A Palavra de Deus que hoje nos é proposta afirma,
essencialmente, que o nosso Deus está sempre presente ao longo da nossa
caminhada pela história e que só Ele nos oferece um horizonte de vida eterna,
de realização plena, de felicidade perfeita.
A primeira leitura mostra como Jahwéh acompanhou a
caminhada dos hebreus pelo deserto do Sinai e como, nos momentos de crise,
respondeu às necessidades do seu Povo. O quadro revela a pedagogia de Deus e
dá-nos a chave para entender a lógica de Deus, manifestada em cada passo da
história da salvação.
A segunda leitura repete, noutros termos, o
ensinamento da primeira: Deus acompanha o seu Povo em marcha pela história; e,
apesar do pecado e da infidelidade, insiste em oferecer ao seu Povo – de forma
gratuita e incondicional – a salvação.
O Evangelho também não se afasta desta temática…
Garante-nos que, através de Jesus, Deus oferece ao homem a felicidade (não a
felicidade ilusória, parcial e falível, mas a vida eterna). Quem acolhe o dom
de Deus e aceita Jesus como “o salvador do mundo” torna-se um Homem Novo, que
vive do Espírito e que caminha ao encontro da vida plena e definitiva.
1ª leitura (Ex. 17,3-7) –
AMBIENTE
O texto que nos é proposto como primeira leitura
pertence às “tradições sobre a libertação” (cf. Ex 1-18). Trata-se de um bloco
de tradições que narram a libertação dos hebreus do Egito (por ação de Jahwéh e
do seu servo Moisés) e a caminhada pelo deserto até ao Sinai.
O texto leva-nos até ao deserto do Sinai. O vs. 1
do nosso texto situa o episódio de Massa/Meribá nos arredores de Refidim,
provavelmente no sul da península do Sinai (cf. Nm. 33,14-15); mas Nm. 20,7-11
situa-o nos arredores de Kadesh, a norte (aliás, não é possível traçar com
rigor o caminho percorrido pelos hebreus, desde o Egito até à Terra Prometida:
estamos diante de textos que provêm de “fontes” diferentes, aqui combinados por
um redator final; e essas “fontes” referem-se, provavelmente, a viagens
distintas e a grupos distintos, que em épocas distintas atravessaram o deserto
do Sinai). De qualquer forma, também não interessa definir exatamente o
enquadramento geográfico: mais do que escrever um diário de viagem, aos
catequistas de Israel interessa fazer uma catequese sobre o Deus libertador,
que conduziu o seu Povo da terra da escravidão para a terra da liberdade.
A questão fundamental para este grupo de fugitivos
que, chefiados por Moisés, fugiu do Egito, é a questão da sobrevivência num
cenário desolado como é o deserto do Sinai. Os beduínos conheciam diversos
“truques” que lhes asseguravam a sobrevivência no deserto. Um desses “truques”
pode relacionar-se com o texto que nos é proposto… Alguns autores garantem a
existência no deserto do Sinai de rochas porosas que, quando quebradas em
certos lugares, permitem o aproveitamento da água aí armazenada. Terá sido
qualquer coisa parecida que aconteceu na caminhada dos hebreus e que deixou um
sinal na memória do Povo? É possível; mas o importante é que Israel viu no fato
um sinal da presença e do amor do Deus libertador.
MENSAGEM
Este episódio é um episódio paradigmático, que
reproduz as vicissitudes e as dificuldades da caminhada histórica do Povo de
Deus.
Desde que o Povo fugiu do Egito, até chegar a este
lugar (Massa/Meribá, segundo os autores do relato), Jahwéh manifestou, de mil
formas, o seu amor por Israel… No episódio da passagem do mar (cf. Ex
14,15-31), no episódio da água amarga transformada em água doce (cf. Ex
15,22-27), no episódio do maná e das codornizes (cf. Ex. 16,1-20), Deus mostrou
o seu empenho em conduzir o seu Povo para a liberdade e em transformar a
experiência de morte numa experiência de vida… Jahwéh mostrou, sem margem para
dúvidas, estar empenhado na salvação do seu Povo. Depois dessas experiências,
Israel já não devia ter qualquer dúvida sobre a vontade salvadora de Deus e
sobre o seu projeto de libertação.
