sábado, 3 de maio de 2014

3º DOMINGO DA PÁSCOA - EMAÚS

COR LITÚRGICA: BRANCO OU DOURADO
(Que o Círio Pascal seja o grande sinal deste Tempo Pascal)

O Senhor ressuscitou! Aleluia! Nesta páscoa semanal a liturgia nos mostra a missão evangelizadora da Igreja, que através do aparecimento do Ressuscitado, torna possível a existência da comunidade e de sua missão: missão que nos ensina a servir, e servindo manifestamos e reconhecemos a presença de Cristo entre nós, e garantimos o milagre da unidade. Como Pedro, aceitamos o convite de Jesus: Segue-me!

1. Situando-nos

Neste terceiro domingo da Páscoa, o Senhor Ressuscitado caminha conosco e nos revela a Palavra viva, senta à mesa e reparte conosco sua vida.
Nesta reunião, partilhamos com Ele as incertezas, as dúvidas e as dificuldades em compreender o caminho pascal. Somos iluminados pela Palavra da Escritura que faz arder nosso coração e nos prepara para o banquete da aliança, onde Ele mesmo se dá como alimento.
Ele vem ao nosso encontro, caminha conosco, abre nossos olhos e ouvidos para compreendermos o sentido da cruz. Deixemo-nos guiar por sua Palavra que nos tira do medo e da timidez e nos faz anunciadores da Boa Notícia.

2. Recordando a Palavra

A leitura do evangelho de Lucas narra o encontro do Ressuscitado com os discípulos de Emaús. Esse texto, exclusivo de Lucas, convida a percorrer o caminho do discipulado para encontrar Jesus ressuscitado, que parte o pão conosco e revela seu amor que inflama nosso coração.
Os dois discípulos representam os cristãos de todos os tempos, sempre a caminho com o Senhor, na década de 80 do primeiro reavivar a fé em Cristo ressuscitado, presente na comunidade solidária que se reúne para partir o pão.

Os dois discípulos, após a morte de seu Mestre na cruz, partem de Jerusalém em direção ao povoado de Emaús. Jesus de Nazaré, que “foi um profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e diante de todo o povo” (24,19), havia suscitado a esperança messiânica de libertação. Os discípulos estão tristes e desiludidos, pois tinham colocado a expectativa num messianismo político nacionalista: “Esperávamos que fosse ele quem libertaria Israel” (24,21).
 Apesar de não terem acolhido o anúncio pascal das mulheres que diziam: “o Crucificado está vivo”, eles lembram, conversam e discutem a respeito de Jesus, mas seus olhos são incapazes de reconhecer a presença viva de Jesus que estava próximo e caminhava com eles.

O Ressuscitado se faz presente no caminho dos que procuram descobrir o significado de suas palavras e obras, dos que fazem memória de sua vida doada totalmente. À luz das Escrituras, os discípulos e discípulas encontram o verdadeiro sentido da paixão e ressurreição de Cristo: “Não era necessário que o Cristo sofresse tudo isso para entrar na glória?” (24,26).
Compreendem que Jesus é o verdadeiro Messias, que realizou o projeto salvífico, passando pelo sofrimento da cruz. “Começando por Moisés e passando por todos os profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, as passagens que se referiam a ele” (24,27). A presença do Ressuscitado ilumina os discípulos, fazendo-os compreender a palavra: “Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (24,32).

A adesão à palavra de Jesus manifesta-se na hospitalidade: “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” (24,29). O gesto de partir e compartilhar o pão suscita a fé no Ressuscitado. Os olhos dos discípulos se abrem e reconhecem a presença de Jesus, quando ele sentou-se à mesa, “tomou o pão, pronunciou a bênção, partiu-o e deu a eles” (24,30).
Na última ceia, Jesus repartiu o pão como dom de sua própria vida (cf. 22,19). Os discípulos de Emaús celebram o memorial de Jesus como gesto de solidariedade, acolhendo o “peregrino” para que pudesse restaurar as forças. Ao repartir o pão de Jesus na comunhão fraterna da vida, eles fazem a experiência de sua presença viva e atuante.

O gesto de Jesus, que recorda sua vida compartilhada, doada por amor, reconduz os discípulos ao caminho. Reavivados na fé e na esperança, os discípulos levantam-se e voltam para Jerusalém, para testemunhar a experiência do encontro com Cristo ressuscitado: “Realmente, o Senhor ressuscitou!” (24,34). Jerusalém, lugar onde Jesus concluiu sua obra de salvação, torna-se o marco inicial da missão dos discípulos, que deve se estender até os confins da terra (cf. At 1,8).

