Em síntese: O presente artigo aborda o livro do Apocalipse de São João, que não deve ser tido como fonte de argumentos em prol de iminente fim do mundo. O núcleo do livro dispõe-se em três septenários, que recapitulam toda a história da humanidade e da Igreja sob forma simbolista, mostrando que as calamidades de toda e qualquer época estão englobadas num plano sábio de Deus. Este dirá a última palavra da história; todavia o livro não permite calcular a data da consumação dos tempos ou da segunda vinda de Cristo. O Apocalipse é um livro de reconforto e esperança, e não um livro de apavoramento. Há de ser lido dentro dos parâmetros do respectivo gênero literário apocalíptico, que tem seu estilo e seu linguajar próprios. Quem não leva em conta tais peculiaridades, corre o risco de deduzir do texto sagrado o que ele não quer dizer.O Apocalipse, com seus símbolos e suas cenas aterradoras, presta-se à tentativa de se calcular a data do fim do mundo e das calamidades que, como se crê, o devem preceder. Visto que a interpretação do livro não é fácil, pois requer critérios precisos deduzidos do próprio gênero literário apocalíptico, vamos, a seguir, apresentar o problema suscitado pelo livro e a solução mais plausível para o mesmo.
Dividiremos a nossa exposição em cinco partes: I. Que é um Apocalipse?; II. O contexto histórico do Apocalipse de São João; III. A interpretação do Apocalipse; IV. Questões especiais; V. Conclusão.
1. Que é um Apocalipse?
A palavra grega apokálypsis quer dizer revelação. O gênero literário das revelações (ou apocalíptico) teve grande voga entre os judeus nos dois séculos imediatamente anteriores e posteriores a Cristo. A sua origem se deve principalmente ao fato de que os autênticos profetas foram escasseando em Israel após o exílio babilônico (587-538 a.C.); os últimos profetas bíblicos - Ageu, Malaquias e Zacarias - exerceram o seu ministério nos séculos VI e V a.C.
Ora após o séc. V o povo de Israel continuou sujeito ao jugo estrangeiro: retornando do exílio babilônico em 538 a.C., ficou o domínio persa até Alexandre Magno (336-323 a.C.) da Macedônia, que conquistou a terra de Israel, anexando-a ao Império Macedônico. Após a morte do imperador, a Palestina ficou sob os egípcios (dinastia dos Ptolomeus) até o ano de 200 a.C. Nesta data, os sírios ocuparam e dominaram a terra de Israel, constituindo aí o período dos Antíocos ou Selêucidas. Finalmente, os Romanos em 63 a.C. invadiram o território palestinense e impuseram seu jugo aos judeus, jugo que perdurou até que o povo de Israel foi expulso da sua terra em 70 d.C. (queda e ruína de Jerusalém revoltada). Ora nessas duras circunstâncias de vida o povo de Israel, não tendo profeta, sentia necessidade de ser consolado e alentado para não desfalecer. Foi então que os autores judeus se puseram a cultivar mais assiduamente o gênero literário apocalíptico ou da revelação, que tem afinidade com a profecia, mas, na verdade, não se identifica com esta.
O Apocalipse (revelação) tende a incutir aos leitores uma confiança inabalável na Providência Divina. Todavia, em vez de o fazer de maneira escolar ou meramente teórica, exortando à fé, o autor recorre a um artifício: atribui a um famoso personagem bíblico do passado (Enoque, Moisés, Elias, Daniel) ou a um anjo do Senhor revelações proféticas a respeito da época que ele e seus correligionários estão vivendo. Esse personagem famoso antigo descreve os tempos atribulados que os leitos experimentam e assegura que a tormenta passará, devendo a causa de Deus triunfar da facção dos ímpios; estes serão prostrados, pois ocorrerão em breve o juízo final da história e a consumação dos tempos. É isto que dá ao apocalipse a aparência de profecia; todavia note-se que o autor, ao descrever os fatos de sua época (como se tivessem sido preditos por Enoque ou Moisés...), os descreve na base de suas observações e experiências pessoais. O recurso a personagem famoso da antigüidade como revelador da mensagem é artifício próprio do gênero apocalíptico: tende a incutir mais ânimo e esperança nos leitores; com efeito, se o próprio autor sagrado, contemporâneo dos leitores imediatos, predissesse dias melhores, não teria a mesma autoridade que era inegavelmente reconhecida a Enoque, Moisés, Elias, Daniel... Por sua vez, o escritor sagrado tinha fundamentos para consolar seus companheiros perseguidos e predizer a vitória final do bem sobre o mal, porque esta é anunciada por todas as profecias e promessas feitas a Israel. O autor de um apocalipse nada acrescenta de novo a essas promessas; apenas as torna atuais, repetindo-as de maneira solene e enfática em momento penoso do história do seu povo e anunciando para breve o cumprimento das mesmas. De resto, a Salvação, já oferecida por Deus em fases anteriores de tribulações de Israel, era penhor de que, também dessa vez, o Senhor não abandonaria seu povo.