No entanto, não é isso que acontece. Diante das
dificuldades da caminhada, o Povo esquece tudo o que Jahwéh já fez e manifesta
as suas dúvidas sobre os objetivos de Deus. A falta de confiança em Deus (“o
Senhor está ou não no meio de nós?” - v. 7) conduz ao desespero e à revolta. O
Povo entra em contenda com Moisés (o nome “meribá” vem da raíz “rib” – “entrar
em contencioso”) e desafia Deus a clarificar, através de um gesto espetacular,
de que lado está (o nome “massa” vem da raíz “nsh” – “tentar”, no sentido de
“provocar”). Acusam Deus de ter um projeto de morte, apesar de Ele, tantas vezes,
ter demonstrado que o seu projeto é de vida e de liberdade. Afinal, depois de
tantas provas, Israel ainda não fez uma verdadeira experiência de fé: não
aprendeu a confiar em Deus e a entregar-se nas suas mãos.
Como é que Deus reage à ingratidão e à falta de
confiança do seu Povo? Com “paciência divina”, Deus responde mais uma vez às
necessidades do seu Povo e oferece-lhe a água que dá vida. À pergunta do Povo
(“o Senhor está ou não no meio de nós?”), Deus responde provando que está,
efetivamente, no meio do seu Povo.
Desta forma os israelitas – e os crentes de todas
as épocas – são convidados a reter esta verdade definitiva: o Senhor é o Deus
que está sempre presente na caminhada histórica do seu Povo oferecendo-lhe, em
cada passo da caminhada, a vida e a salvação.
ATUALIZAÇÃO
• A caminhada dos hebreus pelo deserto é, um pouco,
o espelho da nossa caminhada pela vida. Todos nós fazemos, todos os dias, a
experiência de um Deus libertador e salvador, que está presente ao nosso lado,
que nos estende a mão e nos faz passar da escravidão para a liberdade. No
entanto, ao longo da travessia do deserto que é a vida, experimentamos, em
certas circunstâncias, a nossa pequenez, a nossa dependência, as nossas
limitações e a nossa finitude; as dificuldades, o sofrimento e o desencanto
fazem-nos duvidar da bondade de Deus, do seu amor, do seu projeto para nos
salvar e para nos conduzir em direção à verdadeira felicidade. No entanto, a
Palavra de Deus deste domingo garante-nos: Deus nunca abandona o seu Povo em
caminhada pela história… Ele está ao nosso lado, em cada passo da caminhada,
para nos oferecer gratuitamente e com amor a água que mata a nossa sede de vida
e de felicidade.
• Ao longo da caminhada do Povo de Deus pelo
deserto vêm ao de cima as limitações e as deficiências de um grupo humano ainda
com mentalidade de escravo, agarrado à mesquinhez, ao egoísmo e ao comodismo,
que prefere a escravidão ao risco da liberdade. No entanto, Deus lá está,
ajudando o Povo a superar mentalidades estreitas e egoístas, fazendo-o ir mais
além e obrigando-o a amadurecer. À medida que avança, de mãos dadas com Deus, o
Povo vai-se renovando e transformando, vai alargando os horizontes, vai-se
tornando um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto e mais santo.
• É esta, também, a experiência que fazemos. Muitas
vezes somos egoístas, orgulhosos, comodistas, “meninos mimados” que passam a
vida a lamentar-se e a acusar Deus e os outros pelos “dói-dóis” que a vida nos
faz. No entanto, as dificuldades da caminhada não são um castigo ou uma
derrota; são, tantas vezes, parte dessa pedagogia de Deus para nos forçar a ir
mais além, para nos renovar, para nos amadurecer, para nos tornar menos
orgulhosos e auto-suficientes. Devíamos, talvez, aprender a agradecer a Deus
alguns momentos de sofrimento e de fracasso que marcam a nossa vida, pois
através deles Deus faz-nos crescer.
