terça-feira, 7 de maio de 2013

EM QUE MEDIDA A "FALTA DE FÉ" PODE SER MOTIVO PARA A DECLARAÇÃO DE NULIDADE MATRIMONIAL

Entrevista com o professor de direito matrimonial Miguel Ángel Ortiz, da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, juiz no tribunal de apelação do Vicariato de Roma 
 
Por Sergio Mora


Pouco antes de terminar o seu pontificado, Bento XVI falou da falta de fé como motivo de nulidade matrimonial, durante a sua alocução anual à Rota Romana e no âmbito do Ano da Fé. Seria uma nova causa de nulidade, como alguns meios de comunicação noticiaram? Ou algo relacionado diretamente com a “hora do sim”?
O padre Miguel Ángel Ortiz, professor de direito matrimonial e juiz no tribunal de apelação do Vicariato de Roma, aborda os matizes da questão nesta entrevista.
Por que sempre existem duas instâncias judiciais para avaliar a nulidade de um casamento?
Prof. Ortiz: Porque o matrimônio possui o favor do direito: presume-se que a pessoa que se casou está casada de verdade. O casamento é muito natural, é a institucionalização da vocação mais radical do homem, a vocação ao dom de si mesmo, e por isso nós precisamos de uma prova forte para concluir que a pessoa que contraiu o matrimônio não quis ou não podia se casar. Por esse motivo, para as pessoas poderem voltar a se casar, é necessário que existam dois tribunais que considerem nulo aquele casamento. Normalmente, os processos se resolvem no mesmo país onde foi celebrado o casamento. Se as duas sentenças não forem conformes, ou se um dos cônjuges pedir expressamente, aí sim é que se recorre ao tribunal da Rota Romana.
Chegou a ser veiculado que o problema das nulidades fáceis era mais dos advogados que dos juízes…
Prof. Ortiz: O advogado apenas assessora. Não seria necessário recorrer a um advogado, mas há uma complexidade técnica que faz a pessoa precisar de assessoramento. É claro que o advogado tem que ser honrado e não pode falsificar nada: ele também se compromete com a causa da verdade. Além disso, o juiz conta com provas, testemunhas, perícias, documentos, que o ajudam a ter a certeza moral sobre o fundamento ou a falta de fundamento do pedido de nulidade.
A questão é se houve impedimento ou vício do consentimento no momento do matrimônio?
Prof. Ortiz: Por isso é que as sentenças de nulidade são declarativas e não constitutivas. O juiz não diz de quem é a culpa pelo fracasso do casamento. O que ele diz é se na origem do casamento, quando os noivos se casaram, houve mesmo o matrimônio. O juiz declara então que, apesar da aparência, que, no caso, foi a celebração, na realidade não houve matrimônio, ou seja, que apesar de alguém ter dito que queria se casar, esse alguém não quis de verdade ou não podia casar, ou então houve algum vício de forma ou algum impedimento.
Muitas coisas são subjetivas e dependem do que a pessoa declara, mas a pessoa pode tentar enganar…
Prof. Ortiz: Ela pode tentar enganar, pode também enganar a si própria… Mesmo pensando que é sincera, ela pode ser traída pela memória, ou condicionada pelo trauma do fracasso matrimonial. Antigamente, considerava-se que o juiz não podia levar em conta o que as partes diziam, porque presumia-se que elas sempre mentem em favor próprio.
E hoje em dia?
Prof. Ortiz: Graças a Deus, não. O juiz não pode desconfiar sistematicamente do que os cônjuges dizem, mas também não pode ignorar que, às vezes, as pessoas podem enganar a si mesmas ou tentar enganar o tribunal. Hoje, você considera que a pessoa quer esclarecer a sua situação. O juiz tem que acreditar nas pessoas, dar crédito ao que elas afirmam, tanto com as palavras quanto, principalmente, com o comportamento, com fatos comprovados. A jurisprudência costuma afirmar que os fatos são mais eloquentes que as palavras. Por exemplo, se eu digo que excluí a indissolubilidade do matrimônio, mas o matrimônio durou muitos anos, e eu fiz numerosas tentativas de salvá-lo, então os fatos podem desmentir aquilo que eu afirmo.