Na primeira leitura dos Atos dos Apóstolos, Pedro, porta-voz dos demais discípulos, apresenta o querigma cristão. Jesus de Nazaré, o Enviado do Pai, realizou “milagres, prodígios e sinais” em favor do povo (2,22). Ele foi acolhido por muitos e rejeitados por outros até a morte na cruz. “Mas Deus o ressuscitou, libertando-o das angústias da morte” (2,24), revelando a eficácia de sua doação a serviço do projeto divino de salvação.
Em Cristo realiza-se plenamente o sentido do salmo de hoje (cf. At 2,25-28; Sl 15, 8-11 (16)). O Pai não abandonou o Filho na morada dos mortos, mas o ressuscitou para a vida plena em sua glória.
A vitória da vida sobre a morte, manifestada em Cristo, plenifica a promessa messiânica de estabelecimento de um reino eterno de salvação (cf. 2Sm 7,12-16). Na obra de Jesus, o Messias (=ungido), a qual culminou com sua exaltação à direita do Pai, cumprem-se as Escrituras. Jesus venceu a morte através da ressurreição, instaurando o reinado eterno da justiça e da paz. Os cristãos tornam-se testemunhas da vida nova, revelada em Cristo: “Deus ressuscitou este mesmo Jesus, e disso todos nós somos testemunhas” (2,32).

O salmo 15 (16) é uma prece de confiança em Deus: “não vais abandonar minha vida no sepulcro”. A experiência da salvação em Deus leva a seguir o caminho da vida, abandonando as falsas seguranças. Assim, o salmista encontra a verdadeira felicidade, que faz exultar de alegria. Cristo ressuscitado, exaltado na glória do Pai, realiza plenamente a esperança de salvação anunciada no salmo.

 A segunda leitura da primeira carta de Pedro convida a testemunhar a fé e a esperança, durante “o tempo de permanência como migrantes” (1,17). Os cristãos, que estavam sofrendo discriminação, opressão, como no tempo do Egito e da Babilônia, são fortalecidos pela presença de Deus, o Pai que ama e acolhe a todos como filhos. O amor do Pai, revelado ao povo ao longo da história da salvação, culminou na vida, morte salvífica e ressurreição de Cristo.
“Fomos resgatados (...) pelo precioso sangue de Cristo, cordeiro sem defeito e sem mancha” (1,19). Jesus, como cordeiro pascal (cf. Ex 12,5), realiza o êxodo que liberta plenamente, conduzindo à comunhão filial com o Pai.
 O seguimento a Cristo, a fidelidade ao seu projeto testemunham a verdadeira fé e esperança em Deus (cf. 1,21). A esperança em Deus, que ressuscitou Jesus dos mortos, assegura o compromisso em defesa da vida e da dignidade dos que são discriminados, marginalizados.

3. Atualizando a Palavra

O Ressuscitado caminha conosco. Sua presença viva torna-se perceptível aos nossos olhos, quando acolhemos os irmãos e nos reunimos para “partir o pão”. Ele alimenta nossa vida, nossa fé, fortalece nosso caminho e nossa missão. A força de sua ressurreição faz renascer nossa esperança, que deve ser testemunhada através de gestos de hospitalidade, de partilha.
“A ressurreição de Cristo produz por toda a parte rebentos deste mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a ressurreição do Senhor já penetrou a trama oculta desta histórica; porque Jesus não ressuscitou em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança viva!” (Evangelii Gaudium, n.278).
 A Palavra transforma nosso coração e revela sua eficácia na Eucaristia, lugar privilegiado do encontro e do reconhecimento do Ressuscitado. “A Eucaristia é o lugar privilegiado do encontro do discípulo com Jesus Cristo. Com este sacramento, Jesus nos atrai para si e nos faz entrar em seu dinamismo em relação a Deus e ao próximo. Existe estreito vínculo entre as três dimensões da vocação cristã: crer, celebrar e viver o mistério de Jesus Cristo, de tal modo que a existência cristã adquira verdadeiramente forma eucarística. Em cada eucaristia, os cristãos celebram e assumem o mistério pascal, participando nele. Portanto, os fiéis devem viver sua fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da eucaristia. A Eucaristia, fonte inesgotável da vocação cristã é, ao mesmo tempo, fonte inextinguível do impulso missionário. Aí, o Espírito Santo fortalece a identidade do discípulo e desperta nele a decidida vontade de anunciar com audácia aos demais o que tem escutado e vivido” (Documento de Aparecida, n.251).