2ª leitura (Rom. 5,1-2.5-8) -
AMBIENTE
Quando escreve aos Romanos, Paulo está a terminar a
sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. O
apóstolo sentia que tinha terminado a sua missão no oriente (cf. Rom. 15,19-20)
e queria levar o Evangelho a outros cantos do mundo, nomeadamente ao ocidente.
Sobretudo, Paulo aproveita a ocasião para contatar a comunidade de Roma e para
apresentar aos Romanos os principais problemas que o ocupavam (entre os quais
avultava o problema da unidade – um problema bem actual na comunidade cristã de
Roma, então afetada por alguma dificuldade de relacionamento entre
judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no ano 57 ou 58.
Paulo aproveita para dizer aos Romanos e a todos os
cristãos que o Evangelho deve unir e congregar todo o crente, sem distinção de
judeu, grego ou romano. Para desfazer algumas ideias de superioridade (e,
sobretudo, a pretensão judaica de que a salvação se conquista pela observância
da Lei de Moisés), Paulo nota que todos os homens vivem mergulhados no pecado
(cf. Rom 1,18-3,20) e que é a “justiça de Deus” que a todos dá a vida, sem
distinção (cf. Rom. 3,1-5,11).
No texto que a segunda leitura deste domingo nos
propõe, Paulo refere-se à ação de Deus, por Jesus Cristo e pelo Espírito, no
sentido de “justificar” todo o homem.
MENSAGEM
Paulo parte da ideia de que todos os crentes –
judeus, gregos e romanos – foram justificados pela fé. Que significa isto?
Na linguagem bíblica, a justiça é, mais do que um
conceito jurídico, um conceito relacional. Define a fidelidade a si próprio, à
sua maneira de ser e aos compromissos assumidos no âmbito de uma relação. Ora,
se Jahwéh se manifestou na história do seu Povo como o Deus da bondade, da
misericórdia e do amor, dizer que Deus é justo não significa dizer que Ele
aplica os mecanismos legais quando o homem infringe as regras; significa, sim,
que a bondade, a misericórdia e o amor próprios do ser de Deus se manifestam em
todas as circunstâncias, mesmo quando o homem não foi correto no seu proceder.
Paulo, ao falar do homem justificado, está a falar do homem pecador que, por
exclusiva iniciativa do amor e da misericórdia de Deus, recebe um veredicto de
graça que o salva do pecado e lhe dá, de modo totalmente gratuito, acesso à
salvação. Ao homem é pedido somente que acolha, com humildade e confiança, uma
graça que não depende dos seus méritos e que se entregue completamente nas mãos
de Deus. Este homem, objeto da graça de Deus, é uma nova criatura (cf. Gal.
6,15): é o homem ressuscitado para a vida nova (cf. Rom. 6,3-11), que vive do
Espírito (cf. Rom. 8,9.14), que é filho de Deus e co-herdeiro com Cristo (cf.
Rom. 8,17; Gal. 4,6-7).
Quais os frutos que resultam deste acesso à
salvação que é um dom de Deus?
Em primeiro lugar, a paz (v. 1). Esta paz não deve
ser entendida em sentido psicológico (tranquilidade, serenidade), nem em
sentido político (ausência de guerra), mas no sentido teológico semita de
relação positiva com Deus e, portanto, de plenitude de bens, já que Deus é a
fonte de todo o bem.
Em segundo lugar, a esperança (vs. 2-4 – embora os
versículos 3 e 4 não apareçam no texto que nos é proposto). Trata-se desse dom
que nos permite superar as dificuldades e a dureza da caminhada, apontando a um
futuro glorioso de vida em plenitude. Não se trata de alimentar um otimismo
fácil e irresponsável, que permita a evasão do presente; trata-se de encontrar
um sentido novo para a vida presente, na certeza de que as forças da morte não
terão a última palavra e que as forças da vida triunfarão.
Em terceiro lugar, o amor de Deus ao homem (vs.