As páginas mais tipicamente apocalípticas do Antigo Testamento são os capítulos 7 a 12 do livro de Daniel. Estas secções foram escritas no séc. II sob o domínio dos sírios ou Antíocos na Palestina; atribuem a Daniel, famoso varão do séc. VI, a descrição simbolista dos acontecimentos que se desenrolam desde o domínio persa (séc. VI a.C.) até o domínio sírio (séc. II a.C.); em estilo de sonhos que imperaram sobre Israel até Antíoco IV Epifânio (175-164); para os tempos deste, o autor apocalíptico anuncia a intervenção final de Deus e salvação a ser trazida pelo Messias. Não é fácil entender um apocalipse, visto que utiliza exuberante simbolismo e coloca o leitor diante de um cenário cósmico, que conjuga o céu e a terra.
Mais precisamente, podem-se assim caracterizar os elementos formais do gênero apocalíptico.
1) A pseudonímia do autor. Este é um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala-lhes como se fosse um personagem antigo e venerável. É o que se vê claramente, por exemplo, no livro de Daniel. No Apocalipse de São João é um anjo que revela.
2) O caráter esotérico (ou reservado) das revelações. Estas terão sido comunicadas outrora ao venerável personagem da antigüidade; deviam, porém. Ficar em segredo até os dias do autor do apocalipse. Veja-se, por exemplo, Dn 8, 26; 12, 9.
3) Freqüentes intervenções de anjos. Estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros de Deus que colaboram com a Providência Divina na dispensação da salvação aos homens, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. Cf. Ez 40,3; Zc 2,1s; 2,5-9; 5,1-4; 6, 1-8; Ap 7, 1-3; 8, 1-13.
4) Simbolismo rico e, por vezes, singular. Animais podem significar homens e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas. O recurso aos números é freqüente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos (3, 7, 10, 12, 1000 como símbolos de bonança; 31/2 (como símbolo de penúria e tribulação). É a exuberância do simbolismo dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos homens; o leitor ou intérprete deve procurar entender esse simbolismo a partir de passagens bíblicas e extra-bíblicas paralelas (na verdade, há símbolos que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e mui, mil anos...).
Os autores de apocalipses são assaz livres ao conceber seus símbolos, suas visões e personificações; propõem cenas estranhas sem se preocupar com a sua verossimilhança; cf., por exemplo, a Jerusalém nova em Ap 21, 1-27; Ez 47, 1-12.
5) Forte nota escatológica. Os apocalipses se voltam todos para os tempos finais da história e os descrevem com grandiosidade, apresentando a intervenção solene de Deus em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons (estando reservado para Israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa).
Este traço diferencia bem da profecia o apocalipse. A profecia é sempre uma palavra dita em nome de Deus (propheemi = dizer em lugar de); todavia nem sempre visa ao futuro; refere-se muitas vezes a situações do presente, procurando sacudir os homens de sua indiferença religiosa ou da hipocrisia de vida, levando-os a conduta moral mais digna e correta; a profecia tem, sim, um caráter fortemente moralizante, válido para os contemporâneos, mas nem sempre voltado para o futuro ou a escatologia. - Ao contrário, nos apocalipses a índole moralizante desaparece quase por completo; o que preocupa o autor sagrado são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota definitiva dos maus e prêmio para os bons; as visões, os sonhos e os símbolos fantasistas (que já os profetas cultivavam, mas com sobriedade) tornam-se o elemento dominante na forma literária dos apocalipses.
