segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O SOL DO MEIO DIA.

O Salmo 23 (ou, pela numeração da septuaginta, o salmo 22), talvez o mais belo dos Salmos, revela a promessa de uma vida plena e perfeita, por isso atrai a atenção de muitas pessoas, o que o torna um dos mais conhecidos até mesmo por aqueles que não crêem.
É bastante comum vê-lo como nome de fantasia em alguns comércios ( Oficina Salmo 23, panificadora Salmo 23 e etc.), Para-brisas de carros e para-choques de caminhões, como também não é incomum encontrar nas estantes das casas, Bíblias abertas com a página deste Salmo, em sua maioria até empoeiradas pelo desuso. Versículo impresso e exposto em quadros nas paredes da sala de entrada de muitos lares também não é algo raro. Não se questiona a citação desse salmo ou que seja de outro, mas a profundidade da confiança daqueles que o expõe.  
É um Salmo de confiança, descrito por alguém que conhece verdadeiramente o seu Pastor. Assim, por confiar, busca nesse Pastor seus cuidados e sua proteção. A partir dessa confiança, é possível contemplar os pastos verdejantes, as águas tranquilas, uma alma refrigerada, um cajado que consola, uma mesa preparada na presença de inimigos, um cálice transbordante, bondade e misericórdia.
 A confiança é a diferença entre o que pode ser a sua vitória ou o seu fracasso. 
Conhecer o Pastor é a certeza de uma vida plena. “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará”. Pra que nada falte, é preciso reconhecer o Senhor como seu pastor. O salmo evidencia exatamente todo esse cuidado de Deus por aqueles que Nele confiam. 
Reconhecer o Pastor é reconhecerem-se ovelhas, e como tal, entender que se vive peregrinando pelas veredas deste mundo sombrio e por serem fracas e limitadas, dependem totalmente do seu Pastor. 
Está com o vento a favor, com as correntes favoráveis, a beleza do texto fica exposta e provoca a euforia de publicá-los das mais variadas formas e até ler para quem ainda não os conhece. Mas até que ponto estes eufóricos reconhece o pastor?
Muitas ovelhas acreditam viver  uma vida, em que atestam conhecer o pastor descrito pelo salmista, mas ainda não tiveram a oportunidade de cruzar o seu vale tenebroso. 
Olhar a beleza do salmo por ângulo oposto,  se torna possível quando menos se espera, quando menos se espera, a ovelha encontra-se tomada e lançada dentro do “vale das sombras da morte”. O vale é imprevisível. É o “dia mal” descrito por Paulo na Carta aos Efésios. 
É a tão temível “noite escura”. A abertura para a perca das três virtudes teologais. O declínio da fé, o desvio de uma rota. O amor resfria e a esperança, se dissipa como a gota de orvalho após a chuva.
Porta de entrada para a segunda morte. (destino daqueles que não tiverem seus nomes inclusos no livro da vida. Ap 20,11-15). Momento que a luz da verdade começa a ser ofuscada, perdendo seu brilho e sua intensidade, tornando o homem vulnerável, fraco e cego não enxergando mais essa verdade que o levaria as promessas descritas no salmo. A mente entra em colapso e sofre um eclipse total. 
Ser envolto pelo vale das sombras, é ser dominado pela dor, pelo medo, insegurança, sofrimento, desespero e perda total da confiança no pastor. É o vale da sombra da morte ou vale tenebroso conforme algumas traduções, que envolve por completo. 
O ainda pastor de rebanhos e autor do texto Davi, por várias vezes cruzou por esse vale com seu rebanho. O vale realmente existe em Israel. É um desfiladeiro íngreme, estreito e profundo, fonte de sua inspiração para descrever as agruras que sobrevêm ao homem, mas também, de uma vida plena quando se lança sem medos nos braços do Pastor.  
Josué menciona o “vale da calamidade”. Por Oséias, “vale da aflição”. “Vale das lágrimas” pelo Salmo 84. A verdade é que, uma vez que se encontre dentro desse vale, só restará escuridão, medo e desespero. O vale da sombra, é o momento de maior aflição vivenciada pelo homem. Pode está na descoberta de uma doença grave, do desequilíbrio de uma família, na dor da perda ou ainda no desvio dos retos caminhos do Senhor.  
Um momento difícil, deveras complicado, pois há o  desejo de gritar por Deus, clamar por sua misericórdia , quando Este parece não ouvi-lo, e mesmo diante do seu esforço, nada parece acontecer, então inicia o esfriamento, a incerteza do quanto você vale para Deus, e consequentemente o desânimo. Manifesta-se assim, o terrível sentimento de abandono.  
Sozinho e sem esperança, nada mais resta se não entregar-se aos desejos mais sórdidos ou em algumas mentes menos resistentes, até à morte.  
O desejo de cada vez aprofundar-se na escuridão, somado aos mais variados tipos de tentações todas com muita intensidade, pode ser conclusivo para crer que sua morada será o próprio vale, recebendo o passaporte para a segunda morte (de onde não há ressurreição Ap 20,14) .  
Já não existem forças para lutar ou gritar sabendo que não será ouvido, Jaz agora um vale de conflitos e de aflições. É morte que nos faz sombra. É o terror do lugar que nos infunde e nos consome, é o aniquilamento.