5-8). O cristão é, fundamentalmente, alguém a quem Deus ama. A prova desse amor
está em Jesus de Nazaré, o Filho amado a quem Deus “entregou à morte por nós
quando ainda éramos pecadores”.
Como pano de fundo, o nosso texto propõe-nos o
cenário do amor de Deus. Paulo garante-nos algo que já encontramos na primeira
leitura de hoje: Deus nunca abandona o seu Povo em caminhada pela história… Ele
está ao nosso lado, em cada passo da caminhada, para nos oferecer gratuitamente
e com amor a água que mata a nossa sede de vida e de felicidade (a paz, a
esperança, o seu amor).
ATUALIZAÇÃO
• Este texto convida-nos a contemplar o amor de um
Deus que nunca desistiu dos homens e que sempre soube encontrar formas de vir
ao nosso encontro, de fazer caminho conosco. Apesar de os homens insistirem,
tantas vezes, no egoísmo, no orgulho, na auto-suficiência e no pecado, Deus
continua a amar e a fazer-nos propostas de vida. Trata-se de um amor gratuito e
incondicional, que se traduz em dons não merecidos, mas que, uma vez acolhidos,
nos conduzem à felicidade plena.
• A vinda de Jesus Cristo ao encontro dos homens é
a expressão plena do amor de Deus e o sinal de que Deus não nos abandonou nem
esqueceu, mas quis até partilhar conosco a precariedade e a fragilidade da
nossa existência, a fim de nos mostrar como nos tornarmos “filhos de Deus” e
herdeiros da vida em plenitude.
• A presença do Espírito acentua no nosso tempo – o
tempo da Igreja – essa realidade de um Deus que continua presente e atuante,
derramando o seu amor ao longo do caminho que, dia a dia, vamos percorrendo e
impelindo-nos à renovação, à transformação, até chegarmos à vida plena do Homem
Novo. É esse caminho que a Palavra de Deus nos convida a percorrer, neste tempo
de Quaresma.
• Está em moda uma certa atitude de indiferença
face a Deus, ao seu amor e às suas propostas. Em geral, os homens de hoje
preocupam-se mais com os resultados da última jornada do campeonato de futebol,
com as últimas peripécias da “telenovela das nove”, com os investimentos na
Bolsa, com as vantagens da última geração de computadores ou com o caminho mais
rápido e mais seguro para atingir o topo da carreira profissional do que com
Deus e com o seu amor. Não será tempo de redescobrirmos o Deus que nos ama, de
reconhecermos o seu empenho em conduzir-nos rumo à felicidade plena e de
aceitarmos essa proposta de caminho que Ele nos faz?
Evangelho (Jo 4,5-42) – AMBIENTE
Naquele tempo, 5Jesus chegou a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno que Jacó tinha dado ao seu filho José. 6Era aí que ficava o poço de Jacó. Cansado da viagem, Jesus sentou-se junto ao poço. Era por volta de meio-dia. 7Chegou uma mulher de Samaria para tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber”.
8Os discípulos tinham ido à cidade para comprar alimentos. 9A
mulher samaritana disse então a Jesus: “Como é que tu, sendo judeu,
pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” De fato, os judeus
não se dão com os samaritanos.
10Respondeu-lhe
Jesus: “Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-me de
beber’, tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva”.
11A mulher disse a Jesus: “Senhor, nem sequer tens balde e o poço é fundo. De onde vais tirar água viva? 12Por acaso, és maior que nosso pai Jacó, que nos deu o poço e que dele bebeu, como também seus filhos e seus animais?”
13Respondeu Jesus: “Todo aquele que bebe desta água terá sede de novo. 14Mas
quem beber da água que eu lhe darei, esse nunca mais terá sede. E a
água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a
vida eterna”.
15A mulher disse a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir aqui para tirá-la”. 19b“Senhor, vejo que és um profeta!” 20Os nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que em Jerusalém é que se deve adorar”.
