Deus
desceu a esta terra de exílio, atravessando as brumas do pecado sem Se
deixar tocar por ele. Tomando sobre Si as nossas fraquezas, com elas
subiu ao Gólgota, para ali consumar Seu holocausto e restituir aos
homens a paz e a felicidade que haviam perdido.
Era
o Templo restaurado por Herodes. Embora “feito de belas pedras e
recamado de ricos donativos” (Lc 21, 5), bem longe estava de possuir o
esplendor e a magnificência do anterior, erigido segundo a capacidade e a
sabedoria de Salomão.
Naquele
dia, um casal, levando o mais belo de todos os meninos, atravessou os
umbrais do recinto sagrado, com o intuito de cumprir as prescrições da
Lei a respeito dos primogênitos. Na aparência, aquela cena nada tinha de
extraordinário: com muita frequência as famílias israelitas, vindas das
mais variadas cidades, chegavam a Jerusalém, trazendo seus filhos para
apresentá-los ao Senhor e oferecer o sacrifício prescrito pela Lei: um
par de rolas ou dois pombinhos (cf. Lc 2-24). Quase sempre as mães
preferiam associar esta cerimônia àquela da sua própria purificação, à
qual estavam obrigadas pelas rígidas normas do Levítico.
Entretanto,
nessa ocasião, o ritual da apresentação revestia-se de dimensões,
verdadeiramente divinas e fora previsto com séculos de antecedência pelo
profeta Ageu: “Encherei de minha glória este templo – diz o Senhor
do universo. A prata e o ouro me pertencem – oráculo do Senhor do
universo. O esplendor futuro deste templo será maior que o primeiro –
oráculo do Senhor do universo. Neste lugar Eu darei a paz – diz o Senhor
do universo” (Ag 2, 7b-10). E por Malaquias: “Logo chegará a seu templo o Dominador, que vós procurais, e o Anjo da Aliança, que vós desejais” (Ml 3, 1b).
Com efeito, aquela arrebatadora criança, conduzida nos braços de sua Mãe para submeter-Se humildemente aos preceitos da Lei mosaica, era o próprio Dominador, o Filho Unigênito de Deus, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei (cf. Gl 4, 5).
Com efeito, aquela arrebatadora criança, conduzida nos braços de sua Mãe para submeter-Se humildemente aos preceitos da Lei mosaica, era o próprio Dominador, o Filho Unigênito de Deus, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei (cf. Gl 4, 5).
Dia de
gáudio e de glória aquele em que, por fim, as profecias atingiam sua
realização e o Divino Menino começava a ser reconhecido pelos que “em Jerusalém esperavam a redenção” (Lc 2, 38).
“Uma espada transpassará a Tua alma”
Entrando
no templo, Maria e José depararam-se com um ancião de venerável
aspecto, que para lá se dirigira, cheio de esperança, sob a inspiração
do Espírito Santo (cf. Lc 2, 27).Ao ver o Menino Jesus, Simeão, que
poderia ser denominado o varão-esperança, logo começou a bendizer a Deus
e a profetizar a respeito dEle, deixando admirados Seu pai e Sua mãe
(cf. Lc 2, 33). Também Ana, a profetisa, que se encontrava no Templo,
pôs-se a falar sobre Ele, tornando- se uma das primeiras anunciadoras da
missão redentora de Jesus. Maria e José ouviam todas essas palavras, e
Seus corações enchiam-se de gozo ao constatarem que o inefável mistério
do qual ambos eram depositários, Deus Se dignara comunicá- lo também a
outras almas, manifestando- lhes a presença de Cristo no mundo.
Simeão tomou o Menino nos braços e, após ter sido pago o imposto, entregou-O à Sua Mãe, dizendo-Lhe: “Uma espada transpassará a Tua alma” (Lc 2, 35).
