segunda-feira, 28 de abril de 2014

QUANDO O HOMEM DEIXA DE SER LIVRE.



 
LIBERDADE E SERVIDÃO
Sartre, comparando a vida humana a um jogo de rúgbi a que se assiste sem conhecer as regras disse: “Vi alguns adultos se golpeando uns aos outros e derrubando-se para fazer passar uma bola de couro entre dois paus. Recapitulando o que vi, não lhe alcancei o sentido, parecendo-me tudo uma piada (inSartre, J.P., Prólogo “O Estrangeiro”, de Camus, A., Rio de Janeiro, 1969, p.32)”.

Não há dúvida de que, se a vida do homem se resume a um jogo em que se luta para alcançar uma meta, a custa de golpes e empurrões, ainda que o êxito seja obtido, uma hora acaba a partida, como termina a vida. Quando o entusiasmo do campo já não tem valor algum, foi porque aquele jogo nunca teve algum sentido.

Se o homem não é livre, não pode conhecer o amor. Mas também não deveria haver a menor dúvida de que, se não se ama, não se pode ser verdadeiramente livre. A liberdade existe para amar. Uma liberdade sem amor tem tão pouco sentido quanto valor.

Escolher coisas que não se podem amar, que nem sequer se podem respeitar, é escolher uma vida sem valores e degradar a própria natureza humana. A vontade que só pode escolher aquilo que é insuscetível de ser amado não é uma vontade livre, pois está totalmente escravizada.

Portanto, toda a escolha feita sem amor é, na melhor das hipóteses, um exercício rasteiro da liberdade, mas tão rasteiro que pode representar um passo em direção à perda total dessa liberdade.
Para realmente sermos livres, devemos amar, e devemos amar algo que mereça ser amado. Só então nos será possível comprometer-nos livremente e, assim, todos os compromissos serão compromissos de amor, porque a necessidade essencial do amor é comprometer-se com a pessoa amada.

Há uma conexão necessária entre a liberdade, o compromisso (escolha) e o amor. A oposição entre liberdade e entrega, meramente aparente, é sinal inequívoco de que o amor está vacilante, pois nele reside a liberdade. Precisamente por isso, não se compreende a liberdade sem a entrega, nem a entrega sem a liberdade: uma realidade sublinha e afirma a outra.
O melhor exemplo disso está no amor materno. O pensamento clássico greco-romano, enfrentando a questão da gradação do amor humano, já exaltava o amor da mãe pelos filhos. No patamar mais baixo da escala, vinha o amor carnal, em que prevalecia a paixão sexual, chamado de amor de apetência, confiado à deusa Afrodite.

Acima desse patamar vinha o amor de complacência, dominado pelo sentimento e pela afetividade, que tinha em Eros seu deus protetor. E, no topo dessa escala, estava o amor de benevolência, que, em seu sentido etimológico (bene volere), significa querer bem, mas um querer bem ao outro pelo que ele é. A deusa Filia zelava por esse amor, porque se considerava o amor materno como o paradigma do autêntico amor, da entrega absoluta, que consiste em querer apenas o bem do outro.

Nessa esfera superior, o amor recai sobre o ser humano enquanto pessoa, no sentido mais nobre do termo. E sua expressão mais verdadeira é o compromisso de cuidar incondicionalmente do ser amado, algo que supera – em muito – os sentimentos e o apetite sexual, porque é uma decisão livre da vontade e que supera o vaivém dos afetos e o rebaixamento ao círculo puramente biológico que o sexo desenfreado proporciona.

Se a liberdade está ligada ao amor, logo, fazer “aquilo que dá vontade” é exercitar a liberdade de maneira bem superficial. A popularidade de que goza esta máxima, como noção de liberdade, deve ser atribuída à tendência para o raciocínio ligeiro e, também, ao desejo de propagar uma idéia libertina da liberdade: de chamar com o nobre nome de liberdade o que não vai além de um impulso sem controle.
Quando um homem não sabe controlar seus impulsos, ou seja, quando são estes que o dominam, não é livre. O fim de um homem domado por um feixe de estímulos desgovernados não pode ser outro que a imersão do eu numa escravidão total.
Recordo-me de uma frase de Agostinho – ama et fac quod vis (ama e faze o que quiseres) – que, em tempos idos, quando os libertinos eram mais cultos, gozava de prestígio, como citação clássica, entre eles. No entanto, não foi em seu período de libertinagem que Agostinho formulou essa frase belíssima. Foi depois, quando já tinha – e muito – experimentado como a liberdade sem um verdadeiro amor pode levar o homem a um caminho de servidão.
 
 
André Gonçalves Fernandes

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