quinta-feira, 5 de maio de 2016

"GAME OF THRONES" E A MULHER MEDIEVAL

O seriado de maior sucesso no mundo hoje está cheio de estupros e mortes violentas. A justificativa do autor para a barbárie é esta: o programa se passa na Idade Média. Mas será que as coisas eram mesmo assim nesse período da história?


 
Game of Thrones iniciou sua sexta temporada na noite deste domingo (24) com os fãs em polvorosa. A série da HBO, baseada nos livros de George R. R. Martin, deu continuidade à disputa medieval para ver que família teria direitos sobre o Trono de Ferro. Apesar dos bons índices de audiência, no entanto, a aguardada estreia também foi acompanhada por polêmicas. No ano passado, uma cena de estupro causou estardalhaço na opinião pública, levando os produtores a repensarem alguns capítulos. Agora, um abaixo assinado pede um boicote ao programa, rebatizado por seus críticos de Shame of Throne ("Vergonha do Trono", em tradução livre), por tornar a violência sexual um "entretenimento de massa".
Na época em que a cena foi levada ao ar, o escritor George R. R. Martin tentou justificar o trágico desfecho de uma das suas personagens, estuprada pelo vilão da história, dizendo que o contexto social de Game of Thrones é a Idade Média. "Não era um tempo de igualdade sexual. Era muito classista, e as pessoas eram divididas em três classes. Eles tinham ideias firmes sobre o papel da mulher", enfatizou Martin.
A fala do escritor traduz uma mentalidade comum acerca da Idade Média e do lugar que a figura feminina ocupava na sociedade daquela época: para o cidadão médio, a mulher medieval não teria sido nada mais que um objeto do homem.
Mas poderíamos, de fato, fazer um juízo tão temerário assim? Vamos às fontes.
A historiadora Régine Pernoud nos alerta, em primeiro lugar, que pouquíssimos estudos foram consagrados à mulher medieval — "pode-se mesmo dizer que se os poderia contar pelos dedos", enfatiza —, e que, por isso, grande parte das opiniões acerca desse período não passam de "mitos" e "tolices". De concreto, temos, sim, a História Eclesiástica, na qual vemos mulheres aparecerem com a mesma dignidade de um rei, bispo ou abade, e a História do Direito, pela qual podemos compreender o processo que levou à desvalorização feminina nos séculos XVII e seguintes.
É na Idade Média que encontramos a figura das grandes rainhas que, por ocasião de suas coroações, tinham as mesmas honras de um rei, incluindo a bênção e a imposição da coroa pelas mãos do arcebispo, como era de praxe. Recorde-se também que os casamentos arranjados eram tanto para os rapazes quanto para as moças. Pernoud ainda acrescenta este paralelo interessante entre o período medieval e o moderno:
Enquanto uma Eleonora de Aquitânia, uma Branca de Castela dominam realmente seus séculos, exercem poder sem contestação no caso de ausência do rei, doente ou morto, e têm suas chancelarias, suas alfândegas, seus campos de atividade pessoal (que poderia ser reivindicado como um fecundo exemplo para os movimentos feministas de nosso tempo), a mulher, nos tempos clássicos, foi relegada a um segundo plano; exerce influência só na clandestinidade e se encontra notoriamente excluída de toda função política ou administrativa. Ela é mesmo tida como incapaz de reinar, de suceder no feudo ou no domínio, principalmente nos países latinos e, finalmente, em nosso Código, de exercer qualquer direito sobre seus bens pessoais.
O processo de decadência que se observou no papel da mulher na sociedade, e que teve seu cume no século XIX, segundo o exame de nossa historiadora, deve-se, entre outras coisas, à forte influência do direito romano na elaboração dos costumes, a partir do século XVI. O direito romano, conforme explica Pernoud, favorece uma mentalidade autoritária e centralizadora, a qual ignora a importância da esposa e dos filhos na vida do homem. "É o direito do [...] chefe da família com poderes sagrados, sem limites no que concerne a seus filhos; tem sobre eles direito de vida e de morte — e da mesma forma sobre sua mulher, apesar das limitações, tardiamente introduzidas sob o Baixo Império", explica. Não deixa de ser curioso notar que foi sob a batuta de Napoleão Bonaparte — ícone máximo da Revolução Francesa, cujo lema era "liberdade, igualdade e fraternidade" — que se consolidou o novo código moral da mulher.
É óbvio que todo sistema social possui defeitos — graves, na maior parte —, e a Idade Média não se eximiu deles. Mas para daí concluir que o período esteve associado a apenas obscuridades e que a mulher não passava de um meio de satisfação sexual do homem é um tanto quanto injusto, além de ser contrário à história. Vejamos mais alguns exemplos citados por Régine Pernoud:
Certas abadessas eram senhoras feudais cujo poder era respeitado do mesmo modo que o de outros senhores; algumas usavam o báculo como os bispos; administravam, muitas vezes, vastos territórios com cidades e paróquias... Um exemplo, entre mil outros: no meio do século XII, cartulários nos permitem seguir a formação do mosteiro de Paraclet, cuja superiora é Heloisa; basta percorrê-los para constatar que a vida de uma abadessa, na época, comporta todo um aspecto administrativo: as doações que se acumulam, que permitiam perceber ora o dízimo de um vinhedo, ora o direito às taxas sobre o feno e o trigo, aqui o direito de usufruir uma granja, e lá o direito de pastagem na floresta... Sua atividade é, também, a de um usufruidor, ou seja, a de um senhor. Quer dizer que, a par de suas funções religiosas, algumas mulheres exerciam, mesmo na vida laica, um poder que muitos homens invejariam no presente.
Vê-se logo que Game of Thrones está longe de justificar-se pelas suas barbáries televisivas com o argumento de que a Idade Média seria uma época hostil à mulher e as seus direitos. Aliás, quem imaginaria na Idade Média um público de mais de 10 milhões de espectadores assistindo a cenas apelativas de assassinato e violência sexual? "Ah, muitos fãs criticaram", responderiam alguns. Sim! Mas a audiência do programa continua a ser uma das maiores do gênero. Isso acaso não demonstra a aprovação de grande parte do público? Os tempos que tal atitude evoca, sejamos sinceros, não são os da Idade Média, mas os de Roma, com sua política do "pão e circo" e seus jogos de gladiadores. A Idade Média de Game of Thrones não passa de uma ficção. E das grandes. 






Por Equipe Christo Nihil Praeponere

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