A
vida espiritual não é uma “linha reta”, mas uma escada ascendente, em
que somos chamados a progredir continuamente no amor a Deus. Ninguém faz
planos para viver de salário mínimo eternamente.
O início da vida espiritual é marcado por um sentimento de profunda
gratidão para com Deus. O recém convertido medita sobre sua vida passada
e percebe o quanto o Senhor o amou, mesmo não sendo ele merecedor de
tamanha graça, dada a quantidade de misérias nas quais costumava
chafurdar. Esta relação é a do servo com o Senhor. Trata-se de um amor
inicial, por meio do qual a pessoa abandona aqueles pecados mais
grosseiros, à procura de uma vida mais em conformidade com os
mandamentos da Lei Divina.
O processo de conversão segue para a segunda fase. Muitos autores
espirituais escreveram sobre esse período de transição, cuja meta é a
amizade com Deus [1]. A pessoa passa por
um período de aridez — ou noite escura dos sentidos,
como dizia São João da Cruz —, que nada mais é do que uma purificação
do amor, a fim de que ela vença o egocentrismo e as próprias paixões. Há
o convite a um relacionamento mais íntimo com Jesus, o qual deseja
chamar-nos "amigos".
A segunda conversão é o tempo da generosidade: Deus nos dá a
oportunidade de subir a escada da salvação, atrás do verdadeiro motivo
para nossa existência, isto é, a coroa do céu. Quando Padre Paulo
Ricardo iniciou a campanha
#ProjetoSegundaMorada,
ele pensava justamente na necessidade de progredirmos no amor a Deus,
por meio de uma entrega mais determinada à Sua vontade. Ninguém faz
planos para viver de salário mínimo eternamente. Neste sentido, também o
amor a Deus não pode se resumir a algumas formalidades. De fato, mostramos nosso amor quando agimos por gratuidade, não por causa de uma dívida a ser paga.
É na segunda conversão, portanto, que se inicia o grande combate contra
os pecados veniais e contra aquelas imperfeições que danificam nossa
fraternidade com a Pessoa de Cristo.
Notem: há uma enorme diferença entre a dedicação do empregado ao patrão
e a dedicação do amigo ao outro. Enquanto o primeiro age por interesse,
ainda que seja legítimo e justo, o segundo faz o bem pelo amado, mesmo
que este não possa retribuir. Deus não quer nosso amor simplesmente
porque Ele nos consola com Sua graça e providência; temos de nos
converter ao ponto de chegarmos à conclusão de que valeria a pena viver
para Cristo ainda que não houvesse um Céu. Isso explica o porquê de Deus
permitir a chamada
aridez espiritual neste período do caminho para a perfeição. Ele se esconde para que o procuremos com determinada determinação.
Os escritores espirituais falam também de uma terceira conversão. A
primeira, como vimos, é identificada pelo amor de gratidão: o servo ama
seu senhor. No segundo estágio, por sua vez, o servo é convidado a
tornar-se amigo de seu senhor, demonstrando uma capacidade de amar
independentemente dos benefícios desse amor. Já a terceira conversão
consiste no
amor esponsal.
Infelizmente, o contexto supersexualizado no qual vivemos gera certa
confusão no entendimento deste tipo de amor, sobretudo quando se refere
aos homens. Como um homem pode ter um amor esponsal por Jesus? Trata-se
de uma questão aparentemente muito capciosa, mas que, na verdade, diz
respeito ao mais íntimo do ser humano.
O pecado original corrompeu a alma humana, tornando-a refém do diabo.
Pelo batismo, no entanto, essa infeliz condição é anulada através da
graça santificante, a qual Deus infunde no coração do homem para que ele
viva segundo seu organismo espiritual. Deus quer habitar dentro de
nosso interior, pois, como diz Santo Agostinho, Ele é "
interior intimo meo et superior summo meo — maior do que o que
há de maior em mim e mais íntimo do que o que há de mais íntimo em mim"
[2]. Vejam: Deus quer possuir definitivamente nossa alma, ainda que
sejamos criaturas mesquinhas, facilmente seduzidas pelas paixões
profanas.
É disso que se trata o
amor esponsal: uma união total e incorruptível com nosso criador. No texto do Cântico do Cânticos,
lemos a declaração de amor de Jesus a sua Igreja, que somos nós. Esse
amor consiste numa entrega apaixonada até o sacrifício na cruz, pelo que
fica clara agora a comparação do apóstolo entre o amor de marido e
mulher e o amor de Jesus pela Igreja (cf. Ef 5, 25. 29. 32).
Somos chamados a ocupar todos os espaços de nossas vidas com a presença
de Deus; isso significa um amor exclusivo, pois não se pode servir a
dois senhores: ou odiará a um e amará o outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro (Mt 6, 24). O jovem rico cumpria os dez mandamentos, mas não correspondeu ao chamado de Jesus porque possuía muitas riquezas (cf. Mt 19, 22).
A realidade do amor esponsal ilumina outros mistérios do cristianismo
como o próprio celibato dos padres e dos religiosos. Em consequência da
responsabilidade de suas vocações, eles são chamados a uma continência
ainda mais perfeita para que tenham a Deus como único amor de seus
corações. A desistência e os escândalos que ocorrem dentro do ambiente
clerical deve-se justamente à falta de vivência desse amor por Jesus e
pela Igreja.
O
amor esponsal está na raiz de uma vida santa. Por isso o primeiro mandamento ensina logo o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo.
Quem possui esse amor sabe enxergar no outro um filho também amado pelo
Senhor. Porque viviam esse amor, os santos foram os que mais fizeram
bem à humanidade, procurando no semelhante Aquele que habita dentro de
cada um nós, a grande descoberta de Santo Agostinho. Lembremo-nos
sempre: Ele está dentro de nós, não fora!
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Referências
- Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. As 3 vias e as três conversões. 4a. Rio de Janeiro: Editora Permanência, 2011, 104p.
- Santo Agostinho, Confissões, III, 6, 11.
Nenhum comentário:
Postar um comentário