O
seriado de maior sucesso no mundo hoje está cheio de estupros e mortes
violentas. A justificativa do autor para a barbárie é esta: o programa
se passa na Idade Média. Mas será que as coisas eram mesmo assim nesse
período da história?
Game of Thrones iniciou sua sexta temporada na noite deste
domingo (24) com os fãs em polvorosa. A série da HBO, baseada nos livros
de George R. R. Martin, deu continuidade à disputa medieval para ver
que família teria direitos sobre o Trono de Ferro. Apesar dos bons
índices de audiência, no entanto, a aguardada estreia também foi
acompanhada por polêmicas. No ano passado, uma cena de estupro causou
estardalhaço na opinião pública, levando os produtores a repensarem
alguns capítulos. Agora, um abaixo assinado pede um boicote ao programa, rebatizado por seus críticos de Shame of Throne ("Vergonha do Trono", em tradução livre), por tornar a violência sexual um "entretenimento de massa".
Na época em que a cena foi levada ao ar, o escritor George R. R. Martin
tentou justificar o trágico desfecho de uma das suas personagens,
estuprada pelo vilão da história, dizendo que o contexto social de Game of Thrones
é a Idade Média. "Não era um tempo de igualdade sexual. Era muito
classista, e as pessoas eram divididas em três classes. Eles tinham
ideias firmes sobre o papel da mulher", enfatizou Martin.
A fala do escritor traduz uma mentalidade comum acerca da Idade Média e
do lugar que a figura feminina ocupava na sociedade daquela época: para
o cidadão médio, a mulher medieval não teria sido nada mais que um
objeto do homem.
Mas poderíamos, de fato, fazer um juízo tão temerário assim? Vamos às fontes.
A historiadora Régine Pernoud
nos alerta, em primeiro lugar, que pouquíssimos estudos foram
consagrados à mulher medieval — "pode-se mesmo dizer que se os poderia
contar pelos dedos", enfatiza —, e que, por isso, grande parte das opiniões acerca desse período não passam de "mitos" e "tolices".
De concreto, temos, sim, a História Eclesiástica, na qual vemos
mulheres aparecerem com a mesma dignidade de um rei, bispo ou abade, e a
História do Direito, pela qual podemos compreender o processo que levou
à desvalorização feminina nos séculos XVII e seguintes.
É na Idade Média que encontramos a figura das grandes rainhas que, por
ocasião de suas coroações, tinham as mesmas honras de um rei, incluindo a
bênção e a imposição da coroa pelas mãos do arcebispo, como era de
praxe. Recorde-se também que os casamentos arranjados eram tanto para os
rapazes quanto para as moças. Pernoud ainda acrescenta este paralelo
interessante entre o período medieval e o moderno:
Enquanto uma Eleonora de Aquitânia, uma Branca de Castela dominam realmente seus séculos, exercem poder sem contestação no caso de ausência do rei, doente ou morto, e têm suas chancelarias, suas alfândegas, seus campos de atividade pessoal (que poderia ser reivindicado como um fecundo exemplo para os movimentos feministas de nosso tempo), a mulher, nos tempos clássicos, foi relegada a um segundo plano; exerce influência só na clandestinidade e se encontra notoriamente excluída de toda função política ou administrativa. Ela é mesmo tida como incapaz de reinar, de suceder no feudo ou no domínio, principalmente nos países latinos e, finalmente, em nosso Código, de exercer qualquer direito sobre seus bens pessoais.
O processo de decadência que se observou no papel da mulher na
sociedade, e que teve seu cume no século XIX, segundo o exame de nossa
historiadora, deve-se, entre outras coisas, à forte influência do direito romano na elaboração dos costumes, a partir do século XVI.
O direito romano, conforme explica Pernoud, favorece uma mentalidade
autoritária e centralizadora, a qual ignora a importância da esposa e
dos filhos na vida do homem. "É o direito do [...] chefe da família com
poderes sagrados, sem limites no que concerne a seus filhos; tem sobre
eles direito de vida e de morte — e da mesma forma sobre sua mulher,
apesar das limitações, tardiamente introduzidas sob o Baixo Império",
explica. Não deixa de ser curioso notar que foi sob a batuta de Napoleão
Bonaparte — ícone máximo da Revolução Francesa, cujo lema era
"liberdade, igualdade e fraternidade" — que se consolidou o novo código
moral da mulher.
É óbvio que todo sistema social possui defeitos — graves, na maior
parte —, e a Idade Média não se eximiu deles. Mas para daí concluir que o
período esteve associado a apenas obscuridades e que a mulher não
passava de um meio de satisfação sexual do homem é um tanto quanto
injusto, além de ser contrário à história. Vejamos mais alguns exemplos
citados por Régine Pernoud:
Certas abadessas eram senhoras feudais cujo poder era respeitado do mesmo modo que o de outros senhores; algumas usavam o báculo como os bispos; administravam, muitas vezes, vastos territórios com cidades e paróquias... Um exemplo, entre mil outros: no meio do século XII, cartulários nos permitem seguir a formação do mosteiro de Paraclet, cuja superiora é Heloisa; basta percorrê-los para constatar que a vida de uma abadessa, na época, comporta todo um aspecto administrativo: as doações que se acumulam, que permitiam perceber ora o dízimo de um vinhedo, ora o direito às taxas sobre o feno e o trigo, aqui o direito de usufruir uma granja, e lá o direito de pastagem na floresta... Sua atividade é, também, a de um usufruidor, ou seja, a de um senhor. Quer dizer que, a par de suas funções religiosas, algumas mulheres exerciam, mesmo na vida laica, um poder que muitos homens invejariam no presente.
Vê-se logo que Game of Thrones está longe de justificar-se
pelas suas barbáries televisivas com o argumento de que a Idade Média
seria uma época hostil à mulher e as seus direitos. Aliás, quem
imaginaria na Idade Média um público de mais de 10 milhões de
espectadores assistindo a cenas apelativas de assassinato e violência
sexual? "Ah, muitos fãs criticaram", responderiam alguns. Sim! Mas a
audiência do programa continua a ser uma das maiores do gênero. Isso
acaso não demonstra a aprovação de grande parte do público? Os tempos
que tal atitude evoca, sejamos sinceros, não são os da Idade Média, mas
os de Roma, com sua política do "pão e circo" e seus jogos de
gladiadores. A Idade Média de Game of Thrones não passa de uma ficção. E das grandes.
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Nenhum comentário:
Postar um comentário