Os precedentes
O cenário histórico em que aparece Joana d’Arc, é o da guerra dita “dos Cem Anos” (1337-1453) entre a França e a Inglaterra.
Em 1415 Henrique V da Inglaterra invadiu a
França com o intuito de derrubar o rei Carlos VI. Os invasores
encontraram apoio da parte da Borgonha, cujo duque Filipe o
Bom reconheceu Henrique V da Inglaterra como legítimo soberano da
França; ao mesmo tempo, Carlos VI, cuja saúde mental estava abalada,
deserdou seu filho e nomeou o monarca inglês herdeiro e regente do país.
Em 1422, morreram Henrique V e Carlos VI. o filho deste, Carlos VII
fez-se coroar em Poitiers, e estabeleceu sua corte em Bourges, enquanto
os ingleses caminhavam em território francês e assediavam a cidade de
Orleães. Carlos VII era figura fraca, que nada fazia para deter os
invasores, mas, ao contrário, permitia que homens ineptos e gozadores
dirigissem o seu povo.
Foi então que entrou em ação uma jovem de 17 anos, que prometia salvar a França.
lntervenção de Joana
Joana nasceu em Domrémy, de família
camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler e escrever,
mas possuia profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou a
ouvir certas vozes, que ela identificou com as de S. Miguel Arcanjo, S.
Catarina de Alexandria e S. Margarida de Antioquia, virgem e mártir;
exortavam-na a ir socorrer a França.
A este propósito já se põe uma questão
debatida: as revelações que Joana anunciava e que se repetiram até a sua
morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação? – Note-se que
a alucinação significa um estado patológico, fonte de falsos juízos e
de comportamento moral descontrolado. Ora em toda a conduta de Joana
d’Arc não há vestígios de prostração física nem de aberração intelectual
ou de incoerência de dizeres e atitudes; ao contrário, clarividência e
firmeza notáveis se manifestaram. Torna-se, por conseguinte, difícil, se
não ilógico, sustentar a tese das “alucinações”.
Somente três anos mais tarde, em 1428,
a jovem resolveu atender aos apelos celestes. Um tio levou-a então à
presença do capitão Robert de Baudricourt, delegado do rei em
Vancouleurs. Vendo-a, o oficial desprezou-a, devolvendo-a a seu pai;
este ameaçou afogá-la. Joana voltou a procurar o capitão,
impressionando-o por sua energia. Roberto mandou-a ter com o rei Carlos
VII, acompanhada por uma escolta de seis homens, que deviam defendê-la
na caminhada por estradas perigosas. A donzela pediu e obteve também um
cavalo e trajes masculinos (mais adaptados à missão militar que
ela empreendia). Chegando em Chinon aos 6 de março de 1429, Joana
identificou o rei dissimulado entre os seus cortesões. Logo lhe pediu
soldados para ir levantar o cerco de Orleães. Todavia aquela jovem de 17
anos, vestida de trajes masculinos, não inspirava confiança. Tendo
insistido, Joana foi submetida a interrogatórios e exames sobre a fé e a
moral pelo espaço de três semanas; já que o laudo resultou favorável,
Carlos VII reconheceu o possível valor do empreendimento de Joana.
A situação para a França era tão grave
que somente uma intervenção do céu poderia salvar a nação. O
rei concedeu-lhe então um pequeno batalhão destinado a ir socorrer a
sitiada cidade de Orleães, que estava para cair. Joana não combateria,
mas estimularia os guerreiros, empunhando um estandarte branco, sobre o
qual estava a figura de Cristo entre dois anjos. Finalmente, aos 8 de
maio de 1429 os ingleses muito imprevistamente levantaram o cerco de
Orleães, dando entrada na cidade a Joana d’Arc e sua tropa.
Assim vitoriosa, a jovem quis levar
Carlos VII a Reims para que recebesse a sagração régia – o que se deu a
17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a benemérita heroína Ihe
disse então: “Gentil roi, maintenant est faict le plaisir de Dieu (…)
Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus”.