O Papa Francisco mostra que a palavra alcança a máxima eficácia no sacramento: “Não é só a homilia que se deve alimentar da palavra de Deus. Toda a evangelização está fundada sobre esta palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é a fonte da evangelização. Por isso, é preciso formar-se continuamente na escuta da palavra. A Igreja não evangeliza se não se deixa continuamente evangelizar. É indispensável que a palavra de Deus ‘se torne cada vez mais o coração de toda a atividade eclesial’. A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico na vida diária. Superamos já a velha contraposição entre palavra e sacramento e, no sacramento, essa palavra alcança a sua máxima eficácia” (Evangelii Gaudium, n.174).

O gesto de partir e compartilhar o pão, que levou os discípulos de Emaús a reconhecer a presença viva do Ressuscitado, revela a prática das comunidades primitivas de celebrar a Eucaristia. Os cristãos costumavam se reunir para escutar a Palavra, esta reunião culminava na fração do pão, na ceia eucarística (cf. At 2, 42.46).

Justino, mártir, ao falar sobre a Eucaristia ressalta que “no chamado dia do Sol, reúnem-se em um mesmo lugar todos os que moram nas cidades ou nos campos. Lêem-se as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas, na medida em que o tempo o permite. Terminada a leitura, aquele que preside toma a palavra para aconselhar e exortar os presentes à imitação de tão sublimes ensinamentos. Reunimo-nos todos no dia do Sol, não só porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, criou o mundo, mas também porque neste mesmo dia Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos” (Cf. São Justino, mártir. Apologia a favor dos cristãos, século II. Ofício das Leituras, 3º domingo da Páscoa).

4. Ligando a Palavra com ação litúrgica

É o primeiro dia da semana, dia do Senhor. Ele está no meio de nós. Somos uma comunidade reunida em nome d’Ele. Ele nos revigora, abre nossos olhos e nossos ouvidos para lermos os acontecimentos à luz do seu mistério pascal.

Não há do que duvidar: Ele é aquele de quem falava as Escrituras, como testemunham as leituras de hoje.

Na celebração, a proclamação da Palavra ganha pleno significado, como relata a introdução do lecionário: “a economia da salvação, que a palavra de Deus não cessa de recordar e prolongar, alcança seu mais pleno significado na ação litúrgica, de modo que a celebração litúrgica se converta numa contínua, plena e eficaz apresentação desta palavra de Deus. Assim, a palavra de Deus, proposta continuamente na liturgia, é sempre viva e eficaz pelo poder do Espírito Santo, e manifesta o amor ativo do Pai, que nunca deixa de ser eficaz entre as pessoas” (Ordo Lectionum Missae – OLM, n.4).

Ele é também aquele que entra em nossa casa, senta à mesa conosco e partilha conosco seu Corpo entregue e seu Sangue derramado.

Vale lembrar o que afirma o Elenco das Leituras da Missa: “Espiritualmente alimentada nestas duas mesas, a Igreja, em uma, instrui-se mais, e na outra se santifica mais plenamente; pois na Palavra de Deus se anuncia a aliança divina, e na Eucaristia se renova esta mesma aliança nova e eterna. Numa, recorda-se a história da salvação com palavras; na outra, a mesma história se expressa por meio de sinais sacramentais da Liturgia. Portanto, convém recordar sempre que a palavra divina que a Igreja lê e anuncia na Liturgia conduz, como a seu próprio fim, ao sacrifício da aliança e ao banquete da graça, isto é, a Eucaristia. Assim, a celebração da missa, na qual se oferece a Deus o sacrifício de louvor e se realiza plenamente a redenção do homem” (OLM, n.10).

Alimentados nestas mesas, recebemos do Senhor força e coragem para a entrega de nossa própria vida do mundo.
 