Que contraste impressionante! Ali estava o casal princeps, duas criaturas escolhidas por Deus para servir de arquetipia à humanidade: Maria e José. Nesses momentos de consolação, nos quais a Luz descida do Céu para revelar-Se às nações começava a deitar seus primeiros raios, abria-se já, de maneira oficial, a “via dolorosa” que o Senhor apontava à Sua Santa Mãe. A alegria de Maria – de possuir um Filho que é Deus e de pertencer a um Deus que é Seu Filho – naquele instante transformou- se em tristeza. Auge de alegria e auge de tristeza conjugaram-se no coração da Virgem: quanta perplexidade nessa ocasião em que tudo deveria falar de júbilo e, entretanto… “uma espada transpassará a Tua alma”!
Que contraste impressionante! Ali estava o casal princeps, duas criaturas escolhidas por Deus para servir de arquetipia à humanidade: Maria e José. Nesses momentos de consolação, nos quais a Luz descida do Céu para revelar-Se às nações começava a deitar seus primeiros raios, abria-se já, de maneira oficial, a “via dolorosa” que o Senhor apontava à Sua Santa Mãe. A alegria de Maria – de possuir um Filho que é Deus e de pertencer a um Deus que é Seu Filho – naquele instante transformou- se em tristeza. Auge de alegria e auge de tristeza conjugaram-se no coração da Virgem: quanta perplexidade nessa ocasião em que tudo deveria falar de júbilo e, entretanto… “uma espada transpassará a Tua alma”!
Pelo pecado, o sofrimento tornou-se inerente à condição humana
Por que quis Deus unir a dor à alegria num verdadeiro paradoxo, inevitável na vida humana? Todos nós, pelas
Ao ver o Menino Jesus, Simeão logo começou a bendizer a Deus e a profetizar a respeito d’Ele, deixando admirados seu Pai e sua Mãe. |
inclinações
da natureza, sempre propensa a buscar a felicidade e a fugir de
qualquer sofrimento, somos incapazes de compreender essa maravilha, se
não for por um especial auxílio da graça. Fora da filosofia cristã
iluminada pela fé, o problema da dor tem sido sempre algo difícil de
resolver. Enquanto alguns a concebem como um mal a ser evitado a todo
custo, outros, passando ao extremo oposto, consideram-na imprescindível e
chegam a fazer dela um prazer malsão e amargo, única saída para sua
falta de esperança. A Igreja, ao contrário, sempre tratou desse assunto
de forma equilibrada.Em virtude do pecado original, o sofrimento
tornou-se inerente à condição humana, e o homem deve utilizar- se dele
para o serviço de Deus, transformando-o numa fonte de méritos e até de
glória.
A respeito do modo de como os homens, tanto os bons quanto os maus, suportam as tribulações, assim escreve Santo Agostinho: “Embora
justos e pecadores sofram um mesmo tormento, o resultado não é o mesmo.
O mesmo fogo faz resplendecer o ouro, purificando-o, e a palha lançar
fumaça; o mesmo trilho serve para limpar os grãos e quebrar as arestas…
Assim também, uma mesma adversidade purifica e aperfeiçoa os bons, e
destrói e aniquila os maus. Por conseguinte, numa mesma calamidade, os
pecadores se revoltam e blasfemam contra Deus, enquanto os justos O
glorificam e pedem misericórdia; a grande diferença de sentimentos não
está na qualidade do mal que uns e outros padecem, mas na das pessoas
que o sofrem. Sacudidos de um mesmo modo, o lodo exala um mau cheiro
insuportável, e o bálsamo precioso um suavíssimo odor”.1
Cristo quis assumir a nossa carne em estado padecente
Para
conhecermos a fundo todo o valor que se desprende da dor quando
santamente aceita, basta-nos observar que esta foi a via escolhida pela
Providência para o próprio Homem-Deus e Sua Mãe Santíssima. Ao nos
aproximarmos de um altar em qualquer igreja da terra, sempre o
encontraremos presidido por um Crucifixo; e, aos pés dessa Cruz,
indissociável do Filho, imaginamos uma Mãe que chora: Stabat Mater dolorosa, juxta crucem lacrimosa…
Reza
a teologia que, para resgatar o gênero humano, teria bastado Nosso
Senhor Jesus Cristo oferecer a Deus Pai um simples gesto, uma curta
palavra, ou até mesmo um piscar de olhos, por serem de valor infinito
todos os Seus atos.2 Portanto, uma única gota de sangue derramada
durante a Circuncisão seria suficiente para consumar a obra da
Redenção.3
Entretanto, decretou o Padre Eterno que Ele sofresse a Paixão e Morte de Cruz, pois não poderia permitir que a Seu Verbo – “efusão da luz eterna, espelho sem mancha da atividade de Deus, imagem de Sua bondade” (Sb 7, 26)
– fosse negada uma glória em plenitude e esplendor. Foi por ilimitado
amor ao Seu Unigênito que Deus permitiu as ignomínias da Flagelação, as
humilhações do Ecce Homo, a exaustão da Via-Sacra e os
tormentos da Crucifixão. O Filho, que por Sua natureza divina não era
capaz de sofrer, quis assumir nossa carne em estado padecente, e não em
corpo glorioso, como correspondia à Sua alma, a qual se encontrava na
visão beatífica desde o primeiro instante da Encarnação.