21Disse-lhe Jesus: “Acredita-me, mulher: está chegando a hora em que nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. 22Vós adorais o que não conheceis. Nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus.
23Mas
está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e verdade. De fato, estes são os adoradores
que o Pai procura. 24Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade”.
25A
mulher disse a Jesus: “Sei que o Messias (que se chama Cristo) vai
chegar. Quando ele vier, vai nos fazer conhecer todas as coisas”. 26Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que estou falando contigo”.
39aMuitos samaritanos daquela cidade abraçaram a fé em Jesus. 40Por isso, os samaritanos vieram ao encontro de Jesus e pediram que permanecesse com eles. Jesus permaneceu aí dois dias. 41E muitos outros creram por causa da sua palavra. 42E
disseram à mulher: “Já não cremos por causa das tuas palavras, pois nós
mesmos ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o salvador do
mundo”.
— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.
O Evangelho deste domingo situa-nos junto de um
poço, na cidade samaritana de Sicar. A Samaria era a região central da
Palestina – uma região heterodoxa, habitada por uma raça de sangue misturado
(de judeus e pagãos) e de religião sincretista.
Na época do Novo Testamento, existia uma
animosidade muito viva entre samaritanos e judeus. Historicamente, a divisão
começou quando, em 721 a.C., a Samaria foi tomada pelos assírios e foi
deportada cerca de 4% da população samaritana. Na Samaria instalaram-se, então,
colonos assírios que se misturaram com a população local. Para os judeus, os
habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se (cf. 2Re. 17,29). A
relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando, após o
regresso do Exílio, os judeus recusaram a ajuda dos samaritanos (cf. Esd.
4,1-5) para reconstruir o Templo de Jerusalém (ano 437 a.C.) e denunciaram os
casamentos mistos. Tiveram, então, de enfrentar a oposição dos samaritanos na
reconstrução da cidade (cf. Ne. 3,33-4,17). No ano 333 a.C., novo elemento de
separação: os samaritanos construíram um Templo no monte Garizim; no entanto,
esse Templo foi destruído em 128 a.C. por João Hircano. Mais tarde, as
picardias continuaram: a mais famosa aconteceu por volta do ano 6 d.C., quando
os samaritanos profanaram o Templo de Jerusalém durante a festa da Páscoa,
espalhando ossos humanos nos átrios.
Os judeus desprezavam os samaritanos por serem uma
mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em
relação à pureza da fé jahwista; e os samaritanos pagavam aos judeus com um
desprezo semelhante.
A cena passa-se à volta do “poço de Jacob”, situado
no rico vale entre os montes Ebal e Garizim, não longe da cidade samaritana de
Siquém (em aramaico, Sicara – a atual Askar). Trata-se de um poço estreito,
aberto na rocha calcária, e cuja profundidade ultrapassa os 30 metros. Segundo
a tradição, teria sido aberto pelo patriarca Jacob… Os dados arqueológicos
revelam que o “poço de Jacob” serviu os samaritanos entre o ano 1000 a.C. e o
ano 500 d.C. (embora ainda hoje se possa extrair dele água).
O “poço” acaba por transformar-se, na tradição
judaica, num elemento mítico. Sintetiza os poços abertos pelos patriarcas e a
água que Moisés fez brotar do rochedo no deserto (primeira leitura de hoje); mas,
sobretudo, torna-se figura da Lei (do poço da Lei brota a água viva que mata a
sede de vida do Povo de Deus), que a tradição judaica considerava observada já
pelos patriarcas, antes de ser dada ao Povo por Moisés.
O Evangelho segundo São João apresenta Jesus como o
Messias, Filho de Deus, enviado pelo Pai para criar um Homem Novo. No chamado
“Livro dos Sinais” (cf. Jô. 4,1-11,56), o autor apresenta – recorrendo aos
“sinais” da água (cf. Jô. 4,1-5,47), do pão (cf. Jô. 6,1-7,53), da luz (cf. Jô.
8,12-9,41), do pastor (cf. Jô. 10,1-42) e da vida (cf. Jô. 11,1-56) – um
conjunto de catequeses sobre a ação criadora do Messias.
