segunda-feira, 2 de abril de 2012

APOCALIPSE: INTERPRETAÇÃO - PARTE 2

3. A Interpretação do Apocalipse

Como se compreende, grande é o número de sistemas que tentam interpretar o Apocalipse. Todos concordam sobre o sentido geral do livro, que quer anunciar a vitória do Bem sobre o mal, do reino de Cristo sobre as maquinações dos pecadores. Divergem, porém, quando tentam indicar a época precisa em que o Apocalipse situa essa vitória. As diversas teorias se agrupam sob os títulos seguintes:

1) Sistema dito "escatológico" ou do fim dos tempos: São João estaria descrevendo os embates finais da história. Esta interpretação esteve em voga na antigüidade; foi posta de lado na Idade Média; do século XVI aos nossos dias é mais e mais prestigiada principalmente por parte de correntes que profetizam o fim do mundo para breve;

2) Sistema da história antiga (do século I aos séculos IV/V): o Apocalipse descreveria a luta do judaísmo e do paganismo contra os discípulos de Cristo, luta que terminou com a queda da Roma pagã (476) e o triunfo do Cristianismo;

3) Sistema da história universal: o Apocalipse apresentaria, sob a forma de símbolos, uma visão completa de toda a história do Cristianismo: descreveria sucessivamente os principais episódios de cada época e do fim do mundo.

Todas estas interpretações são, do algum modo, falhas, pois não levam em conta suficiente o estilo próprio do livro e querem deduzir do Apocalipse notícias que satisfaçam aos anseios de concreto ou mesmo à curiosidade do leitos. Por isto, deixando-as de lado, proporemos a teoria da recapitulação, que tem seu grande mestre no Pe. E. -B. Allo O.P., professor da Universidade de Friburgo (Suíça) e autor do livro: Saint Jean. L'Apocalypse. Paris, 1933 (4ª edição)¹. Examinaremos essa teoria.

A Recapitulação

Antes do mais, é necessário observar que nem todo o livro do Apocalipse está redigido em estilo apocalíptico. Compreende duas partes anunciadas em Ap 1,19:

1, 4-3,22: as coisas que são (revisão da vida das sete comunidades da Ásia Menor às quais São João escreve); o estilo é sapiencial e pastoral;

4, 1-22, 15: as coisas que devem acontecer depois. Esta é a parte apocalíptica propriamente dita, para a qual se volta a nossa atenção. Observemos a estrutura dessa parte:

4, 1-5, 14: a corte celeste, com sua liturgia. O Cordeiro "de pé", como que imolado" (5,6), recebe em suas mãos o livro da história da humanidade. Tudo o que acontece no mundo está sob o domínio desse Senhor, que é o Rei dos séculos. - Notemos assim que a parte apocalíptica do livro se abre com uma grandiosa cena de paz e segurança; qualquer quadro de desgraça posterior está subordinado a essa intuição inicial.

O corpo do livro, que se segue, compreende três septenários:

6, 1-8, 1: os sete selos

8, 2-11, 18: as sete trombetas

15, 5-16, 21: as sete taças.

Reflitamos sobre este núcleo central (de sentido decisivo) do Apocalipse.

Pergunta-se: uma estrutura tão artificiosamente construída poderá ainda ser o reflexo imediato da história tal como ela é vivida pelos homens? Não seria, antes, o fruto de um arranjo lógico ou do trabalho de um espírito que reflete sobre os acontecimentos e procura discernir alguns fios condutores por debaixo das diversas ocorrências da vida cotidiana? Sabemos que o estilo de São João é comparado ao vôo de uma águia que gira em torno do objeto contemplado até finalmente dar o boto ou dizer claramente o que quer. Levando em conta esta peculiaridade de estilo, podemos dizer que o autor sagrado não expõe os sucessivos acontecimentos concretos da história do Cristianismo, mas apresenta a realidade invisível que se vai afirmando constantemente por detrás dos episódios visíveis da história. Em outros termos: o Apocalipse apresenta (sob forma de símbolos) a luta entre Cristo e Satanás, luta que é o fundo e a coluna dorsal de toda a história. Cada septenário (o dos selos, o das trombetas e o das taças) é conseqüentemente uma peça literária completa em si mesma; o número 7, aliás, significa plenitude ou totalidade, segundo a mística dos antigos.

