Pedro Menezes
Tanto a Igreja quanto o exercício da política pretendem melhorar a vida de todos, cada um naquilo que lhe compete.
Tirando os excessos, as religiões e os partidos procuram formas de dar dignidade às vidas humanas, e não jogá-las ao fracasso e à morte.
Mesmo assim, o conflito de ideias é intenso, e muitos ainda acham que a Igreja, mesmo compartilhando do desejo pela proteção da vida humana, não pode participar do debate público. Resolvi então olhar para esse conflito comparando os princípios. Quem, afinal, defende verdadeiramente a dignidade humana? Será que a política, de esquerda ou de direita, existe com o firme propósito de defendê-la para todos, sem exceção?
Enquanto pensava nisso, recebi providencialmente um texto intitulado Carta às Esquerdas, do sociólogo português de Boaventura de Sousa Santos, de quem nunca ouvira falar. A íntegra do texto está aqui, mas ele não precisa ser comentado inteiramente. Por ora, basta ressaltar Boaventura se esforça em definir a miríade de exasperações políticas autodenominadas esquerdas de hoje e arrisca um denominador comum: a esquerda é “um conjunto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto”. Para ele, a esquerda, ao contrário do capitalismo que critica, tem uma moral e entende o conceito de dignidade humana. Foi interessante ver que o colega esquerdista que me fez a gentileza de compartilhar esse texto o descreveu como um retrato fiel e esperançoso da esquerda atual.
Na argumentação rasa, a esquerda é mais facilmente identificada como “humanitária” do que a direita, normalmente relacionada à sanha por lucro a qualquer custo. Sem entrar no mérito se isso descreve ou não a direita (Boaventura está certo que sim), é sem dúvida um princípio desumano.
Então, parto da tese de Boaventura: a esquerda atribui a si a força política que pensa no ser humano, e se diferencia das demais forças por conta dessa faculdade. Essa tese tornou o texto um dos mais divertidos que li nas últimas semanas. Quando a carta tenta descrever a esquerda como fiel, legítima e única defensora da dignidade humana, ela mostra de maneira cristalina que a dignidade humana é justamente a única coisa que a esquerda invariavelmente ameaça e destrói. Há dúvidas sobre aceitar ou não o Estado, as instituições democráticas, até mesmo o capitalismo; mas o inimigo existe e está claríssimo. Isso, conquanto permaneça no campo das ideias, é de fato muito divertido: quanto mais a esquerda defende uma visão materialista e maniqueísta da história, mais joga a raça humana contra ela mesma. Se há dois lados na história, a dignidade humana só poderá estar em um deles. O outro é o inimigo indigno.
É fácil ver que, se a direita não defende uma vida melhor para todos, a esquerda tampouco. Para dar exemplos práticos e começar pelo mais essencial, ela exclui do grupo “todos” quem está para nascer, e coloca o aborto em sua agenda — mesmo que isso possa resultar em aborto seletivo, isto é, em eugenia, para eliminar deficientes físicos ou mentais (imagina-se que 96% dos bebês com síndrome de Down são abortados na França) ou, paradoxalmente, mulheres.
Até mesmo em estruturas montadas para a participação, os indícios de exclusão são fortes. A julgar pela forte oposição, não me parece que a Igreja, as forças armadas e o setor agrário participaram a contento das “amplas e democráticas” conferências que elaboraram o ´PNDH III. E a união civil de homossexuais foi assumidamente empurrada para o Judiciário, órgão não-representativo, porque não houve apoio no Congresso, o órgão representativo do país. São discussões que enfrentam forte oposição nas plenárias democráticas, podendo chegar à derrota, e seus proponentes tentam fazê-las valer na marra por fora do debate.
Vendo isso, Boaventura não me parece correto quando diz que “a defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas”. Enquanto não sofrem de extremismo, é evidente que a esquerda, assim como a direita, defende a democracia. Porém, políticos defendendo a democracia é como empresários defendendo o livre comércio. São necessários para a sobrevivência tanto do político quanto do empresário; mas, no fundo, o que querem mesmo é todos agindo de acordo com suas vontades e nenhuma concorrência para seus lucros.
Para ter tanta certeza da missão humanista da esquerda, Boaventura precisa esquecer os fatos e a história. Grande parte da diversão propiciada pelo texto veio de pérolas como:
[N]o seu conjunto, as esquerdas dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. Este curto século de todas as esquerdas terminou com a queda do Muro de Berlim. Os últimos trinta anos foram, por um lado, uma gestão de ruínas e de inércias e, por outro, a emergência de novas lutas contra a dominação, com outros atores e linguagens que as esquerdas não puderam entender.
E:
[O] curto século das esquerdas foi suficiente para criar um espírito igualitário entre os humanos que sobressai em todos os inquéritos;
Talvez foi em nome de tamanha igualdade que os regimes esquerdistas matou e torturou tanta gente entre 1945 e 1989 nos gulags e nos paredões, nos exílios e nos trabalhos forçados, na falta de liberdade religiosa e nos crimes de opinião. A Queda do Muro de Berlim — que, se não me engano, tentava impedir que as pessoas fugissem do socialismo e não para ele — marcou o fim dessa era de ouro da igualdade com a escapada dos países esquerdistas do Leste Europeu… para a direita. Pior para o mundo, que perdeu o tesouro de tão valiosa experiência humanista.
Um delírio tão grande só pode vir de alguém com a certeza de que é possível defender verdadeiramente a dignidade humana apontando inimigos, tão pessoais quanto George W. Bush ou tão etéreos quanto “o sistema”. E basta apontar inimigos para alguém levar uma coronhada nada digna. As atrocidades da esquerda (e também da direita) no século XX só aconteceram porque a dignidade humana só era defendida para quem estivesse de acordo.
Na realidade, nem é preciso chegar ao ponto de nomear inimigos para relativizar a dignidade humana. A simples diferenciação entre as pessoas em nome da busca de uma suposta igualdade já faz o serviço.
A verdadeira defesa da dignidade humana só pode ser feita por aquele que defende o humano, qualquer um deles, e não um sistema. Aquele que dá a mesma importância ao monarca e ao operário e não confia a nenhum dos dois a tarefa de vigiar o bem-estar de todos. Aquele que permite a mesma chance a todos e responsabiliza cada um, pessoalmente, por seus erros.
Eu, particularmente, só consigo enxergar tais princípios no cristianismo.
blogcarmadelio
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