O nosso texto é, exatamente, a primeira catequese
do “Livro dos Sinais”: através do “sinal” da água, o autor vai descrever a
acção criadora e vivificadora de Jesus.
MENSAGEM
No centro da cena, está o “poço de Jacob”. À volta
do “poço” movimentam-se as personagens principais: Jesus e a samaritana.
A mulher (aqui apresentada sem nome próprio)
representa a Samaria, que procura desesperadamente a água que é capaz de matar
a sua sede de vida plena. Jesus vai ao encontro da “mulher”. Haverá neste
episódio uma referência ao Deus/esposo que vai ao encontro do povo/esposa
infiel para lhe fazer descobrir o amor verdadeiro? Tudo indica que sim (aliás,
o profeta Oséias, o grande inventor desta imagem matrimonial para representar a
relação Deus/Povo, pregou aqui, na Samaria).
O “poço” representa a Lei, o sistema religioso à
volta do qual se consubstanciava a experiência religiosa dos samaritanos. Era
nesse “poço” que os samaritanos procuravam a água da vida plena. No entanto: o
“poço” da Lei correspondia à sede de vida daqueles que o procuravam? Não. Os
próprios samaritanos tinham reconhecido a insuficiência do “poço” da Lei e
haviam buscado a vida plena noutras propostas religiosas (por isso, Jesus faz
referência aos “cinco maridos” que a mulher já teve: há aqui, provavelmente,
uma alusão aos cinco deuses dos samaritanos de que se fala em 2Re. 17,29-41).
Estamos, pois, diante de um quadro que representa a
busca da vida plena. Onde encontrar essa vida? Na Lei? Noutros deuses? A
mulher/Samaria dá conta da falência dessas “ofertas” de vida: elas podem “matar
a sede” por curtos instantes; mas quem procura a resposta para a sua realização
plena nessas propostas voltará a ter sede.
É aqui que entra a novidade de Jesus. Ele senta-se
“junto do poço”, como se pretendesse ocupar o seu lugar; e propõe à
mulher/Samaria uma “água viva”, que matará definitivamente a sua sede de vida
eterna (vs. 10-14). Jesus passa a ser o “novo poço”, onde todos os que têm sede
de vida plena encontrarão resposta para a sua sede.
Qual é a água que Jesus tem para oferecer? É a
“água do Espírito” que, no Evangelho de João, é o grande dom de Jesus. Na
conversa com Nicodemos, Jesus já havia avisado que “quem não nascer da água e
do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” – Jô. 3,5; e quando Jesus se
apresenta como a “água viva” que matará a sede do homem, João tem o cuidado de
explicar que Ele se referia ao Espírito, que iam receber aqueles que
acreditassem n’Ele (cf. Jo. 7,37-39). Esse Espírito, uma vez acolhido no
coração do homem, transforma-o, renova-o e torna-o capaz de amar Deus e os
outros.
Como é que a mulher/Samaria responde ao dom de
Jesus? Inicialmente, ela fica confusa. Parece disposta a remediar a situação de
falência de felicidade que caracteriza a sua vida, mas ainda não sabe bem como:
essa vida plena que Jesus está a propor-lhe significa que a Samaria deve
abandonar a sua especificidade religiosa e ceder às pretensões religiosas dos
judeus, para quem o verdadeiro encontro com Deus só pode acontecer no Templo de
Jerusalém e na instituição religiosa judaica (“nossos pais adoraram neste
monte, mas vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar”)?
No entanto, Jesus nega que se trate de escolher
entre o caminho dos judeus e o caminho dos samaritanos. Não é no Templo de
pedra de Jerusalém ou no Templo de pedra do monte Garizim que Deus está… O que
se trata é de acolher a novidade do próprio Jesus, aderir a Ele e aceitar a sua
proposta de vida (isto é, aceitar o Espírito que Ele quer comunicar a todos os
homens).