Quais são as porcentagens de nulidades matrimoniais nos diversos países?
Prof. Ortiz: Depende dos países. João Paulo II alertou sobre uma visão que pode parecer pastoral, porque o juiz sabe que a decisão dele afeta o futuro dos esposos e, possivelmente, o acesso deles aos sacramentos. É uma atitude que pode parecer pastoral, mas na verdade não é: ela acontece quando o juiz cede à “tentação” de “favorecer” a pessoa, para que ela possa voltar a se casar, mesmo sem ter chegado à convicção que o direito pede que ele tenha: a “certeza moral”. João Paulo II ressaltou em 1990, e Bento XVI retomou o tema, que a pastoralidade não consiste em agir contra o direito. Se você dita uma sentença de nulidade da qual não tem uma certeza firme, porque não se sustenta nas provas, porque é na verdade um “favor” que não corresponde à verdade, isso não é uma pastoralidade verdadeira, porque ela levaria a pessoa a viver contra a sua verdadeira condição. Como voltar a se casar já estando casado.
E, nesse caso, de quem é a responsabilidade?
Prof. Ortiz: Diante de Deus e diante da consciência, é de cada um, é um problema para o juiz e também para quem mentiu. Nos Estados Unidos, conforme dados aproximados, as decisões afirmativas, ou seja, aquelas que concluem que existe a nulidade, se aproximam de 90% dos casos apresentados. Na Itália a porcentagem é sensivelmente menor, talvez porque haja uma cultura jurídica mais consolidada. Também pode influenciar a atitude pastoralista, a que eu me referi antes. Corremos o risco de a Igreja caia numa mentalidade divorcista, que considera que matrimônio fracassado é matrimônio nulo. Mas não é assim.
Bento XVI levantou o problema de que a falta de fé prejudica o matrimônio e poderia ser causa de nulidade?
Prof. Ortiz: Todos os anos, o papa faz a sua alocução à Rota Romana. Desta vez, no Ano da Fé, ele quis aproveitar para enfatizar a relação entre casamento e fé. Bento XVI parte de uma premissa que está na base dos discursos de João Paulo II em 2001 e em 2003, nos quais ele tratou da relação entre o matrimônio natural e o matrimônio sacramental. Não existem dois matrimônios (civil e religioso), mas só um, a união do homem e da mulher que formam uma só carne e que João Paulo II tinha chamado, numa catequese anterior, de sacramento primordial, de onde podemos concluir que todo casamento tem uma natureza sagrada.
Como é que a fé incide?
Prof. Ortiz: Bento XVI reforça a raiz comum da fé (fides) e a aliança (foedus) matrimonial natural, e também a fidelidade (fidelitas) matrimonial. Isso quer dizer que a fé sustenta e reforça a fidelidade conjugal. João Paulo II, na exortação Familiaris Consortio, de 1981, tinha dito também que toda decisão de casar-se “naturalmente” (em “um amor indissolúvel e numa fidelidade incondicional”) obedece sempre à ação da graça, mesmo que os cônjuges não sejam plenamente conscientes. Se eles têm essa intenção de “fazer o que a Igreja faz”, o consentimento é suficiente.
Por que você diz “o que a Igreja faz” e não “o que a Igreja diz”?
Prof. Ortiz: Porque o sinal sacramental (o que a Igreja faz quando celebra o matrimônio dos batizados) é o próprio casamento da criação, o casamento natural. Como acabei de dizer, o verdadeiro consentimento é sempre sustentado pela graça. Mesmo que os cônjuges não saibam, Deus une esse casal. Para viver isso em plenitude, e na exigência da fidelidade conjugal, a fé ajuda. A graça não transforma o casamento, mas ajuda a vivê-lo com plenitude. Por isso é que o papa Bento XVI elogiou os cônjuges em dificuldades ou abandonados que permanecem fiéis com a ajuda da fé.
Fé e consentimento?
Prof. Ortiz: A propósito da incidência da fé na validade do matrimônio, Bento XVI cita algumas proposições da Comissão Teológica Internacional do ano de 1977, na quais se diz que, embora a fé pessoal não seja necessária para o casamento, seria de se avaliar, quando falta a disposição para crer (ou seja, para deixar a graça agir), se também não falta a mesma disposição para casar-se. Por outro lado, na Familiaris Consortio, João Paulo II destaca como a falta de fé pode influenciar a validade do casamento: se os cônjuges rejeitam de maneira explícita e formal “o que a Igreja realiza quando celebra o matrimônio dos batizados” (a união fiel, indissolúvel e aberta à vida), o consentimento seria só aparentemente matrimonial, e o matrimônio seria inválido.