Diante de tanta desesperança, para o autor sempre existirá a certeza da confiança. Por mais concreto que seja o impossível, ainda assim, ele se mantém firme, e mesmo sem ser ouvido seu grito é constante e cada vez mais intenso, pois sempre acredita que uma hora o será. É a confiança. Acreditar sempre é imperativo para se vencer. Em outro “salmo, Davi expressa o “gritar” como forma de mover o céu: “ Na minha angústia, invoquei o Senhor, gritei para meu Deus: do seu templo ele ouviu a minha voz, e o meu clamor em sua presença chegou aos seus ouvidos”*.
Não se pode esquecer também dos gritos intensos e audaciosos do cego por Jesus, quando todos os madavam que se calasse.
Em muitas situações, gritar pelo Pastor, é reconhecê-lo como seu Salvador. Aquele que o protege e o guarda em meios a todas as aflições presente no mundo.
E quando nada acontece? Pelo menos aparentemente, ou melhor, até acontecem, as coisas só pioram após o grito. Tudo parece ser contrário. Onde está a confiança e a esperança no Deus da misericórdia, da benevolência?
A esperança não é algo que se compra ou que se pega. Mas é sim, algo que se pode antecipar. Ter esperança é ter fé. Ter fé é a certeza da vitória antes que esta aconteça. (Hb 11,1) 
Uma coisa é certa, as ovelhas conduzidas por Davi, apenas passavam por esse vale das sombras, não permaneciam. O vale é temporário, não é um posto de permanência. Assim como a dor, o medo, o sofrimento, a angústia, o desvio.  
“O choro pode durar a noite inteira, mas a alegria vem ao amanhecer”. Sl 30,5

Se não há esperança, esse tempo (se curto ou longo) no vale poderá ser suficiente para a ruina completa. Mas estando ela presente, então resplandecerá como o eterno sinal do amor de Deus.
"Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação" II Corintios 4,17

Quando tudo parecer  perdido, em meio a tanta dor e sofrimento, lembra-te do restante do versículo: “nenhum mal temerei pois junto a mim estais”.  
Dentre as muitas frases de Aiden Wilson Tozer(pastor do séc. 18), uma se faz oportuno.