Dessa forma – e só dessa forma – desaparecerá a
barreira de inimizade que separa os povos – judeus e samaritanos. A única coisa
que passa a contar é a vida do Espírito que encherá o coração de todos, que a
todos ensinará o amor a Deus e aos outros e que fará de todos – sem distinção
de raças ou de perspectivas religiosas – uma família de irmãos.
A mulher/Samaria responde à proposta de Jesus
abandonando o cântaro (agora inútil), e correndo a anunciar aos habitantes da
cidade o desafio que Jesus lhe faz. O texto refere, ainda, a adesão
entusiástica de todos os que tomam conhecimento da proposta de Jesus e a
“confissão da fé”: Jesus é reconhecido como “o salvador do mundo” – isto é,
como Aquele que dá ao homem a vida plena e definitiva (vs. 28-41).
O nosso texto define, portanto, a missão de Jesus:
comunicar ao homem o Espírito que dá vida. O Espírito que Jesus tem para
oferecer desenvolve e fecunda o coração do homem, dando-lhe a capacidade de
amar sem medida. Eleva, assim, esses homens que buscam a vida plena e
definitiva à categoria de Homens Novos, filhos de Deus que fazem as obras de
Deus. Do dom de Jesus nasce a nova comunidade.
ATUALIZAÇÃO
• A modernidade criou-nos grandes expectativas.
Disse-nos que tinha a resposta para todas as nossas procuras e que podia
responder a todas as nossas necessidades. Garantiu-nos que a vida plena estava
na liberdade absoluta, numa vida vivida sem dependência de Deus; disse-nos que
a vida plena estava nos avanços tecnológicos, que iriam tornar a nossa
existência cômoda, eliminar a doença e protelar a morte; afirmou que a vida
plena estava na conta bancária, no reconhecimento social, no êxito
profissional, nos aplausos das multidões, nos “cinco minutos” de fama que a
televisão oferece… No entanto, todas as conquistas do nosso tempo não conseguem
calar a nossa sede de eternidade, de plenitude, dessa “mais qualquer coisa” que
nos falta para sermos, realmente, felizes. A afirmação essencial que o Evangelho
de hoje faz é: só Jesus Cristo oferece a água que mata definitivamente a sede
de vida e de felicidade do homem. Eu já descobri isto, ou a minha procura de
realização e de vida plena faz-se noutros caminhos? O que é preciso para
conseguirmos que os homens do nosso tempo aprendam a olhar para Jesus e a tomar
consciência dessa proposta de vida plena que Ele oferece a todos?
• Essa “água viva” de que Jesus fala faz-nos pensar
no batismo. Para cada um de nós, esse foi o começo de uma caminhada com Jesus…
Nessa altura acolhemos em nós o Espírito que transforma, que renova, que faz de
nós “filhos de Deus” e que nos leva ao encontro da vida plena e definitiva. A
minha vida de cristão tem sido, verdadeiramente, coerente com essa vida nova
que então recebi? O compromisso que então assumi é algo esquecido e sem
significado, ou é uma realidade que marca a minha vida, os meus gestos, os meus
valores e as minhas opções?
• Atentemos no pormenor do “cântaro” abandonado
pela samaritana, depois de se encontrar com Jesus… O “cântaro” significa e
representa tudo aquilo que nos dá acesso a essas propostas limitadas, falíveis,
incompletas de felicidade. O abandono do “cântaro” significa o romper com todos
os esquemas de procura de felicidade egoísta, para abraçar a verdadeira e única
proposta de vida plena. Eu estou disposto a abandonar o caminho da felicidade
egoísta, parcial, incompleta, e a abrir o meu coração ao Espírito que Jesus me
oferece e que me exige uma vida nova?
• A samaritana, depois de encontrar o “salvador do
mundo” que traz a água que mata a sede de felicidade, não se fechou em casa a
gozar a sua descoberta; mas partiu para a cidade, a propor aos seus concidadãos
a verdade que tinha encontrado. Eu sou, como ela, uma testemunha viva,
coerente, entusiasmada dessa vida nova que encontrei em Jesus?
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