Portanto, não pela fé, mas pela exclusão das condições inerentes ao matrimônio?
Prof. Ortiz: Aliás, alguns anos antes, João Paulo II tinha dito, em outro discurso à Rota, que a falta de fé podia anular o casamento “só se negasse a sua validade no plano natural, em que se situa o próprio sinal sacramental”. Na jurisprudência, é relativamente frequente encontrar decisões que consideram válido o casamento de quem não desejava o sacramento e só tinha se casado na Igreja para fazer um favor ao outro cônjuge, desde que a falta de fé não tivesse significado uma rejeição (uma exclusão) do matrimônio em si ou de uma propriedade ou elemento essencial dele.
O que entra em jogo, enfim, é o que se quis no momento do sim, e não a fé vinte anos depois?
Prof. Ortiz: Certamente, a validade ou nulidade do matrimônio tem que fazer referência sempre à existência de um verdadeiro consentimento no momento de casar, não no desenrolar-se da vida matrimonial. Por exemplo, os maus tratos são causa de nulidade? Em si mesmos, não, mas é claro que é diferente se os maus tratos acontecem muitos anos depois do casamento ou pouco tempo depois dele, já que essa atitude pode manifestar uma anomalia psíquica ou uma exclusão, ou seja, “eu não quis me casar, eu quis ter uma escrava”. Quero dizer que o maltrato em si não é motivo de nulidade, mas pode ser indício de um vício presente no momento do casamento. O que acontece vinte anos depois é relevante na medida em que lança luz sobre a vontade que existiu no momento de casar. Do mesmo jeito, como eu disse, a falta de fé pode ser relevante se implicou a exclusão das dimensões naturais, como a indissolubilidade, a fidelidade, etc.
Então não é uma nova causa de nulidade o fato de a pessoa perder a fé durante a vida. Mas assim como existe o privilégio paulino, isso poderia criar o privilégio de uma segunda oportunidade?
Prof. Ortiz: João Paulo II dedicou o discurso à Rota, no ano 2000, a expor diversos aspectos da indissolubilidade do matrimônio, entendida como um bem dele (embora com frequência ela seja considerada mais como um limite à felicidade das pessoas). Ele recordou que, mesmo que todo matrimônio seja indissolúvel, em alguns casos cabe, excepcionalmente, que ele se dissolva: quando media o privilégio da fé (com base na doutrina de São Paulo, conhecida como privilégio paulino), ou quando o matrimônio não foi consumado, sempre que exista uma causa justa. Mas o casamento sacramental (entre dois batizados) e consumado nunca pode ser dissolvido, não pode contar com nenhum privilégio. Entende-se que o sinal sacramental é perfeito e completo, porque os cônjuges “disseram” que querem se entregar não só com as palavras, mas com toda a pessoa (com a cópula conjugal).
O que as Sagradas Escrituras dizem é tão claro quanto a fórmula da Igreja, “até que a morte os separe”?
Prof. Ortiz: O que o Novo Testamento diz é que “o que Deus uniu, o homem não separe”. É claro que a possibilidade de dissolver matrimônios em casos especiais, em favor da fé e no caso de não consumação, é entendida no contexto da praxe da Igreja e de como o romano pontífice exerce a sua potestade. Precisamente nesse contexto, a afirmação de João Paulo II, em 2000, não deixa espaço para equívocos, porque não só recorda a doutrina em vigor (o matrimônio consumado não pode ser dissolvido), mas ainda acrescenta que essa doutrina tem que ser entendida como infalível: “Deve ser considerada definitiva, ainda que não tenha sido declarada de forma solene mediante um ato de definição, o que equivale a dizer que nem eu nem os meus sucessores podemos mudá-la”.

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