Joana dava por finda a sua missão, quando
o rei Ihe pediu continuasse a guerra. A donzela, dócil, muito
se empenhou pela reconquista de Paris, mas aos 23 de maio de 1430, perto
de Compiégne, foi presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a
compraram pelo preço de 10.000 francos-ouro, e a levaram para Ruão,
onde Joana deveria ser julgada. Aos ingleses interessava não apenas
manter a donzela encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos
olhos do público. – Este plano haveria de ser executado mediante
pretextos religiosos que, para os homens da época, eram os mais
persuasivos.
Mentalidade do século XV
Não se poderiam entender adequadamente o
processo e as maquinações empreendidos contra Joana d’Arc se não se
levasse em conta a mentalidade de ingleses e franceses da época:
a) Joana dera à sua missão militar um
caráter religioso, dizendo que Deus queria por seu intermédio libertar a
França. – Por conseguinte, os inimigos, para desprestigiá-la, tentariam
demonstrar que Joana de modo nenhum podia ser enviada de Deus, por
estar sob a influência do demônio, como herege, bruxa, impostora, etc. –
Caso isto ficasse comprovado, também o rei Carlos VII perderia a sua
autoridade; seria evidente que se aliara a uma filha de Satanás, por
obra da qual havia sido sagrado. Os franceses poderiam então perder a
esperança de obter a vitória final.
b) A mentalidade popular da época era
levada a crer que vitória obtida em guerra era sinal de que Deus apoiava
o vencedor. Ora os ingleses haviam conseguido um triunfo retumbante em
Azincourt (1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda a
cavalaria francesa, lutando um soldado contra seis cavaleiros. Tão
fulgurante vitória, pensava-se, só teria sido alcançada com a
colaboração do céu; donde podiam muitos concluir que Joana contradizia
ao curso dos acontecimentos sobre o qual Deus já proferira o seu juízo.
c) A própria conduta de Joana se prestava a deturpações… As calamidades que assolavam a França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular, provocando o surto sucessivo de falsos taumaturgos e visionários. Como naquela hora se distinguiria Joana de uma Catarina de la Rochelle ou do pastor Guilherme de Gévaudan, comprovadas vítimas da ilusão? – Além disto, o espírito medieval podia facilmente escandalizar-se com a figura de uma jovem vestida de cavaleiro a cavalgar junto com uma tropa de soldados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém concebia que uma virgem cristã se pudesse apresentar nesses termos. Compreende-se então que muitos dos contemporâneos da heroína se tenham podido iludir a seu respeito.
d) Será preciso levar em conta também a
colaboração da Universidade de Paris, setor de grande autoridade, que os
ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que então animava os
professores dessa instituição, não era muito sadio. Tendiam a
considerar-se os luzeiros da S. Igreja; os mais moderados entre eles
ficavam céticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, lhe eram
energicamente contrários. A pobre camponesa, com seus poucos anos
de idade, deixava-se guiar por pretensas visões mais do que pelas idéias
dos professores; queira passar por mais perita do que os capitães do
exército, sem pedir vênia nem autorização aos doutos lentes!
À luz destas características da mentalidade da época, analisemos agora.
O desfecho da história de Joana
Os ingleses, tendo que apelar para
motivos religiosos na sua ação contra a jovem guerreira, encontraram
apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon,
todo devotado à causa dos invasores e, por isto, refugiado em Ruão,
território possuído pelos ingleses.
Não foi difícil encontrar pretexto para
se iniciar um processo contra Joana: as suas apregoadas
mensagens celestiais forneciam fundamento a acusações de bruxaria e
heresia! Cauchon foi constituído presidente do respectivo tribunal. Para
dar ao júri o aspecto e a autoridade de tribunal da Inquisição
(tribunal oficial da S. Igreja!), chamaram a participar da mesa o
Vice-inquisidor de Ruão, Jean Lemaitre. Cauchon convidou ainda grande
número de assessores e jurados, aos quais o governo inglês fez saber que
tinha meios para os coagir, caso rejeitassem participar do
processo; 113 juristas aceitaram a intimação, dos quais 80 pertenciam à
Universidade de Paris.