6) O gênero literário apocalíptico foi-se formando, com suas diversas características, através dos séculos ou paulatinamente. Já se encontram alguns de seus elementos nos escritos dos profetas, antes do séc. II a.C. Há mesmo passagens de profetas que têm estilo apocalíptico, como pode haver nos escritos apocalípticos trechos de índole profética. Assim no livro de Daniel são tidas como proféticas as passagens de Dn 2, 34. 44s; 7, 9-14; 12, 1-3.
2. Circunstâncias de origem do Apocalipse de São João
1. No fim do séc. I tornava-se cada vez mais penosa a situação dos cristãos disseminados no Império Romano.
Em verdade, o Senhor Jesus deixou este mundo, intimando aos discípulos aguardassem a sua volta gloriosa; não lhes quis indicar, porém, nem o dia nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladrão que aparece imprevistamente à meia-noite (cf. Mt 24, 43; 1Ts 5,2s); vigiassem, pois e orassem em santa expectativa. Todavia, apesar da sobriedade das palavras de Jesus, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, enquanto ainda vivesse a geração dos Apóstolos mesmos. À medida, porém, que se passavam os decênios, essa esperança se dissipava; a não poucos parecia que Cristo havia esquecido a sua Igreja e que vão era crer no Evangelho.
A situação se tornara ainda mais angustiosa desde que Nero, em 64, desencadeara a primeira perseguição violenta contra os cristãos. "Ser discípulo de Cristo" equivalia, daquela ocasião em diante, a ser tido como "inimigo do gênero humano": manifestava-se cada vez mais a oposição entre mentalidade cristã e mentalidade pagã, de modo que, vivendo em plena sociedade pagã, os cristãos tinham não raro que se abster das festas de família, das celebrações cívicas, dos jogos públicos, até mesmo de certas profissões e ramos de negócio (pois através de todos esses meios se exprimia a mentalidade politeísta e supersticiosa reinante).
Em particular, na Ásia Menor o ambiente era carregado de maus presságios: lá ia tomando proporções cada vez mais avultadas o culto dos Imperadores, a ponto de se tornar a pedra de toque da fidelidade de um cidadão romano à pátria.
Desde 195 a.C. a cidade de Esmirna possuía um templo consagrado à deusa Roma; em 26 d.C. os esmirnenses ergueram outro santuário em honra de Tibério, Lívio e do Senado.
Em Pérgamo, desde 29 a.C., fora instituído o culto do Imperador.
A cidade de Éfeso, nos inícios do reinado de Augusto, construíra um altar dedicado a este soberano no recinto do "Artemision" ou templo de Diana.
Os habitantes da Ásia Menor era especialmente inclinados a tal forma de culto, pois se sentiam altamente beneficiados pelos governantes de Roma, que haviam posto termo às guerras civis na região, assegurando à população prosperidade na indústria, no comércio e na cultura em geral.
Ademais outro perigo para o Cristianismo se fazia notar na Ásia Menor em fins do séc. I. A gente dessa região era dotada de exuberante alma religiosa, de sorte que dava acolhida não somente às religiões tradicionais do Império e ao Cristianismo, mas também a formas de culto ditas "dos mistérios" (de Mitra, Cibele, Apolo...), recém-trazidas do Oriente. Tais mistérios fascinavam pela sua índole secreta e por sua promessa de divinização.
Esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusão: Ásia Menor uma religião que, como o Cristianismo, professasse rigorosamente um Deus único e transcendente manifestado por um só Salvador, Jesus, devia necessariamente defrontar-se em breve com formidável aliança de todas as forças do paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos econômicos deviam armar-se num combate unânime e cerrado contra o monoteísmo cristão; ser discípulo de Cristo, em tais circunstâncias, significaria sofrer o ódio e o boicote geral de parentes, amigos e concidadãos não cristãos, de tal modo que até mesmo na vida cotidiana do lar o cristão se sentiria sufocado por causa de sua fé.
A situação sugeria a não poucos discípulos de Jesus ou a apostasia em relação ao Divino Mestre ou uma espécie de pacto com as idéias do paganismo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmente pelo dualismo ou o repúdio à matéria que a mística oriental muito propalava). Foi em tais circunstâncias sombrias que São João quis escrever o Apocalipse.