 *********
2ª Reflexão
 
 
A liturgia do segundo domingo pascal apresentou a comunidade apostólica e sua fé em Jesus Cristo ressuscitado. Agora, o terceiro domingo apresenta a mensagem que essa comunidade anunciou ao mundo, a pregação dos apóstolos nos primórdios da Igreja: o “querigma”. A perspectiva do anúncio universal é criada pela antífona da entrada, com o Salmo 66[65],1-2: “Aclamai a Deus, toda a terra”, enquanto a oração do dia evoca a renovação espiritual dos que creem e recebem a condição de filhos de Deus.
1ª leitura (At. 2,14.22-33)
A primeira leitura apresenta o “querigma” apostólico, o anúncio – no discurso de Pedro em Pentecostes – da ressurreição de Jesus e de sua vitória sobre a morte. É o protótipo da pregação apostólica. Suprimida a introdução do discurso, por ser a leitura de Pentecostes (At. 2,15-21), a leitura de hoje se inicia com o v. 22, anunciando que o profeta rejeitado ressuscitou, cumprindo as Escrituras (Sl. 16[15],8-10). Não se trata de ver aí uma realização “ao pé da letra”, mas de reconhecer nas Escrituras antigas a maneira de agir de Deus desde sempre, a qual se realiza num sentido “pleno” em Jesus Cristo. Ou melhor: naquilo que se vê em Jesus, aparece o sentido profundo e escondido das antigas Escrituras. O importante nesse querigma é o anúncio da ressurreição como sinal de que Deus “homologou” a obra de Jesus e lhe deu razão contra tudo e todos. Isso é atestado não só por testemunhas humanas, mas também pelo testemunho de Deus mesmo, na Escritura. O Salmo 16[15], por exemplo, originalmente a prece de quem sabe que Deus não o entregará à morte, encontra em Cristo sua realização plena e inesperada. Esse salmo é também o salmo responsorial de hoje e terá de ser devidamente valorizado.
2ª leitura (1Pd. 1,17-21)
Na segunda leitura, continua a leitura da 1Pd iniciada no domingo passado. Jesus Cristo é visto como aquele que nos conduz a Deus. Sua morte nos remiu de um obsoleto modo de viver. Por meio de Cristo, ou seja, quando reconhecemos e assumimos a validade do seu modo de viver e de morrer, chegamos a crer verdadeiramente em Deus e conhecemos Deus como aquele que ressuscita Jesus, aquele que dá razão a Jesus e “endossa” a sua obra. Isso modifica nossa vida. Desde o nosso batismo, chamamos a Deus de Pai; mas ele é também o Santo que nos chama à santidade (1Pd. 1,16; cf. Lv. 19,2). O sacrifício de Cristo, Cordeiro pascal, obriga-nos à santidade. Os últimos versículos desta leitura (v. 19-21) constituem uma profissão de fé no Cristo, que desde sempre está com Deus: ele nos fez ver como Deus verdadeiramente é, e por isso podemos acreditar que Deus nos ama.
Evangelho (Lc. 24,13-35)
O evangelho é preparado pela aclamação, que evoca o ardor dos discípulos ao escutar a palavra de Deus (cf. Lc. 24,32). Trata-se da narrativa dos discípulos de Emaús (lida também na missa da tarde no domingo da Páscoa). A homilia pode sublinhar diversos aspectos.
1) “Não era necessário que o Cristo padecesse tudo isso para entrar na glória?” (Lc. 24,26). Cabe parar um momento junto ao termo “o Cristo”. Não é apenas de Jesus como pessoa que se trata, mas de Jesus enquanto Cristo, Messias, libertador e salvador enviado e autorizado por Deus. Não se trata apenas de reconhecer a vontade divina a respeito de um homem piedoso, mas do modo de proceder de Deus no envio de seu representante, o “Filho do homem” revestido de sua autoridade (cf. Dn 7,13-14), que deve levar a termo o caminho do sofrimento e da doação da vida (cf. Lc. 9,22.31).
2) Jesus “lhes explicou, em todas as Escrituras, o que estava escrito a seu respeito” (Lc. 24,27). Em continuidade com a primeira leitura, podemos explicitar o tema do cumprimento das Escrituras. As Escrituras fazem compreender o teor divino do agir de Jesus. Enquanto os discípulos de Emaús estavam decepcionados a respeito de Jesus, fica claro agora que, apesar da aparência contrária, Jesus agiu certo e realizou o projeto de Deus. As Escrituras testemunham isso. Jesus assumiu e levou a termo a maneira de ver e de sentir de Deus que, embora de modo escondido, está representada nas antigas Escrituras. Ele assumiu a linha fundamental da experiência religiosa de Israel e a levou à perfeição, por assim dizer. Mas só foi possível entender isso depois de ele ter concluído a sua missão. Só à luz da Páscoa foi possível que as Escrituras se abrissem para os discípulos (cf. também Jo 20,9; 12,16).