O júri era de todo ilegítimo, pois
Cauchon não tinha sobre Joana nem a autoridade de bispo diocesano nem a
de legado pontifício. A Santa Sé não fora em absoluto informada da
constituição de tal tribunal.
Contudo o processo foi encaminhado. A
jovem sofreu maus tratos físicos e morais; submetida a interrogatórios
capciosos, que visavam a arrancar-lhe a confissão de heresia
e superstição, respondeu sempre com simplicidade e nobreza; chegou a
apelar para o Santo Padre: “Peço que me leveis à presença do Senhor
nosso, o Papa: diante dele responderei tudo o que tiver que responder
Tudo que eu disse, seja levado a Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para
o qual dirijo o meu apelo!” Em vão, porém, apelou.
Finalmente, após peripécias diversas,
Joana foi fraudulentamente condenada qual herege, relapsa,
apóstata, idólatra. Entregue ao braço secular, sofreu a morte pelas
chamas aos 30 de maio de 1431, enquanto olhava para o Crucifixo e orava.
Na última manhã de sua vida, ainda dizia Joana a Cauchon: “Eu morro por
causa de V.S.; se me tivésseis colocado nos cárceres da Igreja (….),
isto não teria acontecido.”
A opinião pública viu-se profundamente
abalada pelo ocorrido. Apesar de todas as acusações, a massa do povo
ainda tinha Joana na conta de vítima da injustiça de seus
inimigos. Consequentemente, pouco depois de entrar solenemente em Ruão
(dezembro de 1449), o rei Carlos VII deu início a uma revisão do
processo condenatório, revisão que terminou favorável a jovem. Seguiu-se
em 1445 o inquérito pontifício, já que Joana fora abusivamente
sentenciada em nome da Inquisição: após numerosos interrogatórios, o
arcebispo de Reims, aos 7 de julho de 1456, perante numerosa assembléia
de clérigos e leigos em Ruão, publicou a conclusão do “processo do
processo”, reabilitando a memória da donzela.
De modo oficial e solene, a Igreja restaurou a memória de Joana d’Arc, reconhecendo-lhe os méritos e a santidade em 1920.
Por que tanto se fez esperar essa completa reabilitação?
Os tempos que se seguiram ao ano de 1456,
foram de reação contra o espírito e a vida da Idade Média: na época da
Renascença o adjetivo “gótico” vinha a ser sinônimo de
“bárbaro”; quebravam-se os vitrais das catedrais para substitui-los por
vidraças brancas; o famoso poeta Pierre de Ronsard (?1585), imitador dos
clássicos gregos e latinos, qualificava o período medieval de “séculos
grosseiros”; mais tarde, Voltaire (.?1778) e ainda Anatole France (?
1924) mostravam-se diretamente infensos à jovem guerreira de Domrémy.
Foi preciso que a opinião pública em geral proferisse um juízo mais
objetivo sobre a Idade Média para se pensar em exaltar a figura tão
caracteristicamente medieval de Joana d’Arc.
Em conclusão: A condenação de Joana d’Arc
é fato histórico profundamente doloroso. Jamais, porém, poderá ser
considerado fora do contexto do séc. XV, que bem o marca e ilumina.
Trata-se de um processo inspirado por
interesses políticos e nacionais e justificado perante a opinião pública
do séc. XV mediante pretextos religiosos (pretextos que
podiam impressionar naquela época). Lamentavelmente houve prelados e
clérigos que se prestaram ao papel de juízes de Joana d’Arc. Não
procederam, porém, em nome da autoridade suprema da Igreja, mas, sim,
por autoridade a eles conferida pelo rei da Inglaterra.
Entende-se, pois, que a S. Igreja, de maneira oficial e solene, tenha procedido à reabilitação e canonização de Joana d’Arc.
__________________________ Por D. Estevão Bettencourt,osb
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