Agindo
desse modo, Deus não visou apenas operar a Redenção da forma mais
esplêndida, mas quis propor aos homens de todos os tempos o Modelo
perfeito a ser seguido. Assim se expressa a respeito deste tema o
piedoso Pe. André Hamon: “Quando Deus, em Seus eternos decretos,
decidiu a Encarnação do Verbo, propôs-Se apresentar aos olhos dos homens
o modelo da vida nova que deveria salválos. Como homem, o Verbo
Encarnado lhes mostraria o caminho; como Deus, lhes daria a garantia da
perfeição do modelo. Suas virtudes seriam imitáveis, pois seriam a ação
de um homem; e uma regra segura, já que seriam a ação de um Deus”.4
O mistério profundíssimo da Cruz
Ora,
ao contemplarmos o Homem- Deus, deparamo-nos com esse profundo
mistério: Ele, o Onipotente, o Senhor da Glória, a quem os Anjos adoram
sem cessar, “fez- Se em tudo semelhante a nós, exceto no pecado” (Hb 4,
15), e sofreu as contingências da condição humana como fome, sede, sono,
e fadiga.
Para
a mentalidade do homem moderno – pervadida pela ideia de um
triunfalismo mal compreendido, da qual desapareceu quase completamente o
verdadeiro sentido da dor -, a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo
cravado na Cruz, clamando ao Pai a magnitude de Seu abandono, aparece
como a de um fracassado. “Em verdade, Ele tomou sobre Si nossas
enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos: e nós O reputávamos como
um castigado, ferido por Deus e humilhado” (Is 53, 4).
Entretanto, devemos procurar discernir a sublime lição contida no Sacrifício do Calvário, cuja renovação incruenta se opera diariamente em todos os altares do mundo. Em seu poema O Triunfo da Cruz, assim canta São Luís Maria Grignion de Montfort: “É a Cruz, sobre a terra mistério profundíssimo, que não se conhece sem muitas luzes. Para compreendê-lo é necessário um espírito elevado. Entretanto, é preciso entendê- lo para que nos possamos salvar.
[…] A Cruz é necessária. É preciso sofrer sempre: ou subir ao Calvário ou perecer eternamente. E Santo Agostinho exclama que somos réprobos se Deus não nos castiga e nos prova”.5
Entretanto, devemos procurar discernir a sublime lição contida no Sacrifício do Calvário, cuja renovação incruenta se opera diariamente em todos os altares do mundo. Em seu poema O Triunfo da Cruz, assim canta São Luís Maria Grignion de Montfort: “É a Cruz, sobre a terra mistério profundíssimo, que não se conhece sem muitas luzes. Para compreendê-lo é necessário um espírito elevado. Entretanto, é preciso entendê- lo para que nos possamos salvar.