3) Reconheceram-no ao partir o pão (cf. Lc. 24,31 e 35). A experiência de Emaús nos faz reconhecer Cristo na celebração do pão repartido. Na “última ceia”, o repartir o pão fora reinterpretado, “ressignificado”, pelo próprio Jesus como dom de sua vida pelos seus e pela multidão (Lc 22,19); e à comunhão do cálice que acompanhava esse gesto, Jesus lhe dera o sentido de celebração da nova e eterna aliança (Lc 22,20). Assim puderam reconhecê-lo ao partir do pão. Mas o gesto de Jesus na casa dos discípulos significava também a rememoração do gesto fundador que fora a Última Ceia, a primeira ceia da nova aliança. Desde então, esse gesto se renova constantemente e recebe de cada momento histórico significações novas e atuais. Que significa “partir o pão” hoje? Não é apenas o gesto eucarístico; é também o repartir o pão no dia a dia, o pão do fruto do trabalho, da cultura, da educação, da saúde... Os discípulos de Emaús, decerto, não pensavam num mero rito “religioso”, mas em solidariedade humana. Ao convidarem Jesus, não pensaram numa celebração ritual, mas num gesto de solidariedade humana: que o “peregrino” pudesse restaurar as forças e descansar, sem ter de enfrentar o perigo de uma caminhada noturna. O repartir o pão de Jesus é situado na comunhão fraterna da vida cotidiana. Esse é o “aporte” humano que Jesus ressignifica, chamando à memória o dom de sua vida.
ENTENDER AS ESCRITURAS E PARTIR O PÃO
A liturgia de hoje nos conscientiza de que Jesus, apesar – e por meio – de seu sofrimento e morte, é aquele que realiza plenamente o que a experiência de Deus no Antigo Testamento já deixou entrever, aquilo que se reconhece nas antigas Escrituras quando se olha para trás à luz do que aconteceu a Jesus. Ao tomarmos consciência disso, brota-nos, como nos discípulos de Emaús, um sentimento de íntima gratidão e alegria (“Não ardia o nosso coração...?”, Lc. 24,32) que invade a celebração toda, especialmente quando, ao partir o pão, a comunidade experimenta o Senhor ressuscitado presente no seu meio.
A saudade é a benfazeja presença do ausente. Quando alguém da família ou uma pessoa querida está longe, a gente procura se lembrar dessa pessoa. É o que aconteceu com os discípulos de Emaús. Jesus fora embora... mas, sem que o reconhecessem, estava caminhando com eles. Explicava-lhes as Escrituras. Mostrava-lhes o veio escondido do Antigo Testamento que, à luz daquilo que Jesus fez, nos faz compreender ser ele o Messias: os textos que falam do Servo Sofredor, que salva o povo por seu sofrimento (Is. 52-53); ou do Messias humilde e rejeitado (Zc. 9-12); ou do povo dos pobres de Javé (Sf. 2-3) etc. Jesus ressuscitado mostrou aos discípulos de Emaús esse veio, textos que eles já tinham ouvido, mas nunca relacionado com aquilo que Jesus andou fazendo... e sofrendo.
Isso é uma lição para nós. Devemos ler a Sagrada Escritura por intermédio da visão de Jesus morto e ressuscitado, dentro da comunidade daqueles que nele creem. É o que fazem os apóstolos na sua primeira pregação, quando anunciam ao povo reunido em Jerusalém a ressurreição de Cristo, explicando os textos que, no Antigo Testamento, falam dele, como mostra a primeira leitura de hoje. Para a compreensão cristã da Bíblia, é preciso ler a Bíblia na Igreja, reunidos em torno de Cristo ressuscitado.
O que aconteceu em Emaús, quando Jesus abriu as Escrituras aos discípulos, é parecido com a primeira parte de nossa celebração dominical, a liturgia da palavra. E muito mais parecido ainda com a segunda parte, o rito eucarístico: Jesus abençoa e parte o pão, e nisso os discípulos o reconhecem presente. Desde então, a Igreja repete esse gesto da fração do pão e acredita que, neste, Cristo mesmo se torna presente.
Emaús nos ensina as duas maneiras funda-- mentais de ter Cristo presente em sua ausência: ler as Escrituras à luz de sua memória e celebrar a fração do pão, o gesto pelo qual ele realiza sua presença real, na comunhão de sua vida, morte e ressurreição. É a presença do Cristo pascal, glorioso – já não ligado ao tempo e ao espaço, mas acessível a todos os que o buscam na fé e se reúnem em seu nome.
 
 
 
 
 
padre Johan Konings, sj
 

Nenhum comentário: