sábado, 31 de janeiro de 2015

THOMAS MERTON: AMANTE E POETA DA CRIAÇÃO.

 
 Maria Clara Lucchetti Bingemer


No dia 31 de janeiro de 2015 completaria 100 anos um dos maiores místicos e escritores do século XX: o trapista Thomas Merton.  Convertido tardiamente e entrando no mosteiro trapista já adulto, Merton foi aos poucos convertendo-se em um prolífico escritor.  De sua pena saem não apenas belíssimos escritos místicos, mas igualmente temas candentes e atuais que não apenas respondem como também antecipam algumas das grandes questões da agenda contemporânea.
Uma delas é a ecologia. A questão da terra e da relação predatória que o ser humano, sobretudo o ser humano moderno, tem com o planeta tornou-se prioridade nas inquietações da humanidade nos dias de hoje. A real ameaça do esgotamento dos recursos naturais e o perigo de uma catástrofe planetária preocupam cada vez mais intelectuais e pensadores. Por outro lado, o surgimento de movimentos religiosos, espirituais e místicos centrados na contemplação da natureza e da comunhão com o cosmo demonstram como as experiências místicas e as reflexões de Merton anteciparam muitos caminhos que hoje a humanidade deveria trilhar com mais respeito e atenção.
O mundo da natureza e da criação não é tão explorado quando se fala da contribuição de Merton aos conturbados tempos modernos e pós-modernos. No entanto, este mundo desempenhou uma base estática de enorme importância em sua experiência de Deus. A leitura de seus escritos, segundo os especialistas, converge na demonstração de uma relação íntima e progressiva de formato esponsal com a criação como corpo da divindade, ao mesmo tempo velando e revelando o Deus que ele tanto suspirava por ver, tal como por ser visto e conhecido.
Assim é quando descreve o seu viver em meio à floresta como uma necessidade imperiosa e não um luxo excêntrico, como poderiam pensar alguns. Vale a pena citar suas próprias palavras: “(...) Eu vivo na floresta por necessidade. Saio da cama no meio da noite porque é imperativo que eu escute o silêncio da noite, sozinho e, com meu rosto em terra, recite salmos, sozinho, no silêncio da noite... O silêncio da floresta é minha noiva e o doce e escuro calor do mundo inteiro é meu amor e do coração deste escuro calor emerge o segredo que é ouvido somente no silêncio, mas é a raiz de todos os segredos que são sussurrados por todos os amantes em suas camas pelo mundo inteiro.”
Segundo seus mais ilustres estudiosos, Merton passou toda a sua vida monástica escutando este segredo que pulsa no coração da criação e desposou a floresta de maneira a poder escutar com total arrebatamento e compromisso, tal como o esposo faz com a esposa, “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando e respeitando todos os dias da vida até que a morte separe”...
O monaquismo sempre se distinguiu por esse contato direto, de pele com pele com a natureza e a criação. Seja o deserto ou as florestas, vamos encontrar  homens e mulheres de Deus fazendo suas experiências místicas e adquirindo sua infusa sabedoria vinda diretamente da divindade em estreito e amoroso contato com a criação. Com Merton não foi diferente. Assim é que, quando o abade o nomeou guarda-florestal do mosteiro, o que implicava restaurar os bosques que haviam sido despojados e podados uma década antes, sua experiência de solidão e paixão pela natureza se radicalizou. Já não era percebida como uma privação de propósitos intelectuais, mas uma oportunidade de um compromisso corpóreo, carnal, com toda uma comunidade de sabedoria em silenciosa participação com a vitalidade das coisas vivas.
Descobriu nessa sua sempre maior comunhão com a natureza que plantar, adubar e arar eram atividades que aumentavam seus outros compromissos monásticos como esposo da natureza. Pois não é o esposo que acaricia a amada, a prepara para a fecundação, a fecunda? O que mais faz o jardineiro com a terra, com a natureza, senão isso? Merton vai descobrir em meio a essa experiência que o verdadeiro mentor e diretor de almas era a natureza em si mesma.
Seu matrimônio com a floresta intensificou-se em 1960, quando foi residir no eremitério instalado no Monte Olivet.  Ali encontrou uma comunidade maior e um coro incomparável de seres vivos que despertavam toda manhã sob seus pés: os cursos d´água, os campos, as árvores, as rãs, os pássaros, as flores. Tudo isso fez de seu louvor e de seus votos monásticos “o silêncio sob sua canção”, a canção de todos aqueles seres vivos que ouvia e aos quais respondia com seus salmos, e com os quais enchia o campo e a natureza.
Ora, o que ouvia Merton em seus êxtases em meio à natureza? Ouvia, segundo suas próprias palavras, o doce cantar das coisas vivas, visíveis e invisíveis. E a esse coro juntava-se, monge solitário, oferecendo cânticos e salmos de glória e ação de graças unido a toda a humanidade. Sua subjetividade, única, desejada e amada pelo Criador desde toda a eternidade abre-se ao cosmos com admiração e reverência, murmurando no silêncio um louvor que se une ao hino do universo inteiro, arrebatador e fulgurante. 
Merton buscou Deus de forma incessante e apaixonada. Era muito culto, havia estudado a rica biblioteca do mosteiro, sido mestre de noviços etc. No entanto, encontrou na festa multicor e polifacetada da criação divina uma sabedoria nunca vista ou suspeitada, que despertou em seus sentidos espirituais uma familiaridade primordial com as criaturas.
Sem haver escrito nenhum livro que traçasse explicitamente esta rota através da criação para a comunhão com a divindade, Thomas Merton diz à humanidade hoje que a vocação humana é, em última instância, ser “um jardineiro do paraíso’”.





* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.  A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
 Fonte: Jornal do Brasil

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