terça-feira, 3 de abril de 2012

APOCALIPSE: INTERPRETAÇÃO - PARTE 3



4. Dois Textos em Particular
Examinaremos mais precisamente Ap 12, 1-17 e 20, 1-10.

4.1. Ap 12, 1-17

Este capítulo sintetiza toda a história da Igreja sob a forma de luta entre a Mulher e o Dragão, figuras paralelas às da Mulher e da serpente em Gn 3, 15.

Em poucas palavras, este trecho apresenta uma Mulher gloriosa e dolorida ao mesmo tempo. Está para dar à luz um filho que um monstruoso Dragão espreita para abocanhá-lo. A Mulher gera seu Filho, que tem os traços do Messias; Ele escapa ao Dragão e é arrebatado aos céus. Dá-se então uma batalha entre Miguel com seus anjos e o Dragão; este acaba sendo projetado do céu sobre a terra, onde procura abater a Mulher-Mãe, perseguindo-a de diversos modos. Todavia o próprio Deus se encarrega de defender a Mulher no deserto durante os três anos e meio ou os 42 meses ou os 1260 dias de sua existência. Vendo que nada pode contra essa figura grandiosa, a Serpente antiga atira-se contra os demais filhos da Mulher, tentando perdê-los.

Que significa este capítulo?

Está claro que o Dragão representa Satanás, aquele que é "mentiroso e homicida desde o início" (cf. Jo 8, 44).

Quanto à Mulher, não pode ser identificada com algum personagem individual, mas é a Mulher que perpassa toda a história da salvação. Com efeito; já à primeira Eva (= Mãe dos vivos ou da vida) Deus prometeu um nobre papel na obra da Redenção. A primeira Eva (= Mãe da Vida) se prolongou na Filha de Sion (o povo de Israel, do qual nasceu o Messias); a filha de Sion culminou na Segunda Eva, Maria SS., que teve a graça de ser pessoalmente a Mãe de Redentor; por isto em Ap 12, 1s a Mulher é gloriosa como Maria, mas dolorida como o povo de Israel. A maternidade de Maria continua na da Santa Mãe Igreja; esta tem a garantia da incolumidade (cf. Mt 16, 18) que Cristo lhe prometeu, mas os filhos que ela gera nas águas do Batismo estão sujeitas a ser atingidos pela sanha do Dragão, que age neste mundo como um Adversário já vencido, mas cioso de arrebanhar os incautos que lhe dêem ouvidos (S. Agostinho diz que o demônio é um cão acorrentado; pode ladrar, fazendo muito barulho, mas só morde a quem se lhe chegue perto). Por último, a Mulher-Mãe, que exerce sua maternidade por toda a história da salvação, se consumará na Jerusalém celeste, a Esposa do Cordeiro (Ap 21s).

A batalha entre Miguel e o Dragão não corresponde à queda original dos anjos, mas significa plasticamente a derrota de Satanás, vencido quando Cristo venceu a morte por sua Ressurreição e Ascensão. Deus lhe permite tentar os homens nestes séculos da história da Igreja, com um fim providencial, ou seja, a fim de provar e consolidar a fidelidade dos homens. Satanás só age por permissão de Deus.

A duração de 1260 dias ou 31/2 anos que a Mulher passa no deserto, não designa cronologia, mas tem valor simbólico.

Com efeito, 31/2 anos, 42 meses e 1260 dias são termos equivalentes entre si; correspondem à metade de 7 anos. Ora, sendo 7 o símbolo da totalidade, da perfeição e, por conseguinte, da bonança, a metade de 7 vem a ser o símbolo do inacabamento e da dor. Portanto, 31/2 anos (e as expressões equivalentes em meses e dias) no Apocalipse designam toda a história da Igreja na medida em que é algo de ainda não rematado ou na medida em que é luta penosa entre a primeira e a Segunda vinda de Cristo, no deserto deste mundo.

4.2. Ap 20,1-10

É este o trecho que fala de aparente reino milenar de Cristo sobre a terra, estando Satanás acorrentado. O milênio seria inaugurado pela ressurreição primeira, reservada aos justos apenas, aos quais seria dado viver em paz e bonança com Cristo. Terminado o milênio, Satanás seria solto para realizar a sua invectiva final, que terminaria com a sua perda definitiva. Dar-se-iam então a ressurreição Segunda, para os demais homens, e o juízo final.

A teoria milenarista, entendida ao pé da letra, foi professada por antigos escritores da Igreja (S. Justino + 165, S. Ireneu + 202, Tertuliano + após 220, Lactâncio + após 317 ...) Todavia S. Agostinho (+430) propôs novo modo de entender o texto - o que excluiu definitivamente a interpretação literal; o S. Doutor baseou-se em Jo 5,25-29, onde se lê

"Em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra... passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo, que vem a hora, e já veio, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem viverão... Não vos admireis disto, pois vem a hora em que ouvirão sua voz todos os que estão nos sepulcros. Os que praticaram o bem sairão para a ressurreição da vida; os que, porém, praticaram o mal, sairão para a ressurreição do juízo".

