Com a data de 25 de janeiro deste ano de 2006, o Papa Bento XVI tornou pública a primeira encíclica de seu pontificado com o título tomado da primeira carta de João 4,16: “Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele”. Nessa mesma data, celebramos a conversão de Saulo de Tarso que compreendeu a profundidade do amor de Deus e procurou testemunhá-lo pelo resto de sua vida. Antes de expor o conteúdo da encíclica do Papa, pareceu-me ser útil apresentar a revolução operada na vida daquele que fora perseguidor da Igreja nascente.
Eram os primeiros anos da Igreja. Saulo, judeu da tribo de Benjamim, nascido em Tarso da Cilícia, foi fulgurado pelo encontro com Cristo. Saulo é fariseu, mas goza de todos os direitos de cidadão romano. Educado em Jerusalém, inimigo declarado de Jesus Cristo, é um dos perseguidores do diácono Estevão. Depois da morte de Estevão, participou com ferocidade da perseguição promovida pelos judeus contra a igreja de Jerusalém. Apanha os cristãos e os faz prisioneiros. Depois pediu ao sumo sacerdote cartas de apresentação para as sinagogas de Damasco para conduzir prisioneiros a Jerusalém os cristãos daquela cidade.
Enquanto passava pela estrada de Damasco para iniciar a sua expedição, uma luz o abateu por terra e uma voz o interrogou: “por que me persegues?”. Saulo, ofuscado, chegou cego à cidade. Ananias, avisado sobre o acontecimento, o batizará.
Paulo começou a anunciar nas sinagogas a ouvintes estupefatos que Jesus é o Filho de Deus (Atos 9, 22). “Quem és tu, Senhor?, tinha perguntado Saulo à voz que o fez cair por terra: “Eu sou Jesus que tu persegues”. A evidência da fulguração transformou o perseguidor dos cristãos: “Senhor, que quereis que eu faça?”. Do ódio ao amor, o passo é breve, se Jesus de Nazaré se mostra o Cristo e abate o orgulho do homem, fazendo-o instrumento escolhido para levar o seu nome aos gentios. O preço é um só: “Mostrar-te-ei quanto deverás sofrer pelo meu nome”. Absorvido no mistério de Cristo morto e ressuscitado, Paulo não verá mais a cruz senão na transfiguração de glória.
A conversão de Saulo é o acontecimento da revelação do próprio Cristo e da sua Igreja ao escolhido do Senhor para ser apóstolo dos gentios. A aparição no caminho de Damasco revoluciona em um átimo todo o sistema de pensamento e de ação de Saulo, ardente inimigo da cruz. Nesse encontro excepcional com o Senhor, Saulo vê que o messias dos cristãos é verdadeiramente ressuscitado e glorificado, portanto que Deus aprovou a sua obra, e que tudo o que ele disse e fez é justo, é verdadeiro cumprimento das profecias, enquanto as autoridades do seu povo equivocaram-se na interpretação das Escrituras.
Saulo compreende que Jesus é o filho de Deus e que a sua humanidade foi exaltada exatamente através de sua aparente derrota, no suplício da cruz; que parecera condenação definitiva da sua obra. Paulo descobre a “loucura” da cruz; esta se revela verdade e sabedoria, porque compromete Deus mesmo e é, com a ressurreição, a última palavra da revelação divina aos homens e mulheres.
Paulo então se converte: é coinvolto também ele nesta inversão de valores. Ele vê toda sabedoria e poder humano dissolver-se diante da sabedoria e poder de Deus, capazes de realizar o bem até através de meios aptos para destruir. Saulo começa a amar a cruz, e Deus lhe aparece agora definitivamente como aquele que salva, reina e glorifica mediante a cruz. E esta é obra de puro amor: “Ele me amou e deu-se a si mesmo por mim” (Gálatas 2, 20).
No relato dos Atos dos Apóstolos está o coração da revelação que Paulo recebeu naquele dia. Paulo descobre que a Igreja que ele procura exterminar, não é outra coisa que o Cristo mesmo: “Paulo por que me persegues? ... Eu sou Jesus que tu persegues” (Atos 9, 4-5; 22, 7-8; 26,14-15).
A aparição sobre a qual se fundam toda a fé e o apostolado de Paulo foi a revelação do corpo ressuscitado de Cristo, não só como indivíduo, mas como comunidade cristã. Cristo declarava viver nos perseguidos que acreditavam nele e de associá-los intimamente, através da perseguição, à sua cruz e à sua glória.
Assim Paulo encontra Cristo na Igreja que persegue, e de agora em diante não poderá mais encontrar um cristão sem encontrar Cristo. Esta descoberta ele a transmite depois aos seus convertidos: “Pecando assim contra os irmãos, dirá aos coríntios (1Cor 8,12), vós pecais contra Cristo”; “me acolhestes como Cristo Jesus” (Gálatas 4, 14).
O episódio da conversão é também da vocação de Paulo para pregar o Evangelho aos gentios, para que passem das trevas à luz e do poder se satanás a Deus” (Atos 26, 16-18).
Dom Geraldo M. Agnelo - Cardeal Arcebispo de Salvador
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