A
repressão religiosa contra cristãos provocou na Inglaterra mais mortes
do que na Espanha, onde “morreram acusadas de heresia menos pessoas do
que em qualquer país da Europa”.
“Prisão e morte dos dez membros da cartuxa de Londres", de Vicente Carducho.
A Inquisição Espanhola permanece até os dias de hoje como a
representação máxima de intolerância religiosa no imaginário popular. A
"lenda negra", sob cujos alicerces se construiu a propaganda holandesa e
inglesa, em muito contribuiu para confirmar esta idéia, escondendo
debaixo do tapete os dados que demonstram que
a perseguição religiosa durante os séculos XVI e XVII no resto da Europa alcançou cifras assustadoras. Dizer que a Inquisição
era um dos tribunais europeus que mais garantias processuais oferecia,
muito mais do que a justiça civil, significa literalmente que em alguns
países a intolerância religiosa foi praticada sem freios nem obstáculos legais.
A queima de católicos orquestrada por Calvino (somente em Genebra
mandou executar, num espaço de vinte anos, a 5% da população), a caça às
bruxas na Alemanha, a guerra civil vivida na França… Todos os reinos do
período protagonizaram exemplos de barbárie de todo tipo. Mas o que
tornou especialmente chamativo o caso inglês, nos reinados de Henrique
VIII e Isabel Tudor, é que do êxito em liquidar o Catolicismo dependia,
de forma direta, a sobrevivência da monarquia. Isabel I era fruto de um
matrimônio — o de Henrique VIII e Ana Bolena — que dera início a um
cisma na Igreja, o que a convertia numa bastarda, caso fracassasse a
causa anglicana.
A Rainha Virgem não poupou violência para manter-se no poder e reduzir a
cinzas o ressurgimento do Catolicismo que Filipe II e sua esposa
inglesa, Maria Tudor, sonharam em meados do século XVI.
Um banho de sangue por intolerância religiosa
Henrique VIII deu início à perseguição aos católicos em 1534 com o
Ato de Supremacia, que o elevava a chefe absoluto da Igreja da
Inglaterra e declarava traidores a quantos simpatizassem com o Papa de
Roma. Uma longa lista de altos cargos da Igreja rejeitaram a medida e
foram devidamente executados, entre eles Thomas More e o bispo John Fisher. Todas as propriedades da Igreja passaram a mãos reais.
Em 1535, em plena onda de repressão, foram esquartejados os monges da
Cartuxa de Londres com o seu prior, John Houghton, à frente. Foram
enforcados e mutilados na tristemente célebre praça de Tyburn, como
exemplos contra uma ordem caracterizada por sua austeridade e
simplicidade. O balanço final foi de 18 homens, todos reconhecidos
oficialmente pela Igreja Católica como verdadeiros mártires. Do mesmo
modo, o fracasso de uma rebelião católica contra o Rei terminou, em
1537, com a condenação à morte de outras 216 pessoas, 6 abades, 38
monges e 16 sacerdotes.
O sofrimento mudou de bando por um tempo com a subida ao trono de Maria
Tudor, após o falecimento de seu único irmão homem, Eduardo VI. A
"rainha sanguinária" nunca se esqueceria de que, com o divórcio de seus
pais, em 1533, teve de renunciar ao título de princesa e de que, um ano
depois, uma lei do Parlamento inglês a excluiu da sucessão em favor da
princesa Isabel. Sob o reinado de Maria e seu marido, Filipe II de
Espanha, foram executados por heresia quase 300 homens e mulheres entre
fevereiro de 1555 e novembro de 1558. Muitos daqueles perseguidores
fizeram parte da traumática infância de Maria, a começar por Thomas
Cranmer, que, sendo arcebispo de Cantuária, autorizou o divórcio de
Henrique VIII e Catarina de Aragão.
A morte prematura de Maria trouxe ao poder sua irmã Isabel, em 1558. A
esposa de Filipe II a nomeou herdeira em seu testamento com a esperança
de que ela abandonasse o protestantismo, sem suspeitar de que aquilo
implicaria a ruína do Catolicismo nas Ilhas Britânicas. Em pouco tempo,
Isabel virou às avessas os esforços do anterior reinado e se entregou a
uma caça a católicos por todo o país. Como explica María Elvira Roca
Barea,
em seu livro "Imperiofobia e Leyenda Negra" (sem tradução para o português), as
perseguições aos católicos ingleses provocaram mil mortos, entre
religiosos e leigos, em contraste com o que se passou na Espanha, onde
"morreram acusadas de heresia menos pessoas do que em qualquer país da
Europa".
O sistema inglês de denúncias vicinais
O reinado de Isabel I começou com o restabelecimento do
Ato de Supremacia, que tornava obrigatória a assistência aos serviços religiosos do novo culto. Em caso de falta, as sanções iam da flagelação à morte.
Não por acaso, o Estado promovia um sistema de delações de modo que os
que não denunciavam seus vizinhos poderiam parar eles mesmo na prisão. O
alvo eram não apenas os católicos, mas também os calvinistas, quakers,
batistas, congregacionalistas, luteranos, menonitas e outros grupos
religiosos que, na maioria dos casos, se viram forçados a fugir para a
América. Só em tempos de Carlos II de Estuardo mais de 13.000 quakers
foram encarcerados e seus bens, expropriados pela Coroa.
Em 1585, o Parlamento estabeleceu um prazo de quarenta dias
para que os sacerdotes católicos, sob ameaça de morte, deixassem o país e
se proibiu a celebração da Missa inclusive de forma privada.
Não obstante, a repressão aumentou com o fracasso da Grande Armada de
Filipe II em 1588 e o sistema de delação chegou a níveis "nunca sonhados
pela Inquisição". Como assinala Roca Barea, o sistema de espionagem
vicinal permitiu um estrito controle individual e dos movimentos e
viagens de conhecidos, parentes e viajantes. Em questão de dez anos, a repressão conseguiu apagar definitivamente o Catolicismo da Inglaterra.
Toda uma série de supostos complôs católicos, sempre confusos e
baseados em rumores, justificaram que a Coroa recrudescesse a repressão
de forma periódica. O grande incêndio de Londres em 1666 foi imputado
aos católicos e desencadeou uma nova perseguição. Entre 1678 e 1681, uma
suposta conjuração atribuída a Titus Oates deu lugar a ferozes caças.
Paralelamente a estes acontecimentos, a Irlanda serviu-se do
Catolicismo como forma de resistência ao domínio inglês. A religião era
tão-só um fator a mais na guerra por manter a Inglaterra a uma distância
prudencial, mas intensificou a violência e o ódio ao ponto de converter
o conflito em um banho de sangue. Estima-se que um terço da população
irlandesa sofreu as consequências mortais do envolvimento da Irlanda na
guerra civil de 1636 entre monarquistas e republicanos ingleses. Oliver
Cromwell não teve nunca piedade dos rebeldes irlandeses vinculados ao
Catolicismo, confissão pela qual sentia certa antipatia pessoal.
Por César Cervera — ABC História | Tradução: Equipe Christo Nihil Praeponere
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