[…] A Cruz é necessária. É preciso sofrer sempre: ou subir ao Calvário ou perecer eternamente. E Santo Agostinho exclama que somos réprobos se Deus não nos castiga e nos prova”.5
Deus quis submeter o homem à prova
A
vida no Paraíso Terrestre era isenta de qualquer incômodo. O homem
estava mergulhado na felicidade: os vegetais se encontravam à sua
disposição, os animais o serviam, não havia doenças nem cansaço, e, por
um especial favor do Criador, a ameaça da morte não o atingia. Também
sua alma vivia em paz, pois, graças ao dom da integridade, a carne e o
espírito não entravam em conflito, e todas as paixões se ordenavam à luz
da Fé.
Não
obstante, em meio àquela agradável existência cheia de delícias, Deus
quis que houvesse uma prova e, em consequência, uma pequena dor: “Não
comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em
que dele comeres, morrerás indubitavelmente” (Gn 2, 17).
Era
conveniente que Deus, seriedade infinita, exigisse do homem um tributo
de sua submissão, por meio do qual este demonstrasse a autenticidade dos
louvores e das honras que prestava a seu Criador. A aceitação desta
prova era uma renúncia magnífica e uma homenagem ímpar, que partia da
humanidade logo em seu nascedouro e se elevava até o trono de Deus.
O pecado e suas consequências
A brutal falta de correspondência daqueles que mais o deveriam reconhecer foi para Jesus a pior das dores |
Ora,
Adão e Eva sucumbiram à tentação. Talvez lhes tenha sobrevindo a ideia,
não explícita, de que não deveria existir a mais leve dor na ordem da
criação, e perante a prova que Deus lhes impunha tomaram uma atitude de
revolta interior, induzidos a roubar a própria honra de Deus.
Os nossos primeiros pais pecaram. E a queda trouxe o castigo, em sentença proferida pelo próprio Deus: “Multiplicarei
teus sofrimentos […] maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela
com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida” (Gn 3,
16-17).
O
pecado produziu uma revolução nessa harmonia interior e exterior na
qual antes viviam: o homem encontrou-se de repente cercado de mil
perigos da natureza, os animais se lhe tornaram hostis, a terra produziu
espinhos e abrolhos, e ele viu-se obrigado a comer o pão com o suor de
seu rosto (cf. Gn 3, 18-19). Sua alma tornou-se vítima das más
inclinações, sujeita ao erro e à rebeldia dos instintos contra os
ditames da razão. E a História passou a registrar a peregrinação árdua e
dolorosa de uma humanidade em guerra constante contra si mesma,
conforme diz o Livro de Jó: “A vida do homem sobre a terra é uma luta” (Jó 7, 1).
A culpa de nossos primeiros pais atraiu sobre eles, e sobre sua posteridade, a maldição e a perda da amizade de Deus, reparável somente por meio do Batismo e da graça. Mas atingiu também a ordem do universo, da qual Adão fora feito rei: “Deste-lhe poder sobre as obras de Vossas mãos, Vós lhe submetestes todo o universo” (Sl 8, 7). Afirma São Paulo: “A criação foi sujeita à vaidade (não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou), todavia com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia” (Rm 8, 20-22).
A culpa de nossos primeiros pais atraiu sobre eles, e sobre sua posteridade, a maldição e a perda da amizade de Deus, reparável somente por meio do Batismo e da graça. Mas atingiu também a ordem do universo, da qual Adão fora feito rei: “Deste-lhe poder sobre as obras de Vossas mãos, Vós lhe submetestes todo o universo” (Sl 8, 7). Afirma São Paulo: “A criação foi sujeita à vaidade (não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou), todavia com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia” (Rm 8, 20-22).
Um Deus abraçado à Cruz
Apesar
de ter maculado a Criação, o pecado não conseguiu frustrar os planos de
Deus, como era intuito do demônio. Pelo contrário, determinou Ele, em
Seus insondáveis desígnios de misericórdia, estabelecer uma ordem do
universo ainda mais bela e esplendorosa, nascida da Encarnação e do
sacrifício de seu Filho Unigênito.
Na
harmonia dessa nova ordem, haveria de ser preponderante o papel da dor.