"para fazer em nós a suprema obra de sua graça, Deus vai tirar do nosso coração tudo aquilo que mais amamos. Tudo aquilo que nos leva a confiarmos em nós mesmos. Cinzas amontoadas jazerão onde nossos tesouros mais preciosos costumavam estar".  
Toda tribulação traz em si seu grande ensinamento e a edificação espiritual, tornando o homem mais completo nesse processo de aprendizado contínuo.  
Existe um desígnio de Deus em tudo que acontece ao homem. Mesmo que seja contrário à Sua vontade, mesmo que viva e faça parte desse vale de lágrimas, mesmo que seja uma vida arbitrária, mas em tudo há sua permissão. Permite, pois sabe que deste grande mal ele pode tirar um bem infinitamente maior. 
A ovelha sobrevive em um mundo cão. Um mundo de espinhos e dardos inflamados pelo demônio. Um mundo de guerras injustificadas, de fome, de violência e de morte. Um mundo de um amor que passa por um resfriamento constante. Um mundo que vive seu vale da sombra, sua apostasia. 
Quem poderá subsistir? Quem poderá permanecer de pé?
Um fator importante e que também não pode ser esquecido pela leitura do salmo, é que, o vale existente em Israel, somente recebe a luz do sol em sua base, quando este atinge o meio dia. É quando a luz excede por completo ao vale atingindo seu interior. 
É nesse momento que se pode fazer do vale, seu grande testemunho. É quando se deve crer que mesmo em meio a sensação de abandono, mesmo entregue a mais densa escuridão, existe um fio de esperança. E lemos: “pois junto a mim estais”. E recordamos o profeta que diz: "Quando passares pelas águas, Eu serei contigo; quando, pelos rios, eles não te submergirão; quando passares pelo fogo, não te queimarás, nem a chama arderá em ti" Isaías 43,2 
Deus nunca abandonou o homem diante de suas misérias, seja qual for o seu pecado. Aquela sensação de impotência cominada com o sentimento de solidão era tão somente conflitos gerados por uma mente desesperada . Uma mente alicerçada sem a firmeza de uma base rochosa, sinônimo de uma fé enfraquecida.
Viver a fé em Jesus Cristo único e verdadeiro Pastor quando tudo está bem, pode levar a pessoa a viver uma fé enganada. O louvor, a oração, a adoração podem ser somente superficial. A ausência do fervor, da dedicação e doação ao serviço, pode ser sinal da existência de uma fé limitada. 
Seja qual for o vale pelo qual passe ou venha a passar, não se está sozinho na travessia. Mesmo que se sinta no mais completo abandono, mesmo que tenha sido objeto de escárnio por três ou quatro línguas puritanas escondidas por trás das paredes de concreto de sua congregação religiosa e que, reunidos atraem sobre si, o peso do seu próprio julgamento, mesmo que pra onde olhe não veja saída porque só enxerga sombras, lembre-se de olhar pra cima, espere o sol do meio dia, e a luz da verdade que um dia brilhou dentro de si, resplandecerá com maior intensidade que antes, deixando confundidos todos os ensimesmados que se vangloriam por ainda acreditarem que o suficiente é permanecer escondido entre as paredes e performances exteriorizadas do seu movimento religioso, falando do evangelho que os aproximam somente pelos lábios, mas que seus corações voltam-se precisos na emissão de juízos, pois desconheceram a definição de amar.
Lembrem-se, somente aquele que provou o mais profundo dos abismos, vivenciando uma angústia que nos torna incapazes para descrevê-la, pode nos ensinar que a sua profundeza abismal e limitada experienciado no Getsêmani, foi maior  do que a sua e a minha.
Algum insano pode dizer: “ah, mas ele era Deus e não homem”. Não, toda sua agonia foi suportada como homem e não como Deus. Em contrário, Ele teria chamado legiões de anjos para batalhar em seu favor.
Jesus experimentou o mais profundo da angústia e da aflição, mas as a suportou até o fim.
Que sirva para todas as ovelhas em seus momentos de vale das sombras, olhar para a cruz, e encontrar a consolação.

“De fato, por ter ele mesmo suportado tribulações, está em condição de vir em auxílio dos que são atribulados”.(Hb 18,2)


*citações Bíblia da Ave Maria

Por
Wellington Dantas (Matéria adaptada, publicada em 15.06.11 no semeandorccpdf.blogspot.com)

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