Nesse trecho, o Senhor distingue duas ressurreições: uma, que se dá "agora" ("e já veio"), no tempo presente, quando ressoa a pregação da Boa Nova; é espiritual, devida ao batismo; eqüivale à passagem do pecado original para a vida da graça santificante. A outra é simplesmente futura e se dará no fim dos tempos, quando os corpos forem beneficiados pela vida nova agora latente nas almas.

Por conseguinte no Apocalipse a ressurreição primeira é a passagem da morte para a vida que se dá no Batismo de cada cristão, quando este começa a viver a vida sobrenatural ou a vida do céu em meio às lutas da terra. A ressurreição Segunda é, sim, a ressurreição dos corpos, que se dará quando Cristo vier em seu glória para julgar todos os homens e pôr termo definitivo à história.

Mil anos, em Ap 20, 1-10, designam a história da Igreja na medida em que é luta vitoriosa ("mil" é um símbolo de plenitude, de perfeição; "mil felicidades", na linguagem popular, são "todas as felicidades"). Pela Redenção na Cruz, Cristo venceu o príncipe deste mundo (cf. Jo 12, 31), tornando-o semelhante a um cão acorrentado, que muito pode ladrar, mas que só pode morder a quem voluntariamente se lhe chegue perto (S. Agostinho). É justamente esta a situação do Maligno na época que vai da primeira à Segunda vinda de Cristo ou no decurso da história do Cristianismo; por isto os três anos e meio que simbolizam o aspecto doloroso desses séculos (já estamos no vigésimo século), são equivalentes a mil anos, caso queiramos deter nossa atenção sobre o aspecto feliz, transcendente ou celeste da vida do cristão que peregrina sobre a terra; a graça santificante é a semente da glória do céu.
Assim se vê quanto seria contrário à mentalidade do autor sagrado tomar ao pé da letra os mil anos do c. 20 e admitir um reino milenário de Cristo visível na terra após o currículo da história atual.

5. Conclusão

O sistema da recapitulação assim proposto merece francamente ser preferido aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo do auto sagrado São João; este, também no seu Evangelho, recorre às repetições ou ao estilo de recapitulação em espiral.

Contudo ninguém negará as alusões do Apocalipse a personagens da história antiga (Nero, a invasão dos bárbaros, Roma, Babilônia...). Mediante essas referências, São João não tinha em vista deter a atenção do seu leitor sobre episódios da antigüidade, mas apenas mencionar tipos característicos de mentalidades humanas ou de situações de vida que acompanham toda a história da Igreja: assim Nero vem a ser o tipo dos soberanos políticos que persigam a Igreja em qualquer época (há muitas reproduções de Nero através da história). Por isto também o número 666 da Besta do Apocalipse, adversária dos cristãos, eqüivale (segundo a interpretação mais provável) à expressão Kaisar Neron (Imperador Nero).¹

Roma e Babilônia, por sua vez, designam de maneira típica o poderio deste mundo que, com seus mil atrativos de esplendor e prazer, procura seduzir os discípulos de Cristo para o pecado - A luta a que São João assistiu, entre Roma pagã e a Igreja, é evocada no Apocalipse não por causa dessa luta mesma, mas dentro de uma perspectiva mais ampla, isto é, a fim de simbolizar e predizer o combate perene que se vai travando entre o poder diabólico e Cristo através dos séculos, até terminar com a plena vitória do Senhor Jesus.

Estas considerações concorrem para evidenciar quanto é vã a tentativa de descobrir a predição de fenômenos estranhos da hora presente (bombas atômicas, explosões, enchentes e secas, discos voadores) nos quadros do Apocalipse. Estes são quadros típicos e perenes, quadros que se reproduzem por todo o decorrer da história, variando apenas de facetas.

A sua mensagem abrange todas as situações análogas: querem, sim, dizer que as desgraças da vida presente, por mais aterradoras que pareçam estão sujeitas ao sábio plano da Providência Divina, a qual tudo faz concorrer para o bem daqueles que O amam (cf. Rm 8, 28).


***
¹ Segundo nos conta, até hoje não foi publicado algum comentário do Apocalipse tão denso e documentado quanto o do Pe. Allo O.P.
¹ A indicação da identidade da primeira Besta sob a forma do número 666, em Ap 13, 18, pertence ao artifício literário chamado gematria: às letras atribuía-se valor numérico, de modo que cada nome tinha um número equivalente. A interpretação de 666 há de ser procurada no contexto lingüístico, geográfico e histórico de São João e de seus imediatos leitores, não em época posterior ou em outra língua que não o hebraico e o grego. Levando em consideração este princípio, pode-se dizer que 666 eqüivale a Kaisar Neron escrito em caracteres hebraicos:

N V R N R S Q
50 6 200 50 200 60 100 = 666

Esta interpretação é confirmada pelo fato de que alguns manuscritos antigos têm 616 e não 666. Isto se explica pela queda do N no final (ler da direita para a esquerda), compreensível, pois se podia dizer Nero em vez de Neron.
  




Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb

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