segunda-feira, 16 de junho de 2014

DOIS PAPAS NO YAD VASHEM: O QUE ELES DISSERAM?

Francisco e João Paulo II nos legaram discursos extraordinários diante do mistério do mal.

Como brincam as paródias literárias, "era uma noite escura e tempestuosa". 21 de março de 2000, para ser mais preciso: naquela noite, eu fui do hotel Hilton de Jerusalém até o Centro Notre Dame para encontrar um funcionário do Vaticano que tinha me prometido um disquete com os discursos que João Paulo II faria durante a sua épica visita à Terra Santa.

O disquete foi devidamente entregue e, de volta ao meu quarto de hotel, fui lendo os discursos com especial atenção para o que o papa polonês diria quando visitasse o Memorial do Holocausto no Yad Vashem, evento sobre o qual tinha havido considerável controvérsia. O texto, que só poderia ter vindo das próprias mãos de João Paulo II, dava fim àquela tagarelice com quatro frases perfeitamente trabalhadas:

"Neste lugar de memórias, a mente, o coração e a alma sentem uma necessidade extrema de silêncio. Silêncio no qual lembrar. Silêncio no qual tentar dar sentido às lembranças que vêm à tona. Silêncio porque não há palavras suficientemente fortes para deplorar a terrível tragédia da Shoah".

Mais tarde, recebi um telefonema de um amigo israelense, distinto e erudito soldado que conhecia bem o mundo do poder e que tinha trabalhado para encontrar um caminho de paz realista em situações onde muita gente só estava interessada no próximo assassinato. "Eu tinha que lhe contar", disse ele, "que a minha esposa e eu choramos durante toda a visita do papa ao Yad Vashem. Foi a sabedoria, a humanidade e a integridade personificadas. Não faltou nada. E não precisava ser dito mais nada".

A visita de João Paulo II ao Yad Vashem teve um impacto singular por muitas razões: o fato de ele ter sido o primeiro bispo de Roma a visitar o Memorial do Holocausto; o fato de ele ter perdido amigos na Shoah; o fato de muitas das mortes terem ocorrido na sua Polônia natal; a autoridade moral única que ele tinha conquistado com o seu próprio testemunho de respeito à liberdade religiosa e a outros direitos humanos fundamentais, pelos quais ele também tinha sofrido pesadamente.

Ainda assim, com o caráter único da peregrinação de João Paulo II ao Yad Vashem, a recente visita do papa Francisco à chama eterna do mesmo Saguão da Lembrança não passou sem irradiar ao mundo a sua própria ressonância extraordinária. Em um discurso notável, muito pouco relatado por uma imprensa mundial obcecada com a política do Oriente Médio, Francisco se atreveu a assumir a voz de Deus no terceiro capítulo do livro do Gênesis, perguntando à humanidade:

"Adão, onde estás? Onde estás, ó homem? O que foi que fizeste? (...) Adão, quem és? Não te reconheço mais... Quem és tu, ó homem? Em que te transformaste? De que horror foste capaz? O que te fez cair em tais profundidades?

Não foi, certamente, o pó da terra de que foste feito. O pó da terra é bom: é obra das minhas mãos. Não foi, certamente, o sopro da vida que eu inspirei dentro de ti. Este sopro vem de mim e é algo bom.

Não, este abismo não é apenas obra das tuas mãos, do teu coração... Quem foi que te corrompeu? Quem foi que te desfigurou? Quem foi que te levou a acreditar que és o mestre do bem e do mal? Quem te convenceu de que tu és Deus? Não apenas torturaste e mataste os teus próprios irmãos e irmãs, como os sacrificaste a ti mesmo, porque fizeste de ti mesmo um deus".

O profundo senso que o papa Francisco tem do mistério do mal continua fugindo ao entendimento daqueles que o imaginam como um papa inconsistente. A pregação constante do Santo Padre sobre a misericórdia divina se vincula aos seus lembretes persistentes de que o maligno age no mundo e que seus efeitos da sua ação estão à nossa volta. Somente quando reconhecemos isto é que podemos dizer, como Francisco disse no Yad Vashem:

"Lembra-te de nós na tua misericórdia. Concede-nos a graça de ter vergonha do que nós, homens, fizemos; de ter vergonha dessa ingente idolatria, de termos desprezado e destruído a nossa própria carne, à qual Tu deste a vida com o teu próprio sopro de vida". 

 

 

 

 

 

  George Weigel 

 

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