Tendo sido mal correspondida a prova no Paraíso, a vida da graça,
trazida pela Redenção, não poderia conceber-se sem sofrimento, de modo
que os “degredados filhos de Eva” reparassem a falta de seus pais.
Era
preciso que os homens adorassem um Deus abraçado à Cruz, o Vir dolorum
previsto por Isaías, cravado sobre o madeiro do opróbrio e da ignomínia,
e tivessem diante do Homem-Deus moribundo todas as ternuras e
venerações de que o coração humano é capaz.
Ele
desceu a esta terra de exílio, atravessando as brumas do pecado sem Se
deixar tocar por ele, e, tomando sobre Si as nossas fraquezas, com elas
subiu ao Gólgota para ali consumar Seu holocausto e restituir aos homens
a paz e a felicidade que haviam perdido.
É
bem verdade que, ao longo dos três anos de vida pública, teve Ele um
período brilhante aos olhos do mundo, durante o qual as multidões iam à
sua procura, sôfregas de ouvir Seus ensinamentos e beneficiar-se de Seus
milagres. Quando de Sua entrada solene em Jerusalém, a multidão cantava
“hosana ao Filho de Davi” (Mt 21, 9). Houve, inclusive,
aqueles que quiseram proclamá-Lo rei (cf. Jo 6, 15). Mas, em meio a
todos os êxitos, a pior das dores incrustava-se em Seu Coração,
delineando Sua missão de Servo Sofredor e deitando uma sombra sobre o
futuro que O esperava: era a brutal falta de correspondência daqueles
que mais O deveriam reconhecer. “Veio para o que era Seu, mas os Seus não O receberam” (Jo 1, 11).
Se, em Sua trajetória terrena, Nosso Senhor tivesse recebido sempre todas as glorificações do Tabor e do Domingo de Ramos, algo da Sua benquerença pelos homens e da Sua disposição de entregar a vida por eles teria deixado de refulgir aos nossos olhos, e não compreenderíamos suficientemente o mistério de amor que se discerne na Cruz e no Santo Sepulcro. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 13).
Se, em Sua trajetória terrena, Nosso Senhor tivesse recebido sempre todas as glorificações do Tabor e do Domingo de Ramos, algo da Sua benquerença pelos homens e da Sua disposição de entregar a vida por eles teria deixado de refulgir aos nossos olhos, e não compreenderíamos suficientemente o mistério de amor que se discerne na Cruz e no Santo Sepulcro. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 13).
Somos chamados a colaborar na obra da Redenção
Ora, movido por Seu ilimitado amor aos homens, Jesus quis também a participação deles na Sua dor. Ele não necessita
Coloquemos nas mãos da Mater Dolorosa cuja alma foi traspassada pelo gládio da dor toda a nossa entrega e disposição de padecer |
de
concurso humano algum para redimir-nos, uma vez que o Preciosíssimo
Sangue derramado na Paixão bastaria para apagar os pecados de infinitas
criaturas, mas deseja associar-nos a Seus sofrimentos e assim fazer-nos
partícipes de Seus méritos e de Sua glória. É este o simbolismo da água
que o sacerdote mistura ao vinho, na preparação do cálice para o Santo
Sacrifício. Nossas dores, de si, valem menos até do que umas poucas
gotas de água, pois, o mais das vezes, estão contaminadas por
imperfeições e misérias; mas unidas ao “vinho que engendra virgens”,
podem aquelas tornar-se uma “mesma e única bebida de salvação”.6
São Paulo mostrou ter penetrado a fundo nesse mistério, quando escreveu em sua epístola aos Colossenses: “Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por Seu corpo que é a Igreja” (Cl 1, 24).
Esta passagem é assim comentada por Tanquerey: “Certamente, esta Paixão é, não somente completa, mas abundante e superabundante. No entanto, como Jesus é a cabeça de um corpo místico, do qual todos nós somos os membros, a Paixão deste Cristo místico se completa cada dia em seus membros sofredores, e ela não estará terminada senão quando o último dos eleitos tiver sofrido sua parte das dores de Cristo. […] Então a dor terá um sentido, então seremos verdadeiramente os colaboradores do Divino Salvador na obra da salvação das almas”.7
São Paulo mostrou ter penetrado a fundo nesse mistério, quando escreveu em sua epístola aos Colossenses: “Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por Seu corpo que é a Igreja” (Cl 1, 24).
