrascos, o medo das santas mulheres e um impulso repentino, causado por uma graça divina, fizeram-no cumprir uma profecia. Ajustando a lança, que trazia em geral dobrada e encurtada, firmou-lhe a ponta e virando o cavalo, esporeou-o para subir o cume, onde estava a cruz e onde o cavalo quase não podia virar; vi como o afastou da fenda do rochedo. Parando assim entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus, ao lado direito do corpo de Nosso Salvador, tomou a lança com ambas as mãos e introduziu-a com tal força no lado direito do Santo Corpo, através das entranhas e do coração, que a ponta da lança saiu um pouco do lado esquerdo, abrindo uma pequena ferida. Quando tirou depois com força a santa lança, brotou da larga chaga do lado direito do Redentor um rio de sangue e água que, caindo, banhou o rosto de Cássio, como uma onda de salvação e graça. Ele saltou do cavalo e, prostrando-se de joelhos, bateu no peito e confessou a fé em Jesus em alta voz, diante de todos os presentes.
A Santíssima Virgem e os outros, cujos olhos estavam sempre fixos no Salvador, viram a súbita ação do oficial com grande angústia e acompanharam o golpe da lança com um grito de dor, precipitando-se para a cruz. Maria caiu nos braços das amigas, como se a lança lhe tivesse transpassado o próprio coração e sentisse o ferro cortante atravessá-lo de lado a lado.

Cássio, caindo de joelhos, louvava a Deus, pois, iluminado pela graça, ficou crendo e também os olhos do corpo se lhe curaram e desde então via tudo claro e distinto. Mas ao mesmo tempo ficaram todos profundamente comovidos à vista do sangue que, misturado com água, se juntara, espumante, numa cavidade da rocha, ao pé da cruz; Cássio, Maria Santíssima, as santas mulheres e João apanharam o sangue e a água em tigelas, guardando-o depois em frascos e enxugando-o da rocha com panos.
Cássio estava como que transformado; tinha recobrado a vista perfeita e profundamente comovido, curvava-se diante de Deus, com coração humilde. Os soldados presentes, tocados pelo milagre que se operara nele, prostraram-se de joelhos, batiam no peito e louvavam a Jesus. O sangue e a água corriam abundantemente da larga chaga do lado direito do Salvador, sobre a rocha limpa, onde se juntaram; apanharam-no, com indizível comoção e as lágrimas de Maria e Madalena misturavam-se-lhe. Os carrascos, que nesse ínterim tinham recebido a ordem de Pilatos de não tocar no corpo de Jesus, que doara a José de Arimatéia, para o sepultar, não voltaram mais.(...)

Tudo Isso se passou em redor da cruz de Jesus, logo depois das quatro horas, quando José de Arimatéia e Nicodemos estavam ocupados em juntar as coisas necessárias para o enterro. Os criados de José de Arimatéia foram, enviados para limpar o sepulcro e anunciaram aos amigos de Jesus no Gólgota que José recebera de Pilatos licença para tirar da cruz o corpo do Mestre e sepultá-lo no seu sepulcro; então voltou João, com as santas mulheres, à cidade, dirigindo-se ao monte Sião, para que a Santíssima Virgem pudesse tomar algum alimento e também para buscar alguns objetos para o enterro. (...)

Enfim, se não tivesse havido um Calvário e uma Cruz, não haveria um caminho de salvação. Jesus realizou-a sozinho, pois o profeta diz claramente: No lagar pisei eu, sozinho, e ninguém dentre os povos me auxiliou (Is 63,3). Jesus, também, quase ficou sozinho na Cruz, pois quase todos os seus o abandonaram. Você já se perguntou, leitor, onde é que estaria naquele momento? Teria fugido?

Faltam ainda, então, dois capítulos de vitória. Primeiro a Ressurreição! Depois a também, a Ascensão de Jesus aos céus. Um pouquinho de paciência e chegamos lá.

Feliz com o triunfo de Cristo!

 
Aarão!


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