2. A finalidade do livro torna-se assim evidente
O autor sagrado visava, acima de tudo, a alentar nos seus fiéis a coragem depauperada; o Apocalipse, em conseqüência, é essencialmente o livro da esperança cristã ou da confiança inabalável no Senhor Jesus e nas suas promessas de vitória.
Pergunta-se então: como terá São João procurado levantar o ânimo e corroborar a esperança dos leitores? Haverá, em nome de Deus, prometido dias melhores aqui na terra em recompensa na fidelidade a Cristo, de maneira que quem fosse hostilizado por causa do Senhor Jesus viria a ser estimado pelos concidadãos e acariciado por prósperas condições de vida temporal (economia feliz, saúde, sucesso nos empreendimentos...)?
Dividiremos a nossa exposição em cinco partes: I. Que é um Apocalipse?; II. O contexto histórico do Apocalipse de São João; III. A interpretação do Apocalipse; IV. Questões especiais; V. Conclusão.
1. Que é um Apocalipse?
A palavra grega apokálypsis quer dizer revelação. O gênero literário das revelações (ou apocalíptico) teve grande voga entre os judeus nos dois séculos imediatamente anteriores e posteriores a Cristo. A sua origem se deve principalmente ao fato de que os autênticos profetas foram escasseando em Israel após o exílio babilônico (587-538 a.C.); os últimos profetas bíblicos - Ageu, Malaquias e Zacarias - exerceram o seu ministério nos séculos VI e V a.C.
Ora após o séc. V o povo de Israel continuou sujeito ao jugo estrangeiro: retornando do exílio babilônico em 538 a.C., ficou o domínio persa até Alexandre Magno (336-323 a.C.) da Macedônia, que conquistou a terra de Israel, anexando-a ao Império Macedônico. Após a morte do imperador, a Palestina ficou sob os egípcios (dinastia dos Ptolomeus) até o ano de 200 a.C. Nesta data, os sírios ocuparam e dominaram a terra de Israel, constituindo aí o período dos Antíocos ou Selêucidas. Finalmente, os Romanos em 63 a.C. invadiram o território palestinense e impuseram seu jugo aos judeus, jugo que perdurou até que o povo de Israel foi expulso da sua terra em 70 d.C. (queda e ruína de Jerusalém revoltada). Ora nessas duras circunstâncias de vida o povo de Israel, não tendo profeta, sentia necessidade de ser consolado e alentado para não desfalecer. Foi então que os autores judeus se puseram a cultivar mais assiduamente o gênero literário apocalíptico ou da revelação, que tem afinidade com a profecia, mas, na verdade, não se identifica com esta.
O Apocalipse (revelação) tende a incutir aos leitores uma confiança inabalável na Providência Divina. Todavia, em vez de o fazer de maneira escolar ou meramente teórica, exortando à fé, o autor recorre a um artifício: atribui a um famoso personagem bíblico do passado (Enoque, Moisés, Elias, Daniel) ou a um anjo do Senhor revelações proféticas a respeito da época que ele e seus correligionários estão vivendo. Esse personagem famoso antigo descreve os tempos atribulados que os leitos experimentam e assegura que a tormenta passará, devendo a causa de Deus triunfar da facção dos ímpios; estes serão prostrados, pois ocorrerão em breve o juízo final da história e a consumação dos tempos. É isto que dá ao apocalipse a aparência de profecia; todavia note-se que o autor, ao descrever os fatos de sua época (como se tivessem sido preditos por Enoque ou Moisés...), os descreve na base de suas observações e experiências pessoais. O recurso a personagem famoso da antigüidade como revelador da mensagem é artifício próprio do gênero apocalíptico: tende a incutir mais ânimo e esperança nos leitores; com efeito, se o próprio autor sagrado, contemporâneo dos leitores imediatos, predissesse dias melhores, não teria a mesma autoridade que era inegavelmente reconhecida a Enoque, Moisés, Elias, Daniel... Por sua vez, o escritor sagrado tinha fundamentos para consolar seus companheiros perseguidos e predizer a vitória final do bem sobre o mal, porque esta é anunciada por todas as profecias e promessas feitas a Israel. O autor de um apocalipse nada acrescenta de novo a essas promessas; apenas as torna atuais, repetindo-as de maneira solene e enfática em momento penoso do história do seu povo e anunciando para breve o cumprimento das mesmas. De resto, a Salvação, já oferecida por Deus em fases anteriores de tribulações de Israel, era penhor de que, também dessa vez, o Senhor não abandonaria seu povo.