Desenho

A seguir, de 17, 1 a 22, 15, ou seja, após os três septenários, ocorre a queda dos agentes do mal:

17, 1-19, 10: a queda da Babilônia da Roma pagã);

19, 11-21: a queda das duas bestas que regem Babilônia (o poder imperial pagão e a religião oficial do império);

20, 1-15: a queda do Dragão, supremo instigador do mal.

Em contra-parte, a secção final (21, 1-22, 15) mostra a Jerusalém celeste, Esposa do Cordeiro e antítese da Babilônia pervertida.

Os vv. 22, 16-21 constituem o epílogo do livro.

Aprofundemos um pouco mais o sentido do tríplice septenário central do Apocalipse.

O primeiro, o dos selos (6, 1-8, 1) nos dá a ver a paulatina abertura do livro que está nas mãos do Cordeiro. É o septenário mais sóbrio e nítido, que, pode-se dizer, resume o livro inteiro; examinemo-lo de perto:

- o primeiro selo corresponde a "um cavalo branco, cujo montador tinha um arco. Deram-lhe uma coroa e ele partiu vencedor e para vencer ainda" (5,2). O cavalo branco reaparece em 19, 11-16; seu montador é o Senhor dos Senhores e o Rei dos Reis (19, 16). - Conseqüentemente dizemos que o primeiro septenário se abre com uma figura alvissareira: a do Verbo de Deus ou Evangelho que, vencedor (porque já propagado no mundo), se dispõe a mais ainda se difundir. Sobre este pano de fundo vêm os três flagelos clássicos da história:

- o segundo selo corresponde ao cavalo vermelho, símbolo da guerra (6,3s);

- o terceiro selo é o do cavalo negro, símbolo da fome negra e da carestia que a guerra acarreta (6,5s);

- o quarto selo é o do cavalo esverdeado, símbolo da peste e da morte decorrentes da guerra e da fome (6,7s).

Aí estão os três flagelos que afligem os homens em todos os tempos e que a Bíblia freqüentemente menciona; cf. Lv 26, 23-29; Dt 32, 24s; Ez 5, 17; 6, 11-12; 7, 15; 12, 16.

Depois disto, o quinto selo apresenta os mártires no céu pedindo a Deus justiça para a terra ou o fim da desordem que campeia no mundo. Reproduzem o clamor dos justos de todos os tempos, ansiosos de que termine a inversão dos valores na história da humanidade. Em resposta, é-lhes dito que tenham paciência e aguardem que se complete o número dos habitantes da Jerusalém celeste; cf. 6, 9-11.

O sexto selo já nos põe em presença do desfecho da história: chegou o Grande Dia do juízo final (6,17). Aparecem então os justos na bem-aventurança celeste: os judeus representados por 144.000 assinalados, e os provenientes do paganismo, a constituir "uma multidão inumerável de todas as nações, tribos, povos e línguas" (7,9); celebram a liturgia celeste. - Aqui se encerra propriamente o primeiro septenário; compreende em suas grandes linhas os aspectos aflitivos da história da humanidade e o anseio dos justos para que a ordem se restabeleça; a consumação da história é, para os fiéis, vitória e felicidade. A consolação que São João quer transmitir aos seus leitores, consiste precisamente em mostrar que as calamidades sob as quais os homens gemem, estão envolvidas num plano sábio de Deus, onde todos os males estão dimensionados para que sirvam à salvação das criaturas e à glória do Criador. Eis aí a síntese do Apocalipse apresentada com clareza no primeiro septenário.

E o sétimo selo (8,1)? - Corresponde a um silêncio de meia-hora. Sim, o livro se abriu por completo. O vidente espera execução dos desígnios de Deus contidos no livro aberto. Este silêncio de meia-hora é o "gancho" do qual pende o segundo septenário.

O segundo e o terceiro septenários (8, 2-11, 18 e 15, 5-16,21) retomam o conteúdo do primeiro com algumas variantes. Observemos, para começar, que terminam cada qual com a consumação da história (sétima trombeta em 11, 14-18 e sétima taça em 16, 17-21). O segundo septenário tem em vista principalmente os flagelos que afligem o mundo profano: a terra, a vegetação, as águas, os astros ... Ao contrário, o terceiro septenário tem em mira as sortes da Igreja perseguida pelo Dragão (Satanás) e seus dois agentes (o poder imperial pagão, que manipula a religião oficial do Estado pagão).

