quarta-feira, 31 de agosto de 2011

TEOLOGIA DA VIDA COTIDIANA.


Existem pessoas que, presas nas dificuldades e no trabalho, na agitação e na atividade incessante da vida cotidiana, só no dia de domingo vão poder ler e refletir com calma sobre meditações teológicas como esta.

Não deveríamos aproveitar pelo menos o domingo - que pode ser também algo como um respiro do homem em meio a sua cotidianidade- a oportunidade de esboçar algumas reflexões sobre uma teologia da vida cotidiana, de colocar sob a luz da fé cristã e de considerar como perguntas para a teologia alguns assuntos de cada dia, como o trabalho e o descanso, o comer e o dormir e todas aquelas coisas que pertencem a esse âmbito?

Naturalmente, sempre com a reserva de que em umas poucas palavras se pode dizer muito pouco, inclusive sobre estas coisas simples, já que o mais fácil costuma ser na verdade o mais difícil para a teoria e para a práxis.

Por agora falemos apenas algo breve sobre a teologia da vida cotidiana em geral.

A primeira coisa é que uma teologia não pode pretender fazer do cotidiano um feriado. Esta teologia diz antes de tudo: “deixe tranqüila a vida cotidiana ser cotidiana”. Nem pelos elevados pensamentos da fé nem pela sabedoria da eternidade se pode ou se deve converter a vida cotidiana em um feriado.

O cotidiano deve ser mantido como tal, sem dulcificações nem idealizações. Só assim será para os cristãos o que deve ser: o espaço da fé, a escola da sobriedade, o exercício da paciência, o santo desmascaramento das palavras grandiloqüentes e dos falsos ideais, a silenciosa oportunidade de amar de verdade e de ser fiel, a verificação do realismo que é a semente da mais plena sabedoria.

A segunda é, porém, que a simples cotidianidade, assumida honestamente, esconde em si o milagre eterno e o silencioso mistério que chamamos Deus e sua graça sigilosa, precisamente quando e na medida em que o cotidiano permanece como tal. Posto que tudo isso constitui a vida cotidiana que o ser humano faz, e onde estiver o ser humano, ele em seu agir livre e responsável, abrirá as profundidades recônditas da realidade.

Também as pequenas coisas cotidianas são ou deveriam ser verdadeiramente como uma porção interna do essencial, inserida em uma vida realmente humana, ou seja, em uma vida que pela fé, a esperança e o amor dirigidos a Deus com a completa e mais radical liberdade, tem o peso do Deus eterno ao qual ela se agarra.

A Ele o temos, em última instância, não por nossos ideais, nem por nossas elevadas palavras, nem pela contemplação de nós mesmos, mas pela ação que nos arranca de nosso egoísmo, pela preocupação pelos outros que nos faz esquecer de nós mesmos, pela paciência que nos faz mansos e sábios.

Quem como ser humano acolhe o tempo, que é tão breve, no coração da eternidade que leva dentro de si, capta rapidamente que também as pequenas coisas têm profundidades inefáveis, que são arautos da eternidade, que são sempre mais que elas mesmas, como gotas de água em que se reflete a totalidade do céu, como símbolos que indicam mais além de si, como mensageiros que se antecipam e que, como arrebatados pela mensagem que portam, preanunciam a infinitude adveniente, como sombras, que já vem sobre nós, da verdadeira realidade, porque, em efeito, o verdadeiramente real já está próximo.

E por tudo isso vale a terceira: deve-se estar sempre como se fosse domingo, bem disposto para as pequenezes e as humildes coisas sem o brilho da vida cotidiana. Elas nos irritam só se as enfrentamos irritados; nos tornam obtusos só se não as compreendemos; tornam-se rotineiras e banais só se não as entendemos bem e as tratamos de maneira equivocada. Tornam-nos sóbrios, talvez nos cansam e nos decepcionam, mas nos fazem modestos e serenos.

Porém, isso é precisamente o que devemos chegar a ser, o que temos que aprender ainda que esta aprendizagem nos pareça difícil; é o único que nos pode dispor para nos encaminhar rumo à autêntica festa da vida eterna que a graça de Deus, e não nossa própria força, nos prepara. As coisas cotidianas, em todo caso, não têm que nos tornar amargos nem malignamente céticos. Porque o pequeno é a promessa do grande, e no tempo vai se gestando a eternidade. Porém, isto vale para os dias de semana tanto quanto para o domingo.


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Karl Rahner, S.J. Teólogo, acadêmico e escritor A tradução é de Fernando Berríos Medel, com a colaboração de Sergio Silva Gatica, SS.CC. Artigo publicado também na revista Mensaje .

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