As páginas mais tipicamente apocalípticas do Antigo Testamento são os capítulos 7 a 12 do livro de Daniel. Estas secções foram escritas no séc. II sob o domínio dos sírios ou Antíocos na Palestina; atribuem a Daniel, famoso varão do séc. VI, a descrição simbolista dos acontecimentos que se desenrolam desde o domínio persa (séc. VI a.C.) até o domínio sírio (séc. II a.C.); em estilo de sonhos que imperaram sobre Israel até Antíoco IV Epifânio (175-164); para os tempos deste, o autor apocalíptico anuncia a intervenção final de Deus e salvação a ser trazida pelo Messias. Não é fácil entender um apocalipse, visto que utiliza exuberante simbolismo e coloca o leitor diante de um cenário cósmico, que conjuga o céu e a terra.
Mais precisamente, podem-se assim caracterizar os elementos formais do gênero apocalíptico.
1) A pseudonímia do autor. Este é um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala-lhes como se fosse um personagem antigo e venerável. É o que se vê claramente, por exemplo, no livro de Daniel. No Apocalipse de São João é um anjo que revela.
2) O caráter esotérico (ou reservado) das revelações. Estas terão sido comunicadas outrora ao venerável personagem da antigüidade; deviam, porém. Ficar em segredo até os dias do autor do apocalipse. Veja-se, por exemplo, Dn 8, 26; 12, 9.
3) Freqüentes intervenções de anjos. Estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros de Deus que colaboram com a Providência Divina na dispensação da salvação aos homens, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. Cf. Ez 40,3; Zc 2,1s; 2,5-9; 5,1-4; 6, 1-8; Ap 7, 1-3; 8, 1-13.
4) Simbolismo rico e, por vezes, singular. Animais podem significar homens e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas. O recurso aos números é freqüente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos (3, 7, 10, 12, 1000 como símbolos de bonança; 31/2 (como símbolo de penúria e tribulação). É a exuberância do simbolismo dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos homens; o leitor ou intérprete deve procurar entender esse simbolismo a partir de passagens bíblicas e extra-bíblicas paralelas (na verdade, há símbolos que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e mui, mil anos...).
Os autores de apocalipses são assaz livres ao conceber seus símbolos, suas visões e personificações; propõem cenas estranhas sem se preocupar com a sua verossimilhança; cf., por exemplo, a Jerusalém nova em Ap 21, 1-27; Ez 47, 1-12.
5) Forte nota escatológica. Os apocalipses se voltam todos para os tempos finais da história e os descrevem com grandiosidade, apresentando a intervenção solene de Deus em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons (estando reservado para Israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa).
Este traço diferencia bem da profecia o apocalipse. A profecia é sempre uma palavra dita em nome de Deus (propheemi = dizer em lugar de); todavia nem sempre visa ao futuro; refere-se muitas vezes a situações do presente, procurando sacudir os homens de sua indiferença religiosa ou da hipocrisia de vida, levando-os a conduta moral mais digna e correta; a profecia tem, sim, um caráter fortemente moralizante, válido para os contemporâneos, mas nem sempre voltado para o futuro ou a escatologia. - Ao contrário, nos apocalipses a índole moralizante desaparece quase por completo; o que preocupa o autor sagrado são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota definitiva dos maus e prêmio para os bons; as visões, os sonhos e os símbolos fantasistas (que já os profetas cultivavam, mas com sobriedade) tornam-se o elemento dominante na forma literária dos apocalipses.
6) O gênero literário apocalíptico foi-se formando, com suas diversas características, através dos séculos ou paulatinamente. Já se encontram alguns de seus elementos nos escritos dos profetas, antes do séc. II a.C. Há mesmo passagens de profetas que têm estilo apocalíptico, como pode haver nos escritos apocalípticos trechos de índole profética. Assim no livro de Daniel são tidas como proféticas as passagens de Dn 2, 34. 44s; 7, 9-14; 12, 1-3.