Observemos dentro do segundo septenário o "gancho" do qual pende o terceiro septenário: em Ap 10, 8-11 e entregue a João um livrinho, doce na boca e amargo no estômago. Como entender isto ? - O segundo septenário, apresenta a execução do plano de Deus contido no livro cujos selos se abriram. Portanto, se deve haver outra série de revelações, deve haver também outro livro que as traga; é precisamente este que João recebe em 10, 8-11 (amargo no estômago, porque portador de notícias pesadas para os cristãos fiéis).

Merece atenção especial o intervalo ocorrente entre o segundo e o terceiro septenários, ou seja, a secção de 11, 19 a 15,4. Ele prepara a série das taças, apresentando os grandes protagonistas da história da Igreja: a Mulher e o Dragão no capítulo 12; as duas Bestas, manipuladas pelo Dragão, sendo que a primeira sobe do mar (quem olha da ilha de Patmos para o grande mar, se volta para Roma) e representa o poder imperial perseguidor, ao passo que a Segunda Besta sobe da terra (quem de Patmos olha para o continente próximo, volta-se para a Ásia Menor, onde campeia o culto religioso do Imperador); ver respectivamente Ap 13,1 e 11. A sede capital destes dois agentes é Babilônia (= a Roma pagã). O cap. 12, ao apresentar a Mulher e o Dragão, é também uma síntese da mensagem da Apocalipse e da história da Igreja, que será comentada na Quarta parte deste estudo. - Como dito, os agentes do mal estão fadados a perecer, como se lê em 17, 1-20, 15, dando lugar à Jerusalém celeste e à bem-aventurança dos justos.

Por conseguinte as calamidades que o Apocalipse apresenta a se desencadear sobre o mundo, não hão de ser interpretadas ao pé da letra; antes, depreender-se-á o seu sentido à luz das cenas de paz e triunfo que o autor sagrado intercala entre as narrativas de flagelos (enquanto os justos padecem na terra, há plena segurança no céu, conforme o Apocalipse). Justapondo aflições (na terra) e alegria (no céu), São João queria precisamente dizer aos seus leitores que as tribulações desta vida estão em relação estrita com a Sabedoria de Deus; foram cuidadosamente previstas pelo Senhor, que as quis incluir dentro de um plano muito harmonioso, plano ao qual nada escapa. Em conseqüência, ao padecer as aflições da vida cotidiana, os cristãos se deviam lembrar de que tais adversidades não esgotam toda a realidade, mas são apenas as facetas externas e visíveis de uma realidade que tem seu aspecto celeste e grandioso; as calamidades, portanto, sob as quais os cristãos do primeiro século se sentiam prestes a desfalecer, não os deveriam impressionar; constituíam como que o lado avesso e inferior de um tapete que, visto no seu aspecto autêntico e superior, é um verdadeiro tapete oriental, cheio de ricas cores e belos desenhos.

Eis a forma de consolo que o autor sagrado queria incutir aos seus leitores (não só do séc. I, mas de todos os tempos da história): os acontecimentos que nos acometem aqui na terra são algo de ambíguo ou algo que tem duas faces: uma exterior, visível, a qual é muitas vezes aflitiva e tende a nos abater; outra, porém, interior, a qual é grandiosa e bela, pois faz parte da luta vitoriosa do Bem sobre o mal; é mesmo a prolongação da obra do Cordeiro que foi imolado, mas atualmente reina sobre o mundo com as suas chagas glorificadas (cf. c. 5). Por isto, enquanto os cristãos a terra gemem (Ai, ai, ai!), os bem-aventurados na glória cantam (Aleluia, aleluia, aleluia!)

No céu os justos não se acabrunham com o que acontece de calamitoso na terra; antes, continuam a cantar jubilosamente a Deus porque percebem o sentido verdadeiro das nossas tribulações. Pois bem, quer dizer São João, essa mesma paz e tranqüilidade deve tornar-se a partilha também dos cristãos na terra, pois, embora vivam no tempo e no mundo presentes, já possuem em suas almas a eternidade e o céu sob forma de gérmen (o gérmen da graça santificante, que é a semente da glória celeste).

Assim o Apocalipse oferece uma imagem do que é a vida do cristão ou, mais amplamente, a vida da Igreja: é uma realidade simultaneamente da terra e do céu, do tempo e da eternidade. Na medida em que é da terra e do tempo, apresenta-se aflitiva; este aspecto, porém, está longe de ser essencial; no seu âmago, a vida do cristão é celeste e, como tal, é tranqüila, à semelhança da vida dos justos que no céu possuem em plenitude aquilo mesmo que os cristãos possuem na terra em gérmen.



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