Esta passagem é assim comentada por Tanquerey: “Certamente, esta Paixão é, não somente completa, mas abundante e superabundante. No entanto, como Jesus é a cabeça de um corpo místico, do qual todos nós somos os membros, a Paixão deste Cristo místico se completa cada dia em seus membros sofredores, e ela não estará terminada senão quando o último dos eleitos tiver sofrido sua parte das dores de Cristo. […] Então a dor terá um sentido, então seremos verdadeiramente os colaboradores do Divino Salvador na obra da salvação das almas”.7
Crisol onde Deus lança as almas muito amadas
Levando
isto em consideração, o papel da dor na vida humana adquire uma
perspectiva tão elevada que torna inteiramente fora de propósito
qualquer queixa ou inconformidade de nossa parte em relação às cruzes
que Deus tenha por bem nos enviar.
Na
aceitação inteira da vontade divina encontramos o melhor meio de
restituir ao Criador a glória que Lhe foi negada pela primitiva
desobediência, manifestando-Lhe, por um ato de conformidade com Seus
desígnios, nosso tributo de amor e de reparação à Sua Majestade
ofendida.
Ao
mesmo tempo, se encetarmos as veredas da dor com ânimo resoluto, é-nos
oferecida a ocasião de alcançar preciosos benefícios para o progresso de
nossa vida sobrenatural. Dada a tendência natural do homem para o
egoísmo, facilmente ele se esquece de Deus quando a felicidade e o
sucesso parecem seguir seus empreendimentos. A adversidade é, pois, um
poderoso auxílio para purificar a alma do apego excessivo às criaturas,
obrigando-a a considerar a inanidade dos bens passageiros e voltar- se
só para Deus, único Bem do qual tudo se pode esperar.
Tais
disposições perante o sofrimento conferem um caráter respeitável àquele
sobre o qual este se abate, tornando-o digno de admiração.
Nos
dias de hoje, o sentido cristão da palavra “admirável” vai-se perdendo,
dando lugar a conceitos deturpados, segundo os quais o homem, para
alcançar a plena realização de sua personalidade, deve ser bem sucedido
na vida, correr de vitória em vitória, sem jamais ser incomodado por
qualquer revés ou dificuldade; só assim se tornará merecedor do aplauso e
da aceitação dos demais. A experiência histórica, porém, nos revela o
contrário: os homens sofredores, que ao
longo
de sua existência tiveram de enfrentar perigos, angústias,
incompreensões e até mesmo aparentes catástrofes, mas, fortalecidos pela
graça divina, acabaram vencendo, esses sim são verdadeiramente dignos
da aprovação dos demais homens e do beneplácito de Deus.
A
dor é, pois, o crisol onde a Providência lança as almas muito amadas,
sobre as quais repousa uma especial predileção de Sua parte, para delas
recolher apenas a prata finíssima, livre de qualquer impureza. O Livro
do Eclesiástico deita uma luz sobre essa atraente temática: “Meu
filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e
no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração,
espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não
te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus;
dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro
momento tua vida se enriqueça. Aceita tudo o que te acontecer. Na dor,
permanece firme; na humilhação, tem paciência. Pois é pelo fogo que se
experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo
cadinho da humilhação” (Eclo 2, 1-5).
Duas atitudes perante a tragédia
Recebida
com resignação, ou com sobrenatural entusiasmo, a dor enaltece o homem e
o convida a uma doação generosa de si mesmo, da qual, na prosperidade,
talvez ele não se julgasse capaz. Assim, pode haver circunstâncias
infelizes que, de modo inesperado, reduzam à derrota alguém
anteriormente coroado de êxito. Colocado diante de sua própria tragédia,
ele poderá chorar, lamentando seu fracasso, e afundar-se no abatimento e
na revolta contra Deus; ou então ele se erguerá com uma grandeza de
alma triunfal, compreendendo a beleza de seu infortúnio, já que este o
aproxima mais da Divina Vítima do Calvário.