2. Circunstâncias de origem do Apocalipse de São João
1. No fim do séc. I tornava-se cada vez mais penosa a situação dos cristãos disseminados no Império Romano.
Em verdade, o Senhor Jesus deixou este mundo, intimando aos discípulos aguardassem a sua volta gloriosa; não lhes quis indicar, porém, nem o dia nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladrão que aparece imprevistamente à meia-noite (cf. Mt 24, 43; 1Ts 5,2s); vigiassem, pois e orassem em santa expectativa. Todavia, apesar da sobriedade das palavras de Jesus, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, enquanto ainda vivesse a geração dos Apóstolos mesmos. À medida, porém, que se passavam os decênios, essa esperança se dissipava; a não poucos parecia que Cristo havia esquecido a sua Igreja e que vão era crer no Evangelho.
A situação se tornara ainda mais angustiosa desde que Nero, em 64, desencadeara a primeira perseguição violenta contra os cristãos. "Ser discípulo de Cristo" equivalia, daquela ocasião em diante, a ser tido como "inimigo do gênero humano": manifestava-se cada vez mais a oposição entre mentalidade cristã e mentalidade pagã, de modo que, vivendo em plena sociedade pagã, os cristãos tinham não raro que se abster das festas de família, das celebrações cívicas, dos jogos públicos, até mesmo de certas profissões e ramos de negócio (pois através de todos esses meios se exprimia a mentalidade politeísta e supersticiosa reinante).
Em particular, na Ásia Menor o ambiente era carregado de maus presságios: lá ia tomando proporções cada vez mais avultadas o culto dos Imperadores, a ponto de se tornar a pedra de toque da fidelidade de um cidadão romano à pátria.
Desde 195 a.C. a cidade de Esmirna possuía um templo consagrado à deusa Roma; em 26 d.C. os esmirnenses ergueram outro santuário em honra de Tibério, Lívio e do Senado.
Em Pérgamo, desde 29 a.C., fora instituído o culto do Imperador.
A cidade de Éfeso, nos inícios do reinado de Augusto, construíra um altar dedicado a este soberano no recinto do "Artemision" ou templo de Diana.
Os habitantes da Ásia Menor era especialmente inclinados a tal forma de culto, pois se sentiam altamente beneficiados pelos governantes de Roma, que haviam posto termo às guerras civis na região, assegurando à população prosperidade na indústria, no comércio e na cultura em geral.
Ademais outro perigo para o Cristianismo se fazia notar na Ásia Menor em fins do séc. I. A gente dessa região era dotada de exuberante alma religiosa, de sorte que dava acolhida não somente às religiões tradicionais do Império e ao Cristianismo, mas também a formas de culto ditas "dos mistérios" (de Mitra, Cibele, Apolo...), recém-trazidas do Oriente. Tais mistérios fascinavam pela sua índole secreta e por sua promessa de divinização.
Esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusão: Ásia Menor uma religião que, como o Cristianismo, professasse rigorosamente um Deus único e transcendente manifestado por um só Salvador, Jesus, devia necessariamente defrontar-se em breve com formidável aliança de todas as forças do paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos econômicos deviam armar-se num combate unânime e cerrado contra o monoteísmo cristão; ser discípulo de Cristo, em tais circunstâncias, significaria sofrer o ódio e o boicote geral de parentes, amigos e concidadãos não cristãos, de tal modo que até mesmo na vida cotidiana do lar o cristão se sentiria sufocado por causa de sua fé.
A situação sugeria a não poucos discípulos de Jesus ou a apostasia em relação ao Divino Mestre ou uma espécie de pacto com as idéias do paganismo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmente pelo dualismo ou o repúdio à matéria que a mística oriental muito propalava). Foi em tais circunstâncias sombrias que São João quis escrever o Apocalipse.
2. A finalidade do livro torna-se assim evidente
O autor sagrado visava, acima de tudo, a alentar nos seus fiéis a coragem depauperada; o Apocalipse, em conseqüência, é essencialmente o livro da esperança cristã ou da confiança inabalável no Senhor Jesus e nas suas promessas de vitória.
Pergunta-se então: como terá São João procurado levantar o ânimo e corroborar a esperança dos leitores? Haverá, em nome de Deus, prometido dias melhores aqui na terra em recompensa na fidelidade a Cristo, de maneira que quem fosse hostilizado por causa do Senhor Jesus viria a ser estimado pelos concidadãos e acariciado por prósperas condições de vida temporal (economia feliz, saúde, sucesso nos empreendimentos...)?
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