Em
palavras dirigidas aos peregrinos reunidos na Praça de São Pedro, em 1º
de fevereiro deste ano, assim se exprime o Papa Bento XVI: “Jesus
sofre e morre na Cruz por amor. Deste modo, considerando bem, deu
sentido ao nosso sofrimento, um sentido que muitos homens e mulheres de
todas as épocas compreenderam e fizeram seu, experimentando uma profunda
serenidade também na amargura de árduas provas físicas e morais”.8
No
instante em que o homem se abraça à Cruz e a toma como um presente da
munificência divina, manifesta- se todo o poder sublime e ao mesmo tempo
misterioso do holocausto. Sua dor torna-se fecunda e profícua, mais
eficaz na ordem da Comunhão dos Santos e na realização dos desígnios de
Deus do que seus esforços naturais ou suas demais obras apostólicas.
Oferecido o sacrifício, algo na alma germina, nasce e gera frutos,
elevando-se diante de Deus como oblação grata e imaculada, e dando ao
homem uma alegria e uma paz interior que todas as riquezas e glórias do
mundo jamais poderão proporcionar-lhe.
Durante
esta Quaresma e, de modo especial, nos dias cheios dos imponderáveis
sérios e graves da Semana Santa, acheguemo-nos aos pés da Cruz onde
pende o Salvador, abandonado por quase todos – sobretudo neste século em
que tantos e tantos homens só procuram o prazer e bem-estar pessoal – e
coloquemos nas mãos da Mater Dolorosa, cuja alma foi transpassada pelo
gládio da dor, toda a nossa entrega e disposição de padecer por Cristo e
por Sua Igreja. As lágrimas de Maria purificarão nossa oferta das
eventuais misérias das quais possa estar manchada e a tornarão útil para
a edificação de Seu Reino e o triunfo de Seu Imaculado Coração.
1 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. l. 1, c. 8.
2 Cf. ROYO MARÍN, OP, Fr. Antonio.
Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1961, p. 324.
3 Cf. DENZINGER, H.. HÜNEMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2007, p. 328, n. 1.025.
4 HAMON, M. André-Jean-Marie. Méditations. Paris: Lecoffre, 1933, v I, p. 55-56.
5 MONTFORT, São Luís Maria de Carta-circular aos amigos da Cruz. Cântico “O Triunfo da Cruz”. Trad. Maria Helena Montezuma Pohle. Rio de Janeiro: Santa Maria, 1954, p. 67-68.
6 Cf. CANTALAMESSA, OFMCap, Raniero. Obediencia. Trad. Ricardo M. Lázaro Barceló. 3. ed. Valencia: Edicep, 2002, p. 71.
7 TANQUEREY, Adolphe. La divinisation de la souffrance. Paris-Tournai- Rome: Desclée de Brouwer, 1931, p. IX-X.
8 Ângelus, 01/02/2009.
2 Cf. ROYO MARÍN, OP, Fr. Antonio.
Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1961, p. 324.
3 Cf. DENZINGER, H.. HÜNEMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2007, p. 328, n. 1.025.
4 HAMON, M. André-Jean-Marie. Méditations. Paris: Lecoffre, 1933, v I, p. 55-56.
5 MONTFORT, São Luís Maria de Carta-circular aos amigos da Cruz. Cântico “O Triunfo da Cruz”. Trad. Maria Helena Montezuma Pohle. Rio de Janeiro: Santa Maria, 1954, p. 67-68.
6 Cf. CANTALAMESSA, OFMCap, Raniero. Obediencia. Trad. Ricardo M. Lázaro Barceló. 3. ed. Valencia: Edicep, 2002, p. 71.
7 TANQUEREY, Adolphe. La divinisation de la souffrance. Paris-Tournai- Rome: Desclée de Brouwer, 1931, p. IX-X.
8 Ângelus, 01/02/2009.
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